quinta-feira, 9 de agosto de 2018

O índio do buraco: existe língua de uma única pessoa?

Hildo Honório do Couto

Universidade de Brasília



1. Introdução

Na última semana (estou escrevendo em 28/07/2018) apareceram mais algumas notícias sobre o "índio do buraco" na imprensa brasileira. Trata-se de um homem da Terra Indígena do Tanaru, no município de Corumbiara, Rondônia, que perambula pela região inteiramente só. O fato tem sido noticiado por vários órgãos da imprensa nacional e da internacional. Da internacional, poderíamos citar a BBC, The Guardian, Washingon Post e Diário de Notícias (Lisboa), entre muitos outros órgãos.
O fato de se tratar de uma pessoa vivendo sozinha na floresta já aponta para algum tipo de extinção de povos, extinção frequentemente causada por genocídio, por expulsão de comunidades inteiras das próprias terras por invasores não índios, por dizimação por doenças trazidas por esses invasores etc. Em julho/2018 completaram-se 22 anos que ele fora avistado pela primeira vez.
Como veremos mais abaixo, ele nunca foi contatado, uma vez que ele próprio demonstrou que não o quer. Por isso, não sabemos quase nada sobre ele. A tribo à qual deve ter pertencido era conhecida por cavar buracos à volta do seu território, o que fez com que recebesse o nome de "índio do buraco".
Eu decidi falar sobre o assunto, da perspectiva da ecolinguística, porque essa situação é intrigante para a teoria ecolinguística. Ela é interessante para se discutir o que é língua, o que é língua viva e o que é língua morta. Enfim, é importante para se discutir a dinâmica das línguas. Mas, o objetivo geral por trás de toda a argumentação é chamar a atenção para o genocídio que os colonizadores trouxeram para as terras que "civilizaram" e para a devastação que estão causando no meio ambiente vital, derrubando florestas, provocando o assoreamento de cursos d'água, poluindo a terra, as águas e o ar. Em suma, em nome de criar condições de vida para as pessoas, estão cavando a cova para todos a médio e longo prazos. 

2. O que se sabe
Índio do buraco é o nome pelo qual ficou conhecido um indígena isolado que costuma cavar buracos, com um metro de comprimento e três metros de profundidade, que sempre são encontrados no interior das casas feitas de terra e palha nas palhoças onde vive. São valas profundas, provavelmente armadilhas para caçar ou, então, destinadas a se esconder quando alguém que temesse fosse visualizado. O curioso é que ele também já abandonou algumas dessas palhoças, juntamente com instrumentos de uso manual, como tochas de resina e flechas.
Como vimos, o "índio do buraco" seria um solitário remanescente de um povo que deve ter desaparecido devido a ataques genocidas de fazendeiros a sua comunidade no período que vai de 1970 a 1980. O objetivo era devastar a floresta para vender a madeira e ter terra para criação de gado e plantação de soja. Acredita-se que a maioria dos membros da sua tribo tenha sido dizimada nesse período, após a construção de uma estrada perto da área onde viviam, estrada que aumentou o interesse por terras na região. Essa tribo deve ter existido no que veio a ser chamado Terra Indígena Tanaru (TI Tanaru), localizada próximo a Corumbiara, em Rondônia. Para resguardar direitos dos indígenas na área, foi criada a Frente de Proteção Etnoambiental Guaporé (FPE Guaporé), unidade da Funai. Aqui está o mapa com sua localização:


A TI Tanaru foi delimitada em 2015, pela Portaria do Presidente da Funai 1040 de 16 de outubro, que prorrogou a interdição da área por 10 anos. A área demarcada compreende 8.070 hectares. Não obstante, as primeiras interdições de área já haviam ocorrido desde a década de 1990, logo após a confirmação da existência do índio isolado da TI Tanaru. Esses 8.070 hectares de floresta protegida em que o homem vive são inteiramente cercados por fazendas, cujos ocupantes acham que é "muita terra para um único índio". Por isso, houve, e há, constantes conflitos com grileiros, madeireiros e fazendeiros, o que forçou esse povo a se mudar com muita frequência. Além disso, seus integrantes foram morrendo pouco a pouco. Após um ataque em 1995, o grupo que já constava de apenas de umas seis pessoas foi reduzido a apenas uma, o “índio do buraco”.
Com o ataque de 1995, o “índio do buraco” foi provavelmente o único a escapar. Ele foi avistado pela primeira vez em 1997. A confirmação de sua existência provocou a criação da TE Tanaru, em 1998. Em 2009, um acampamento temporário montado na região pela Funai foi saqueado por um grupo armado. Dois cartuchos de armas foram deixados para trás; foram destruídos equipamentos, sistema de radiofonia, placas solares e partes da estrutura do posto.
A propósito dos ataques dos fazendeiros, Algayer disse que no posto atacado foram danificados paredes, placa solar e cabo de uma antena. "Eles deixaram claro que vão atirar no índio se o encontrarem".
Por 10 anos a Funai realizou 57 incursões de monitoramento da presença do indígena e cerca de 40 viagens para ações de vigilância e proteção da TI Tanaru. Ela tentou contato já em 2005, mas ele não quis saber disso. Deste então, os servidores que o acompanham deixam apenas algumas ferramentas e sementes para plantio em locais pelos quais ele costuma passar. Vale dizer, toda "interação" com ele tem consistido em fornecer alguns objetos que poderiam ser úteis para a sua sobrevivência.
Apesar de o índio do buraco já ter sido o foco de diversas pesquisas, reportagens em veículos de comunicação brasileiros e estrangeiros e inclusive um livro (REEL, 2010a), até onde se sabe ele nunca foi contatado por alguém de fora de sua tribo. Não sabemos quase nada sobre ele: se realmente pertence a uma tribo extinta, se sim, qual era ela, que língua falava, se ele tem contato pelo menos com povos ameríndios vizinhos etc. Nunca houve comunicação com ele. Desde a primeira tentativa, ele reagiu com flechadas. Por volta de 2012, a Funai registrou algumas roças de milho, batata, cará, banana, mamão, o que aponta para o fato de ele dever se alimentar desses produtos, além de da caça e de mel.
Ele foi filmado cortando uma árvore com um machado. No vídeo ele aparece seminu, mas aparenta uma excelente forma física. Estima-se que tenha cerca de 50 anos. Até há pouco tempo, existia uma única foto borrada, tirada por um fotógrafo que acompanhava a FUNAI em uma viagem de monitoramento, e exibida muito rapidamente em um documentário brasileiro de 1998. Trata-se dos registros feitos pelo cinegrafista Vincent Carelli, que deram origem ao premiado documentário "Corumbiara", comentados por Oliveira (2009) e Saraiva (2009). Em apenas uma oportunidade ele foi filmado, e o vídeo foi divulgado pela FUNAI. Ele está disponível em


Para terminar essa apresentação e tentativa de caracterização do "índio do buraco", gostaria de reproduzir alguns argumentos de Altair Algayer, coordenador regional da FPE Guaporé, da FUNAI. Estes depoimentos foram pinçados em diversas publicações, como as mencionadas acima e as que se encontram nas Referências. Coloco-as entre aspas, pois, é assim que as encontrei na imprensa.
- "A gente sempre sabe mais ou menos em qual igarapé e em qual parte da terra indígena ele se encontra. Monitoramos ele de longe".
- "Esse homem, que a gente desconhece, mesmo perdendo tudo, como o seu povo e uma série de práticas culturais, provou que, mesmo assim, sozinho no meio do mato, é possível sobreviver e resistir a se aliar com a sociedade majoritária. Eu acredito que ele esteja muito melhor do que se, lá atrás, tivesse feito contato".
- "Ele está muito bem, caça e mantém algumas plantações de mamão e milho" (sobrevive caçando porcos selvagens, pássaros e macacos com um arco e flecha e também monta armadilhas em buracos escondidos).
- "Eu entendo a sua decisão [de viver só]. "É a sua forma de resistir, e um pouco de repúdio e ódio, se conhecermos a sua história e aquilo por que passou".
- "O dono de uma das fazendas nos cobra uma solução. Ele quer que o índio seja levado para outra terra", "tentativa de intimidação".

3. Terras, povos e línguas indígenas e a invasão dos europeus
Na opinião dos fazendeiros dos arredores do lugar onde vive o índio do buraco, é um absurdo manter tanta terra para um único índio. Essa terra poderia estar produzindo soja, gado de corte e leiteiro, ou seja, produzindo alimento para muita gente. Ouvindo assim, até parece que têm razão. Entretanto, isso é uma falácia, que consiste em pegar uma pequena parte da questão e apresentá-la como se fosse o todo. Isso é pior do que a mentira mais deslavada, pois, esta pode ser facilmente desmascarada. A falácia pode enganar muita gente, por conter parte da verdade. Comellas-Casanova (2009) tenta mostrar com argumentos e exemplos como aqueles que têm o poder central tentam vender a ideia de que é bom para as minorias (étnicas, linguísticas etc.) adaptarem-se ao poder central, ou seja, abdicar de sua identidade. Em Couto (2014) eu mesmo tentei mostrar como os invasores europeus dizimaram grande parte dos ameríndios; os que ainda sobrevivem foram forçados a se tornar "minorias" no próprio território. O que é mais, muitos desses grupos étnicos minoritários estão parcial ou totalmente assimilados à cultura de origem europeia. 
Para os invasores, "não havia nada" nas Américas antes de sua chegada. A profusão de espécies vegetais e animais, a exuberância da Mata Atlântica e da Floresta Amazônica, para não dizer do cerrado do Planalto Central, tudo isso não era nada. Só começou a "haver algo" com a chegada deles. Espécimes da flora como jacarandás, aroeiras, perobas e pitangueiras; espécies da fauna como emas, lobos-guarás, jaguatiricas, tucanos e jararacas não eram "nada". Porém, o que é mais lamentável na visão desses invasores é que, pelo menos aparentemente, "não havia ninguém" aqui. Só começou a "haver alguém" com a chegada dos europeus e seus descendentes. Para eles, "progresso", "desenvolvimento" implica a devastação total da floresta amazônica para plantar soja, estabelecer fazendas de gado leiteiro e de corte. É um "desperdício" deixar tanta terra apenas com pequenos grupos étnicos, árvores e animais nativos.
Como tentei mostrar em Couto (2007: 367-377), no capítulo intitulado "Desenvolvimento", isso se dá até mesmo com "minorias" de origem europeia já estabelecidas no Brasil, como os caboclos e os pobres do Planalto Central em torno de Brasília. Para aqueles que acham que trouxeram o "progresso" e o "desenvolvimento" para a região, antes "não havia nada" nela. A rica fauna e flora do cerrado, as pequenas propriedades de subsistência aí já existentes "não eram nada". Com a chegada das bugigangas do consumismo capitalista é que começou a "haver algo".
No referido capítulo, tento discutir o que realmente ocorreu.

Na visão dos planejadores, o "desenvolvimento" chegou ao Distrito Federal, em especial, e ao cerrado do Planalto Central, em geral. O Centro-Oeste passou a produzir 50% da soja do país (13% da do mundo inteiro). O cerrado produz também 20% do milho nacional, 15% do arroz e 11% do feijão. A produção agropecuária também se "modernizou" e cresceu consideravelmente. Nos dias de hoje, a soja tem sido um dos principais responsáveis pelos sucessivos superavits na balança comercial brasileira. Infelizmente, porém, as divisas que entram não ajudam a melhorar a vida dos milhões de miseráveis do país. Pelo contrário, elas vão para o bolso de uma pequena minoria.

O capítulo continua mostrando que

Uma das consequências mais conspícuas do "desenvolvimento" que foi trazido para Brasília é que cerca 60% do cerrado já foi devastado. Dos restantes 40%, apenas 10% permanecem como no original. No DF, a área destruída chega a 80%. Além disso, à medida que as cidades incham e a demanda por água aumenta, a quantidade de água potável disponível diminui. Aliás, esse problema é mundial. Como salienta Brown (2003), no mundo inteiro os rios estão secando, entre eles o Jordão, o Colorado, o Rio Amarelo, o Índus, o Ganges e o Nilo. O Mar de Aral recuou 12 metros desde 1960, por definhamento do Amu Darya que o alimenta, por causa dos produtores de algodão da Turquia e do Uzbequistão. No próprio momento em que estou escrevendo (outubro de 2005), está havendo a maior seca dos últimos 60 anos na Amazônia.

Enfim,

Diante de tudo que foi dito até aqui somos inevitavelmente levados à conclusão de que o "desenvolvimento" que está se dando no Planalto Central tem piorado a vida da grande maioria de seus habitantes. A vida "simples" e talvez até bucólica que se levava antes do "desenvolvimento", no fundo no fundo, era muito melhor do que a poluição, a ocupação de vias públicas por desvalidos, o medo da violência. Hoje, a classe média é prisioneira nas fortalezas em que se transformaram suas casas. Só que, nem assim conseguem pôr-se a salvo da violência, que é apenas a ponta do iceberg.

4. Interpretação linguístico-ecossistêmica
Como é amplamente sabido, a vertente da ecolinguística que praticamos, a linguística ecossistêmica, parte do ecossistema linguístico, também conhecido como comunidade linguística. De acordo com ele, e de acordo com o leigo, para haver uma língua (L) é preciso que exista um povo (P) em determinado lugar, seu território (T), formando o seguinte tripé (COUTO, 2015):

P
/   \
L---T
Ecossistema Linguístico
Comunidade Linguística (CF e CL)

A comunidade linguística pode ser vista como comunidade de língua ou comunidade de fala. Comunidade de língua é o domínio do que chamamos laicamente língua. Assim, a comunidade de língua portuguesa compreende Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. A comunidade de língua pirahã compreende o domínio do povo pirahã às margens do rio Maici em Humaitá e Manicoré, no estado do Amazonas. Comunidade de fala é qualquer agrupamento de qualquer comunidade de língua que o investigador delimite para estudar. Pode ser só o Brasil, só o estado do Rio de Janeiro, só a cidade do Rio de Janeiro, só o bairro do Flamengo, uma quadra desse bairro e até uma família (pai, mãe e filhos). No caso de pequenos grupos étnicos, cada aldeia pode ser encarada como comunidade de fala. Cada oca (casa) também.
Isso significa que a teoria da linguística ecossistêmica tem, já no seu tripé inicial (ecossistema linguístico), argumentos que favorecem a defesa dos povos minoritários e/ou discriminados e/ou estigmatizados. Com efeito, ele mostra que para ser inteiro, ter sua integridade, qualquer grupo étnico (P) precisa estar de posse de seu meio de comunicação próprio (L) e conviver no próprio território (T). Quando ele perde L, a integridade fica bastante fragilizada, mas pode subsistir se ainda dispuser pelo menos do território. Muitos povos indígenas estão nessa situação. Quando não, são bilíngues, em português e a língua étnica. Porém, se perder também o T, os membros do grupo se dispersam pelo T do povo majoritário circundante e, a médio e longo prazo, o grupo inteiro desaparece como tal. 
O ecossistema linguístico, a comunidade linguística, de que o índio do buraco certamente deve ter feito parte se esboroou, como deve ter ficado claro acima. Ele era parte de um P, composto de diversos px (indivíduos). Hoje, ele é apenas um py (um indivíduo) como uma tíbia ou um maxilar de um dinossauro encontrado em escavações arqueológicas. O organismo completo do dinossauro se foi. Do mesmo modo, a comunidade linguística do índio, melhor, a comunidade de língua e sua pequena comunidade de fala originais desapareceram. A pergunta que fica é se se pode dizer que sua língua ainda pode ser considerada viva, se é que ele fale uma língua diferente das demais existentes nas redondezas e até mesmo se ele fala (se comunica com alguém), pois ele vive isolado. O fato é que ele com certeza ainda deve se lembrar das regras interacionais e das regras sistêmicas (COUTO, 2015) da língua do que foi seu povo, por ser aparentemente saudável. O mesmo se pode dizer de sua cultura: será que ela ainda existe, se ele ainda tiver na memória seus traços principais?

5. Comentários
Pode parecer estranho eu ter dito na seção anterior que, a despeito de o solitário índio do buraco provavelmente ainda se lembrar das regras interacionais e das regras sistêmicas de sua língua, ela não existe mais, e que mesmo se lembrando de como era sua cultura tampouco ela sobrevive. Vejamos a primeira questão: se a língua é interação, o simples fato de algum indivíduo ter memória das regras não significa que essa língua esteja viva. Para que isso aconteça é necessário que haja pelo menos dois indivíduos sobreviventes da comunidade em questão; o que é mais é necessário que eles se comuniquem de modo relativamente contínuo mediante essas regras interacionais e sistêmicas. Isso é o pulsar de uma língua viva. Há muita gente pelo mundo afora que conhece pelo menos as regras sistêmicas do latim. As regras interacionais, porém, são de difícil recuperação, pois não sabemos como os romanos interagiam comunicativamente. Por isso, o latim é uma língua morta; não há lugar nenhum no mundo em que algum grupo de pessoas interaja de modo não efêmero mediante essas regras. O que temos do latim hoje é um fóssil, ou algo empalhado, mumificado. Isso é tudo menos uma língua viva. Como dizem Døør & Bang (2002: 216), "a linguística é uma ciência da vida em geral, uma ciência da vida da e para a comunicação linguística humana em particular", por isso ela "deve ser desenvolvida em um diálogo com os melhores métodos e ideias mais inspiradoras da biologia".
O mesmo se pode dizer da cultura. Vimos que o índio do buraco certamente quando muito deve se lembrar dos principais padrões da cultura de seu extinto grupo. No entanto, assim como se dá com o fato de a memória das regras (interacionais, sistêmicas) de uma língua em um único indivíduo não fazer dela uma língua viva, também a cultura tem que fazer parte do metabolismo das interações sociais vigentes entre os diversos membros do grupo. Tanto que o ecossistema cultural apresenta a mesma configuração do ecossistema linguístico, como se pode ver na figura a seguir:

 P
/  / \
/  /    \
C--L----T
Ecossistema Cultural (CPT)
Ecossistema Linguístico (LPT)
Ecossistema Linguístico-Cultural (C/LPT)

Como se vê, o ecossistema linguístico (LPT) faz parte do ecossistema cultural (CPT), o que implica que a língua é parte da cultura. O gráfico mostra também que a população (P) e o território (T) associados a uma cultura são os mesmos do respectivo ecossistema linguístico. Isso já nos leva a concluir que quando uma língua morre, geralmente morre também a cultura de que ela faz parte. Disse geralmente porque há uma parte da cultura que está fora do ecossistema linguístico, que se encontra em CPL. É o caso dos ciganos, que perderam seu território original na parte centro-norte da Índia, mas manteve pelo menos parte da cultura original. Algo parecido aconteceu com os judeus após a diáspora. De qualquer forma, nesses casos não temos culturas plenas, que pressupõem toda uma série de componentes, como se pode ver em Couto (2018).  
Meramente existir na memória de um, e até de mais de um indivíduo, é apenas uma parte, a parte mental da língua e da cultura. Isso não faz delas algo vivo, pois, como a linguística ecossistêmica tem mostrado, além do ecossistema mental a língua compreende ainda o ecossistema natural e o social. A dimensão mental subsiste pelo menos parcialmente no indivíduo conhecido como índio do buraco. Porém, sabemos que uma andorinha só não faz verão, do mesmo modo que um único indivíduo não faz uma comunidade. Linguístico-ecossistemicamente, teria que haver pelo menos mais um outro indivíduo de seu ecossistema linguístico original, e convivendo com ele, para que se pudesse dizer que sua língua e sua cultura ainda existem. O núcleo da língua para essa disciplina é a interação comunicativa, e só pode haver interação (de qualquer tipo) entre no mínimo duas pessoas. Tanto que em Couto (2016) se pode ver que dois indivíduos em interlocução constituem uma comunidade de fala mínima. Inclusive o aspecto mental, a memória que esse índio ainda deve ter de sua língua/cultura original já deve estar se esgarçando, por não serem praticadas. Além disso, falta o aspecto mental dos demais indivíduos que compunham a comunidade. A memória do ecossistema mental apenas do índio do buraco seria como um fóssil, como as memórias geológicas de seres de priscas eras.
A língua está morta, mas poderia ser ressuscitada se aparecesse um outro índio de sua etnia com o qual pudesse trocar atos de interação comunicativa. Algo parecido aconteceu com o hebraico. Ele já estava extinto como tal. O que subsistia eram o iídiche, mistura de alemão com hebraico na Europa central, e o judeo-espanhol, na Península Ibérica. Tratava-se de variedades do alemão e do espanhol, respectivamente, não de hebraico. No entanto, quando se fundou o estado de Israel na Palestina em 1947-1948, os filólogos que cultivavam o hebraico religioso ensinaram-no às crianças, de modo que hoje ele é a língua oficial do país, ao lado do árabe como língua oficial minoritária.
Voltemos ao caso do índio do buraco. Sabemos que, além das pessoas monoglotas, existem aquelas que são bilíngues e as plurilíngues, chamadas de poliglotas. O índio em questão seria aglota, ou seja, ele não fala nenhuma língua, uma vez que, pelo menos aparentemente, ele não tem contato com ninguém, o que não significa que não mantenha a competência de sua língua original que poderia ser revivida se houvesse as condições propícias: a presença de pelo menos mais uma pessoa que pudesse interagir com ele. Para todos efeitos ele não tem língua, não interage comunicativamente com ninguém, logo, é aglota. É uma situação sui generis, como sui generis é o modo pelo qual ele vive.
Certamente o mais importante é a situação humana desse homem, bem como dos povos autóctones e das minorias em geral. Porém, creio que tratar do assunto do ponto de vista linguístico também é importante. Com efeito, a linguística ecossistêmica parte justamente do tripé formado por povo (P), sua língua (L) e sua terra ou território (T). Ela chama a atenção, já na porta de entrada, para a visão ecológica de mundo, para o fato de que um povo (P) só terá sua integridade e identidade plenas se seus membros estiverem convivendo na própria terra (T) e interagindo cultural e linguisticamente pelo modo tradicional de interagir, sua linguagem (L).
A linguística ecossistêmica mostra que o linguista também é responsável, também ele precisa se preocupar com o aniquilamento dos povos mediante invasão de suas terras e de suas culturas e línguas. Os invasores criam uma situação em que os membros desses povos não têm outra alternativa senão aderir à cultura do povo majoritário invasor.  Os autóctones se desaculturam e aculturam ao mesmo tempo. No primeiro caso, sendo forçados a deixar a própria cultura; no segundo, a se adequarem à cultura invasora a fim de sobreviver. Os defensores dessa política asseveram que são os próprios povos minoritários que querem deixar sua língua/cultura e se adequar à língua/cultura dominante a fim de "ter trabalho", de "subir na vida". Ninguém lhes perguntou se deixariam sua língua/cultura se tivessem a opção de "ter trabalho" e "subir na vida" mantendo-as.
Na verdade, a regra é a adaptação desses povos ser apenas parcial. Em geral vão viver na periferia das cidades, em favelas. Dificilmente conseguem ter o padrão de vida da classe média e, mais difícil ainda, da elite. Isso é tudo menos adaptação.

6. Observações finais
Gostaria de terminar este ensaio trazendo à baila mais algumas ideias expressas por quem teve conhecimento de primeira mão com o caso do índio do buraco. Primeiro, temos o que disse Fiona Waston, investigadora da ONG Survival International. Ela afirma que esteve no local em 2005 (WATSON, 2005). Adverte que se alguém chegasse muito perto dele, ele receberia essa pessoa a flechadas, como ocorreu com Tunio, que trabalhava para a FUNAI. Diz que foram encontrados vários instrumentos fabricados por ele. Literalmente, ela disse que "a FUNAI tem o dever de mostrar que ele está bem vivo", pois "o fato de ele estar ainda vivo nos dá esperança".
Reel (2010b) disse que "a história nos oferece poucos exemplos de pessoas que podem rivalizar-se com sua [do índio do buraco] solidão em termos de duração e de grau. O que se aproxima mais é 'a mulher solitária de San Nicolas' — uma mulher indígena localizada por um caçador de lontras em 1853 inteiramente sozinha em uma ilha da costa da Califórnia. Padres católicos que enviaram um barco para buscá-la disseram que ela tinha estado sozinha por no mínimo 18 anos, como última sobrevivente de sua tribo. Mas, os detalhes de sua sobrevivência nunca foram efetivamente contados. Ela morreu poucas semanas após ser 'resgatada'". O caso brasileiro do índio do buraco é realmente sui generis. Não é para menos que tenha despertado tanta atenção da mídia brasileira e da internacional. Não é para menos que seja um caso muito interessante para os linguistas refletirem sobre o que é língua viva e língua morta. É interessante para o próprio conceito de língua. Last, but not least, é interessante pois é um soco no nosso estômago para mostrar uma espécie de penúltimo suspiro de povos autóctones diante da invasão dos europeus: um homem aglota, devido à destruição de seu ecossistema linguístico: povo, território, língua.

Referências
ALGAYER, Altair. Coordenador regional da agência indígena da Funai, estado de Rondônia
CARELLI, Vincent. "Corumbiara" (documentário), 1997.
COMELLAS-CASANOVA, Pere. Contra l'imperialisme lingüístic: a favor de la linguodiversitat. Barcelona: La Campana, 2006.
COUTO, Hildo Honório do. Ecolinguística: estudo das relações entre língua e meio ambiente. Brasília: Thesaurus, 2007.
_______. Amerindian language islands in Brazil. In: Mufwene, Salikoko (org.).  Iberian imperialism and language evolution in Latin America. Chicago: The University of Chicago Press, 2014, p. 76-107.
_______. Linguística ecossistêmica. Ecolinguística: revista brasileira de ecologia e linguagem (ECO-REBEL) v. 1, n. 1, 2015, p. 47-81. Disponível em:
_______. Comunidade de fala revisitada. Ecolinguística: revista brasileira de ecologia e linguagem (ECO-REBEL), v. 2, n. 2, 2016, p. 49-72. Disponível em:
_______. Ecossistema cultural. Ecolinguística: Revista Brasileira de Ecologia e Linguagem (ECO-REBEL), v. 4, n. 1, 2018, p. 44-58. Disponível em:
Døør, Jørgen & BANG, Jørgen Chr. Ecology, ethics and communication: An essay in eco-linguistics. In: FILL, Alwin; PENZ, Hermine; TRAMPE, Wilhelm (orgs.). Colourful green ideas. Berna: Peter Lang, 2002, p. 415-433.
OLIVEIRA, Rodrigo de. “Índio que ninguém viu é boato”: Corumbiara, de Vincent Carelli. Agosto de 2009. Diponível em:
http://www.revistacinetica.com.br/gramado09dia4a.htm (31/07/2018)
REEL, Monte. The Last of the Tribe: The Epic Quest to Save a Lone Man in the Amazon. New York: Scribner, 2010a.
_______. The most isolated man on the planet. 2010b. Slate 20/08/2010. Disponível em:
SARAIVA, Leandro. "Enfia essa câmera no rabo". Retrato do Brasil 27, outubro de 2009. Disponíbel em: https://nacaoindigena.com/2015/05/26/o-massacre-de-corumbiara/  (03/08/18).
VILELA, Ana Carolina Aleixo. Índio Isolado da TI Tanaru: o sobrevivente que a Funai acompanha há 22 anos. Fundação Nacional do Índio, 2018. Disponível em:
WATSON, Fiona. Investigadora da Survival International, 2005.


NOTA: Hoje, 25/10/2022, vejo a notícia de que o Índio do Buraco morreu. Eis a notícia:

https://www.msn.com/pt-br/noticias/brasil/enterro-do-%C3%ADndio-do-buraco-que-viveu-isolado-por-duas-d%C3%A9cadas-se-transforma-em-impasse/ar-AA13llA9?ocid=msedgdhp&pc=U531&cvid=5272fe2dfaa14e82a6b4bd038fef793a