quarta-feira, 4 de março de 2020

Discursística


DISCURSÍSTICA

Hildo Honório do Couto

Universidade de Brasília



Aqui está uma sugestão de troca do nome ‘Análise do Discurso’ por ‘Discursística. Trata-se de um neologismo na língua portuguesa, mas em ciência sempre precisamos criar neologismos. Eu fiz uma pequena sondagem no Google e não encontrei nenhuma ocorrência da palavra ‘discursística’. Mas, pelas regras sistêmicas1 da morfologia portuguesa ela é perfeitamente possível, logo, gramatical, no sentido da Gramática Gerativa, ou seja, é uma palavra inativada, prevista pelas regras de formação de palavras do português. Quanto a mim, a primeira vez que a mencionei, embora de passagem, foi em Couto (2019, p. 41). Aqui ela será caraterizada de modo mais pormenorizado. A expressão ‘Análise do Discurso’ designa uma área tão vasta e tão prolífica nos estudos da linguagem que bem merece um nome mais curto que, adicionalmente, pode ser comparado a ‘Linguística’. Muito provavelmente os especialistas da área não se mostrarão receptivos a essa sugestão de mudança de nome. No entanto, a meu ver a denominação univocabular ‘Discursística’ tem algumas vantagens frente à quadrivocabular ‘Análise do Discurso’, que consta das palavras ‘análise”, “de”, “o” e “discurso”, apenas com a preposição e o artigo fundidos. 

Há vários motivos que justificariam essa troca de nome. Em primeiro lugar, e como já observado, o objeto de estudo do que se tem chamado ‘Análise do Discurso’ é um dos mais investigados no Brasil e talvez na América Latina, bem como nos países latinos em geral. Na China já existem inúmeros trabalhos sob o título de ‘Análise do Discurso Ecológica’, inclusive uma variante chamada ‘Análise do Discurso Harmoniosa’, esta última iniciada no Centro de Ecolinguística da Universidade de Agricultura do Sul da China, em Guangzhou (Cantão)2. Como se vê, há ramificações nas teorias de Análise do Discurso. Por isso, parece apropriado usar-se um nome mais curto, como ‘Discursística’.

O termo univocabular ‘Discursística’ estaria em paralelo com muitas outras disciplinas científicas cujos nomes terminam pelo mesmo morfema ‘-ística’: Linguística, Estilística, Dentística, Estatística, Patrística etc. Nas universidades alemãs há departamentos dedicados ao estudo de línguas, literaturas e culturas, como Romanística (línguas, literaturas e culturas latinas), Germanística (línguas, literaturas e culturas germânicas), Escandinavística (línguas, literaturas e culturas escandinavas), Eslavística (línguas, literaturas e culturas eslavas) etc. Além disso, há disciplinas com nomes terminados de modo bastante parecido, como Onomástica e outros.

Adotando-se o termo ‘Discursística’, ficaria mais fácil criarem-se compostos como: a) Discursística Pêcheutiana; b) Discursística Crítica (em vez de ADC); c) Discursística Dialógica; d) Discursística Positiva (J. Martin); e) Discursística Ecossistêmica/Discursística Ecológica etc.

O nome ‘Discursística” deixaria bem clara sua relação com Linguística. Assim, Discursística trataria das questões de textos-discursos, ao passo que a Linguística se dedicaria aos demais fenômenos da linguagem, mesmo que mediante subdisciplinas como Sociolinguística, Psicolinguística, Semântica, Sintaxe, Morfologia, Fonologia etc.

Como estamos falando em discurso, seria interessante lembrar que a expressão ‘texto-discurso’ é preferível a simplesmente ‘discurso’ pelo fato de todo discurso ter que estar materializado em algum texto. Não há discurso sem um texto que o suporte. Assim, parece óbvio que é melhor falar-se em ‘texto-discurso’ em vez da palavra simples ‘discurso’ (aqui, sim, é recomendável o uso de composto). Mesmo quando o ‘discurso’ esteja materializado em uma manifestação não verbal, mas pictórica, em vídeo ou outras formas, tem que haver algum suporte material para ele. De qualquer modo, o que interessa diretamente à Discursística é, naturalmente, o ‘discurso’, embora sua materialização não possa ser deixada inteiramente de lado, em consonância com a nova visão do mundo trazida pela Teoria da Relatividade, a Mecânica Quântica, a Teoria dos Sistemas, a Ecologia etc., que procuram integrar em vez de segmentar e separar como se faz na Filosofia de Descartes. Procuram também ver o mundo como uma imensa rede de interações, não como um conjunto de coisas que se relacionam entre si em um espaço fechado, como na Física Clássica, de Newton.

É claro que na própria Linguística em geral há disciplinas com nomes hifenizados como ‘Sócio-linguística’, ‘Psico-linguística’, ‘Eco-linguística’, ‘Paleo-linguística’ etc. No entanto, nos dias de hoje normalmente essas palavras se escrevem sem hífen, com o que não seriam vistas como palavras compostas no sentido tradicional.

Às vezes é inevitável usar-se um termo composto, como no caso de “Linguística Ecossistêmica” e do já mencionado texto-discurso. No entanto, no que concerne às Análises do Discurso é possível e até aconselhável o uso de um termo único. Com efeito, o objetivo de seus praticantes não é pura e simplesmente analisar discursos. Eles vão muito além disso, frequentemente interpretando o conteúdo dos discursos, entre outras coisas. Talvez eles façam mais ‘interpretação’ do que ‘análise’. A análise seria apenas uma primeira etapa, que deve ser complementada com alguma interpretação. Assim sendo, por que “análise do discurso”?

Talvez ficasse até mais fácil a área se firmar como uma disciplina acadêmica, embora o que se chama de “Análise do Discurso” já seja amplamente dominante na academia. Uma disciplina com nome simples parece mais “científica” do que uma outra cujo nome seja um sintagma. Praticamente todas as disciplinas tradicionais, “clássicas” têm nome simples. No momento, não me ocorre nenhuma com denominação plurivocabular. Portanto, se os estudiosos da área adotassem o nome Discursística, pode ser que os linguistas que se dedicam a teorias formais, como a Gramática Gerativa, parassem de olhar de soslaio para sua área. Eu cheguei a ouvir de um linguista estruturalista da velha guarda que ‘Análise do Discurso’ não é Linguística, mas Literatura. Adotando o novo nome, seus praticantes poderiam dizer, “sim, nossa disciplina não é Linguística; ela é Discursística, pois se dedica a analisar e interpretar discursos, ou textos-discursos”.  



Notas

1 Para o conceito de regras sistêmicas, como integrantes das regras interacionais, ver Couto (2015, p. 64).

2 ECO-REBEL v. 6, n. 2, 2020 conterá um artigo com uma visão de conjunto da Ecolinguística na China.


Referências
Couto, Elza K. N. N. & Couto, Hildo Honório do. 2019. Uma leitura ecolinguística de “Se eu quiser falar com Deus” de Gilberto Gil. Linguística ecossistêmica. Ecolinguística: revista brasileira de ecologia e linguagem (ECO-REBEL) v. 5, n. 2, p. 40-53. Disponível em:


Couto, Hildo Honório do. 2015. Linguística ecossistêmica. Ecolinguística: revista brasileira de ecologia e linguagem (ECO-REBEL) v. 1, n. 1, p. 47-81. Disponível em:
https://periodicos.unb.br/index.php/erbel/article/view/9967/8800

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