sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Notas linguístico-ecossistêmicas sobre a linguagem neutra

Hildo Honório do Couto (UnB/GEPLE)

-A versão da Ecolinguística chamada Linguística Ecossistêmica – que é a que praticamos – tem uma posição muito clara e explícita sobre linguagem neutra. Para entender essa posição é preciso ir ao tripé inicial que diz que para haver uma língua (L) é preciso haver um povo (P) convivendo em determinado lugar, seu território (T).

-Partindo daí é fácil constatar que quem forma e transforma uma língua é o povo (P) em sua totalidade. Isso significa que toda inovação na língua (transformação, evolução) é introduzida por P, mesmo que o pontapé inicial tenha partido de um indivíduo que seja membro desse P.

-Qualquer indivíduo e qualquer grupo de indivíduos (segmento social) de P tem o direito de propor inovações na língua. Tem o direito de divulgar suas propostas de inovação por todos os meios lícitos de que dispuser a fim de tentar convencer os demais indivíduos (e segmentos sociais) da necessidade de se introduzir a inovação que deseja introduzir.

-O que não é legítimo é um indivíduo (ou um segmento social) tentar impor suas inovações aos demais membros de P à força. Isso seria ilegítimo. Divulgar e tentar incluir as inovações desejadas é perfeitamente legítimo. Impô-las, não.

-Não é legítimo tampouco, por ir contra os princípios do ecossistema integral da língua (LPT), alguém que tem poder impor inovações por decreto. Isso é violência. Isso não funcionou em nenhuma das ditaduras que tentaram fazê-lo. 

-A língua é do povo (P) como um todo, seu senhor absoluto. Mas, o povo apresenta muita diversidade grupal, muitos segmentos diferentes. Assim, é também legítimo cada grupo e cada segmento usar a linguagem que o identifica como tal, além, é claro, do direito de tentar convencer os demais grupos e segmentos sobre a legitimidade de suas especificidades linguísticas.  

-Como disseram Koefoed & Tarenskeen (1996, p. 132), "o vocabulário é produto da interação", dos atos de interação comunicativa que se dão na comunidade como um todo. Portanto, "não importa quem inventa uma nova expressão verbal porque não é sua simples invenção que faz dela uma palavra da língua da comunidade".

-Em suma, se uma inovação que algum grupo social ou algum indivíduo deseja introduzir na língua (L) for aceita, ela passará a fazer parte da língua de todos. Inovações não prosperam, não pegam, se forem impostas de cima para baixo pelo poder, no grito por grupos de pressão ou por indivíduos.

-Politicamente pode até não haver democracia, porém, na língua ela sempre existe, pois ela é do povo (P). Se P não aceitar determinada inovação, ela não pegará. Na história recente do Brasil os partidários do PT (Partido dos Trabalhadores) tentaram impor um feminino para a palavra presidente, a fim de dizer que Dilma Roussef era a "presidenta", no que, possivelmente, seguiam a presidente da Argentina Cristina Kirchner, que se considerava "la presidenta de Argentina". Não sei se lá a coisa pegou, mas no Brasil a forma "presidenta" só é usada por petistas e/ou simpatizantes. Afinal, a palavra "presidente" sempre foi de dois gêneros, com o que se diz tanto "o presidente" quanto "a presidente". Ironicamente, neste caso já não havia binariedade de gênero, mas os petistas tentaram impô-la. Outra ironia, o português estatal prevê as formas "o poeta" e "a poetisa". No entanto, hoje em dia muita mulher que faz poesia se considera "uma poeta". Só a evolução histórica da língua dirá o que pegou e o que não pegou.

-Por fim, projetos de lei para impedir o uso da linguagem neutra em determinadas circunstâncias, como o que tenta impedi-la na educação básica, também são ilegítimos. O que defendiam os fisiocratas liderados por François Quesnay (1694-1774) em economia, o laissez-faire (deixar as coisas fluírem espontaneamente), vale também para a língua. Deixando a totalidade dos seus falantes se comunicarem como quiserem, a evolução linguística se dará naturalmente. A língua tem muita coisa em comum com o mundo jurídico, mas, nesse ponto, ela difere radicalmente. Não se legisla sobre a língua. O que determina a introdução ou a exclusão de modos de se comunicar é a totalidade dos membros de P ao longo do tempo, mesmo que haja encontros e desencontros. 

 

 

Referências

COUTO, Hildo Honório do. Linguística ecossistêmica. ECO-REBEL v. 1, n. 1, p. 47-51, 2015:

https://periodicos.unb.br/index.php/erbel/article/view/9967/8800

 COUTO, Hildo Honório do. Análise do Discurso Ecossistêmica. Árboles y rizomas v. 3, n. 1, p. 101-104, 2021.

http://www.revistas.usach.cl/ojs/index.php/rizomas/article/view/4634/26003658 

KOEFOED, Geert; TARENSKEEN, Jacqueline. The making of a language from a lexical point of view. In: WEKKER, Harma (org.). Creole languages and language acquisition. Berlim: Mouton de Gruyter, p. 119-138, 1996.