sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Notas linguístico-ecossistêmicas sobre a linguagem neutra

Hildo Honório do Couto (UnB/GEPLE)

-A versão da Ecolinguística chamada Linguística Ecossistêmica – que é a que praticamos – tem uma posição muito clara e explícita sobre linguagem neutra. Para entender essa posição é preciso ir ao tripé inicial que diz que para haver uma língua (L) é preciso haver um povo (P) convivendo em determinado lugar, seu território (T).

-Partindo daí é fácil constatar que quem forma e transforma uma língua é o povo (P) em sua totalidade. Isso significa que toda inovação na língua (transformação, evolução) é introduzida por P, mesmo que o pontapé inicial tenha partido de um indivíduo que seja membro desse P.

-Qualquer indivíduo e qualquer grupo de indivíduos (segmento social) de P tem o direito de propor inovações na língua. Tem o direito de divulgar suas propostas de inovação por todos os meios lícitos de que dispuser a fim de tentar convencer os demais indivíduos (e segmentos sociais) da necessidade de se introduzir a inovação que deseja introduzir.

-O que não é legítimo é um indivíduo (ou um segmento social) tentar impor suas inovações aos demais membros de P à força. Isso seria ilegítimo. Divulgar e tentar incluir as inovações desejadas é perfeitamente legítimo. Impô-las, não.

-Não é legítimo tampouco, por ir contra os princípios do ecossistema integral da língua (LPT), alguém que tem poder impor inovações por decreto. Isso é violência. Isso não funcionou em nenhuma das ditaduras que tentaram fazê-lo. 

-A língua é do povo (P) como um todo, seu senhor absoluto. Mas, o povo apresenta muita diversidade grupal, muitos segmentos diferentes. Assim, é também legítimo cada grupo e cada segmento usar a linguagem que o identifica como tal, além, é claro, do direito de tentar convencer os demais grupos e segmentos sobre a legitimidade de suas especificidades linguísticas.  

-Como disseram Koefoed & Tarenskeen (1996, p. 132), "o vocabulário é produto da interação", dos atos de interação comunicativa que se dão na comunidade como um todo. Portanto, "não importa quem inventa uma nova expressão verbal porque não é sua simples invenção que faz dela uma palavra da língua da comunidade".

-Em suma, se uma inovação que algum grupo social ou algum indivíduo deseja introduzir na língua (L) for aceita, ela passará a fazer parte da língua de todos. Inovações não prosperam, não pegam, se forem impostas de cima para baixo pelo poder, no grito por grupos de pressão ou por indivíduos.

-Politicamente pode até não haver democracia, porém, na língua ela sempre existe, pois ela é do povo (P). Se P não aceitar determinada inovação, ela não pegará. Na história recente do Brasil os partidários do PT (Partido dos Trabalhadores) tentaram impor um feminino para a palavra presidente, a fim de dizer que Dilma Roussef era a "presidenta", no que, possivelmente, seguiam a presidente da Argentina Cristina Kirchner, que se considerava "la presidenta de Argentina". Não sei se lá a coisa pegou, mas no Brasil a forma "presidenta" só é usada por petistas e/ou simpatizantes. Afinal, a palavra "presidente" sempre foi de dois gêneros, com o que se diz tanto "o presidente" quanto "a presidente". Ironicamente, neste caso já não havia binariedade de gênero, mas os petistas tentaram impô-la. Outra ironia, o português estatal prevê as formas "o poeta" e "a poetisa". No entanto, hoje em dia muita mulher que faz poesia se considera "uma poeta". Só a evolução histórica da língua dirá o que pegou e o que não pegou.

-Por fim, projetos de lei para impedir o uso da linguagem neutra em determinadas circunstâncias, como o que tenta impedi-la na educação básica, também são ilegítimos. O que defendiam os fisiocratas liderados por François Quesnay (1694-1774) em economia, o laissez-faire (deixar as coisas fluírem espontaneamente), vale também para a língua. Deixando a totalidade dos seus falantes se comunicarem como quiserem, a evolução linguística se dará naturalmente. A língua tem muita coisa em comum com o mundo jurídico, mas, nesse ponto, ela difere radicalmente. Não se legisla sobre a língua. O que determina a introdução ou a exclusão de modos de se comunicar é a totalidade dos membros de P ao longo do tempo, mesmo que haja encontros e desencontros. 

 

 

Referências

COUTO, Hildo Honório do. Linguística ecossistêmica. ECO-REBEL v. 1, n. 1, p. 47-51, 2015:

https://periodicos.unb.br/index.php/erbel/article/view/9967/8800

 COUTO, Hildo Honório do. Análise do Discurso Ecossistêmica. Árboles y rizomas v. 3, n. 1, p. 101-104, 2021.

http://www.revistas.usach.cl/ojs/index.php/rizomas/article/view/4634/26003658 

KOEFOED, Geert; TARENSKEEN, Jacqueline. The making of a language from a lexical point of view. In: WEKKER, Harma (org.). Creole languages and language acquisition. Berlim: Mouton de Gruyter, p. 119-138, 1996.

 

domingo, 5 de setembro de 2021

 

NEGACIONISMO, CRIACIONISMO E OUTROS DISPARATES E IRRACIONALIDADES DO MESMO NAIPE

 

Hildo Honório do Couto

Universidade de Brasília

1. Introdução

Não é um texto a ser publicado em uma revista acadêmica. É mera incursão que fiz no domínio dos negacionismos e quejandos. Foi uma experiência interessante. Como mostram algumas pesquisas já antigas, o negacionista tem um QI de médio para baixo. Ele não é muito dato à reflexão a fim de verificar se suas crenças têm fundamento ou não. Ele acredita e pronto.

 

2. Negacionismo

O termo negationnisme foi cunhado pelo historiador francês Henry Rousso, no livro Le Syndrome de Vichy (1987). Silva (2021, p. 28) afirma que no Dictionnaire Larousse Online, está dito que negacionismo é uma “doctrine niant la réalité du génocide des juifs par les nazis, notamment l’existence des chambres à gaz” (doutrina que nega a realidade do genocídio dos judeus pelos nazistas, sobretudo a existência das câmaras de gás)”. No Dicionário Priberam Online lê-se que o termo designa “Que ou quem nega ou não reconhece como verdadeiro um facto ou um conceito que pode ser verificado empiricamente”. Em inglês se fala também em denialism, de deny (negar) que deu denial (negativa). Vale dizer, o negacionista nega achados científicos, resultados de longas pesquisas que usam metodologias publicamente replicáveis bem como fatos históricos amplamente comprovados. O que vale para ele é o que ele acha que é a verdade, com base em suas crenças, sua ideologia, não o que está comprovado publicamente, pela história e pela ciência.

Pode-se falar em “negacionismo radical” e “negacionismo moderado”. O criacionismo e o terraplanismo poderiam ser incluídos na categoria do negacionismo moderado, pois até certo ponto são anódinos, inofensivos. Mas, o negacionismo do ex-presidente americano Donald Trump e do brasileiro Jair Bolsonaro contra evidências científicas bem como o do ex-presidente do Irã Mahmud Ahmadinejad contra fatos históricos amplamente documentados e conhecidos pertencem ao pior tipo de negacionismo, o negacionismo radical, que é cego e enviesado por ideologias idiossincráticas. Ahmadinejad afirmou que não houve o holocausto provocado pelo regime de Hitler, mesmo diante do testemunho pessoal de pessoas que ainda estão vivas e de inúmeras provas históricas. De acordo com o filósofo Leonardo Boff, “o presidente brasileiro, súcubo de Trump, é o campeão absoluto entre os negacionistas” (BOFF, 2021).

Existem inúmeros tipos de negacionismo. Para mencionar apenas uns poucos temos o negacionismo climático, do holocausto, da ciência, da evolução, do coronavírus, do genocídio armênio, da chegada dos humanos à lua etc. Idiossincrasias negacionistas abundam. Afinal, a criatividade e a estupidez humanas não têm limites. A ciência vem lutando para produzir vacinas para imunizar a população, mas os negacionistas defendem o uso de cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina. O atual ocupante da presidência do Brasil é um verdadeiro garoto-propaganda da cloroquina. Frequentemente aparece em atos públicos exibindo o produto. Diante de críticas, chegou a debochar, dizendo: “quem é de direita toma cloroquina; quem é de esquerda toma tubaína”.

No presente momento (abril de 2021), a pandemia está completando um ano (no Brasil ela começou em março de 2020). As autoridades da saúde, a OMS, os pesquisadores de antídotos ao coronavírus, enfim todo mundo que segue os achados e os procedimentos científicos defendem distanciamento social, uso de máscara, lavagem constante das mãos, desinfecção com álcool em gel e outros recursos profiláticos. Infelizmente, porém, há um grupo de pessoas que nega tudo isso. Para elas não é necessário evitar contatos sociais. Pelo contrário, deve-se inclusive manter o comércio funcionando a todo vapor. Esse grupo é capitaneado por Jair Bolsonaro. Um dos negacionistas do seu pequeno grupo de apoiadores, Daniel Silveira, disse que a máscara é “focinheira ideológica”. Também ele é contra o isolamento social e a vacinação. Esse prepotente elemento é deputado federal. Ele foi preso por defender intervenção militar e fechamento do STF, além de divulgar notícias falsas. Essas notícias são veiculadas pelas mídias sociais que são um formidável veículo para a divulgação de ideias negacionistas. Como disse Umberto Eco, por meio delas qualquer imbecil consegue divulgar o que pensa tanto quanto um prêmio Nobel.

Há interpretações psicanalíticas das atitudes dos negacionistas. Falando de Donald Trump e Jair Bolsonaro – de novo eles! – o psicanalista italiano Massimo Recalcati disse que “o vandalismo político irresponsável desses dois trágicos líderes tem uma matriz fantasmática que poderíamos definir grosso modo puberal-adolescente: A morte e a doença não existem e se existissem não me diriam respeito; a onipotência da minha imagem é imune a qualquer risco; se algum outro for atingido, faz parte do jogo mas este fato não determinará o fim do jogo do qual continuo senhor”. Com efeito, “a atitude negacionista pertence clinicamente ao tempo da adolescência patológica, onde a reivindicação absoluta da própria liberdade aparece desvinculada de qualquer referência ética àquela da responsabilidade (RECALCATI, 2020).

José Szwako também apresenta uma interpretação freudiana do negacionismo. Em sua opinião, “não só o negacionista se acha ‘razoável’, como também lhe é mentalmente impossível não ter ‘a razão’. Por isso, “mesmo quando se vale das fontes tradicionais da imprensa brasileira, o negacionista é seu ‘crítico’ (“não acredito em nada”) e lê até onde lhe apraz, isto é, até que a defesa idealizada do mercado siga satisfeita com seu ideal de família”. Para o negacionista, “o eu da negação, contudo, não [é] para si negacionista, pois ‘quem não sabe’ é a tia e o tiozão; a ‘desinformação’ é projetada nos seus pais e avós”. Em termos claramente psicanalíticos, o autor diz que “a utopia oral do negacionismo é duplamente escatológica. Seu desejo de fim do mundo é um desejo cadavérico, repleto de moribundos, putrefação e lixo”. Especificamente sobre Bolsonaro, Szwako diz: “A base e o presidente parecem, na verdade, disputar quem é mais ‘realista’, quem é mais capaz de ignorar os desmentidos diários de suas opiniões”. Tanto que “o seu eu faz mais que editar a realidade (o que poderia ser dito de qualquer paixão ou neurótico saudável): de modo perverso, escolheu ‘se informar’, e falsifica a própria falsificação sem desconhecer a sua dupla falsidade – sabe, portanto, que a fake news é fake” (SZWAKO, 2020).

O negacionismo é parente próximo do conspiracionismo. Frequentemente seus seguidores negam determinada situação ou evento porque acham que se trata de uma conspiração de alguém ou algum grupo para proveito próprio e/ou finalidades excusas. O conspiracionismo é assunto da próxima seção. Passemos a ela.

 

3. Conspiracionismo

Alguns autores dizem que o conceito de teoria da conspiração teria surgido com Karl Popper em 1945, que considerava o que “denunciou como abusiva uma hipótese (em inglês theory) segundo a qual um acontecimento político foi causado pela ação concertada e secreta de um grupo de pessoas que tinham interesse em seu resultado” (Wikipedia em francês). Outros dizem que ela surgiu nos Estados unidos em 1964, por ocasião do assassinato de John Kennedy. Seja qual for sua origem, o significado atribuído a ela nos diversos contextos é aproximadamente o mesmo. A Wikipedia em alemão diz que “como teoria da conspiração (Verschwörungstheorie) entende-se a tentativa de explicar uma situação, um acontecimento ou uma transformação por meio de uma conspiração, isto é, mediante a ação direcionada, conspirativa de um grupo geralmente pequeno de atores visando um objetivo geralmente ilegal ou ilegítimo”. Em francês essa ideologia é conhecida pelo nome de théorie du complot e em italiano como teoria del complotto e sindrome del complotto, à qual Umberto Eco dedicou alguns ensaios.

A teoria da conspiração tem muitas afinidades com o negacionismo, pois, quem considera qualquer situação ou acontecimento como resultado de um complô ou conspiração está negando evidências em contrário do que pensa; nega até resultados de sérias pesquisas científicas. Quem não concorda com os conspiracionistas está conspirando com vistas a algum interesse próprio ou de seu grupo.

Existem dois tipos de conspiração: conspiração real (ECO, 2017) e conspiração imaginária. As primeiras se dão com relativa frequência na administração (governança) de países e de grandes empresas. Por exemplo, um pequeno grupo de pessoas se reúne na surdina a fim de maquinar a derrubada de quem está no poder, administrando o país ou a empresa. As segundas são fruto de mentes mal informadas, que sempre acham que determinados fatos tidos como verdadeiros não passam de conspiração de alguém ou algum grupo de pessoas a fim de obter alguma vantagem.

Muitos pensadores dedicaram ensaios à teoria da conspiração. Umberto Eco, por exemplo, diz em uma de suas publicações sobre o assunto:

 

Acaba de ser traduzido para o italiano o livro de Kate Tuckett, Cospirazioni. Trame, complotti, depistaggi, e altre inquietanti verità nascoste (2015). Em uma resenha no Corriere della sera Ranieri Polese lamentava que ele trata de uma grande quantidade de presumíveis conspirações, dos Templários à morte de Mozart, do assassínio de Kennedy à morte de Lady Diana, da ‘verdade’ sobre o 11 de setembro aos pseudo-mistérios cristológicos revelados por Dan Brown no Código Da Vinci, mas se esquece do talvez maior exemplo de construção de um complô mundial, os famigerados e mentirosos Protocolos dos Sábios de Sião” (ECO, 2016).

O autor continua dizendo,

 

Protocolos à parte, a síndrome do complô é tão antiga quanto o mundo e quem definiu de modo brilhante sua filosofia é Karl Popper, em um ensaio sobre a teoria social da conspiração que se encontra em Conjectures and refutations (1976) “A dita teoria, mais primitiva do que muitas formas de teísmo, é semelhante à que se encontra em Homero. Consideravam o poder dos deuses de modo que tudo que acontecia diante de Troia era nada mais do que um reflexo das múltiplas conspirações tramadas no Olimpo. A teoria social da conspiração é na verdade uma versão desse teísmo, da crença em divindades cujos caprichos e vontades dominam tudo. Isso é consequência do desaparecimento da referência a deus e da seguinte pergunta: “Quem está no seu lugar?” Este é agora ocupado por diversos homens e grupos poderosos – sinistros grupos de pressão aos quais se pode imputar o surgimento da grande depressão e todos os males que nos afligem [...]. Quando os teorizadores da conspiração chegam ao poder, ela adquire a aparência de uma teoria que descreve eventos reais. Por exemplo, quando Hitler conquistou o poder, acreditando no mito da conspiração dos Sábios de Sião, tentou não ser superado por sua própria constraconspiração (ECO, 2016).

 

Vejamos alguns exemplos de conspirações reais e de umas poucas teorias da conspiração, entre as inúmeras que existem por aí. Comecemos pelas conspirações reais. Uma das primeiras de que se tem conhecimento é a conspiração de Catilina (108-62 a. C.) para derrubar a República Romana e seu poder oligárquico. A obra de Cícero (106-43 a C) As catilinárias é o conjunto de quatro discursos contra o que Catilina andava tramando. A chamada Inconfidência Mineira, ou Conjuração Mineira, foi liderada (pelo menos no final) por Tiradentes, em Vila Rica, em 1789, e era contra a iminente derrama e contra o domínio português, que culminou com o enforcamento do líder. A Inconfidência Mineira foi precedida de diversos levantes, motins, sublevações e sedições, como a sedição ocorrida no sertão próximo ao rio São Francisco em 1736 contra os representantes da coroa portuguesa devido à cobrança dos quintos reais. Temos também conspiração liderada pelo coronel Claus von Stauffenberg para assassinar Hitler em 1944, no contexto da Operação Valquíria. Enfim, todo golpe de estado começa com um grupo de conspiradores reais.

Passemos às conspirações imaginárias, melhor, imaginadas. Tem gente que ousa dizer que o atentado de 11 de setembro de 2001 contra as torres gêmeas de New York foi tramado pelo governo George Bush a fim de ter um motivo para a invasão do Iraq. Alguns pessoas dizem que o coronavírus foi criado em laboratório na China a fim de vender antídotos e ganhar muito dinheiro. Há os que acreditam que a ideia de aquecimento global é uma mentira de quem é contra o desenvolvimento econômico. Nos dois excertos de textos de Umberto Eco transcritos acima mencionam-se outros exemplos. Na internet fala-se de milhares de conspirações imaginadas. Não vale a pena continuar alinhando crenças (crenças?) estapafúrdias como essas, verdadeiros embustes.

 

4. Criacionismo

Talvez a ideia defendida pelos criacionistas exista pelo menos desde o Gênesis bíblico, sob a forma de mito. Como tal, é uma teoria ingênua, inocente, que em princípio não ofende ninguém, a não ser que venha associada ao conspiracionismo e, sobretudo, ao negacionismo. A não ser também que não seja usado como pretexto para se praticar algum tipo de etnocentrismo, por exemplo, discriminar religiões de pequenos grupos étnicos, como os ameríndios e os africanos. A ideologia do criacionismo surgiu por motivação religiosa. Até hoje muitas autoridades eclesiásticas, de diversas denominações religiosas, a defendem. No catolicismo não poderia ser diferente.

Na Wikipedia em inglês encontra-se a informação de que o termo “criacionista” apareceu pela primeira vez em 1842 no rascunho do que viria a ser a Origem das espécies (1859), de Charles Darwin. Diz-se também que Darwin usou o termo em correspondência com colegas. Eu não consegui checar essas informações, mas elas parecem plausíveis.

No fundo, os criacionistas radicais são também negacionistas, por negar os achados da teoria da evolução das espécies. De acordo com eles, tudo foi criado por Deus, como narrado no livro Gênesis da Bíblia. Eles acham que a hipótese da origem monogenética das espécies que se diversificariam cladogeneticamente está errada. Cada espécie nasceu como tal, ou seja, defendem a poligênese. Tudo isso por um desígnio divino.

O uso do termo se intensificou junto aos cristãos fundamentalistas norte-americanos no início da década de vinte do século passado. Várias denominações cristãs apoiam o criacionismo, como o movimento adventista, por exemplo. O Papa Francisco tem se manifestado a favor da ciência em diversas oportunidades, mesmo enfrentando a fúria dos católicos conservadores.  

 

5. Terraplanismo

A crença de que a terra é plana deve ter existido desde a época do homo erectus ou, pelo menos, desde o homo sapiens, quando não pelo seu limitado raio de visão e de ação. Quando os humanos começaram a refletir, a olhar para o mundo e, sobretudo, para o céu estrelado tentando decifrá-lo, a crença deve ter continuado. É assim que pensavam os egípcios, os babilônios e é isso que se pode deduzir da obra de Homero (Ilíada, Odisseia). Entre os filósofos gregos pré-socráticos, Empédocles (495-435 a C) defendia essa ideia. Entre os pensadores da época da filosofia helenístico-românica, temos pelo menos Epicuro (341-270 a C), como se lê em Faria (2019, p. 70, 91).

A crença na terra plana era comum também entre os antigos povos nórdicos e germânicos, na antiga filosofia indiana e na chinesa. No caso desta última, temos Taoísmo, do qual as duas obras mais famosas são o I ching (O livro das mutações) e o Tao te ching, de Lao Tzu. Conta a lenda que naquela época havia um pensador na China que tinha medo de a lua e o sol caírem sobre a terra. Para o que interessa no presente contexto, é interessante citar os comentários sobre o I ching feitos por Jean-Philippe Schlumberger.

 

Observamos que, tanto para os chineses como para nós, o céu é redondo e a terra, quadrada. Trata-se de dados simbólicos básicos, que caracterizam toda a humanidade por uma razão bastante simples: é assim que se . A noite estrelada forma uma cúpula ou um domo acima do homem, sobretudo se este a contempla num lugar descoberto em que o ar é puro, como numa savana ou num deserto. O quadrado da terra também é um dado inteiramente natural, já que o horizonte tem quatro dimensões: adiante, atrás, lado direito e lado esquerdo. Esse horizonte é plano; nas grandes planícies, trata-se da mais reta de todas as linhas visíveis. Quatro linhas retas traçadas com um bastão no saibro ou na poeira formam um quadrado. Estou no meio desse quadrado, eu me represento por um ponto. Isso tem como resultado o número cinco, um número fácil de contar nos dedos de uma única mão. Esse mesmo ponto me permite, com um pouco de habilidade, traçar o círculo do céu: por conseguinte, eu, o ponto, estou no centro do que está acima. Como é bastante evidente que não estou nesse lugar fisicamente, eu o faço no sonho, em que tenho a sensação de voar, ou pelo grande ancestral de que eu, assim como todos os meus irmãos, faço parte (SCHLUMBERGER, 1997, p. 41).

  

A ideia de que a terra é redonda também é bem antiga. Falando de Tales (ca. 624-562 a C), Fuillée (1875) disse que “em astronomia ele dizia que a terra é redonda” (p. 32). Os pitagóricos tinham opinião semelhante, como o próprio Pitágoras (582-500 a C). Para eles, “a Terra, os corpos celestes e o universo em seu conjunto eram esféricos, pois a esfera era o mais perfeito dos sólidos geométricos. Os diferentes corpos, no Universo, moviam-se com um movimento circular uniforme, de vez que o círculo era a figura geométrica perfeita" (MASON, 1962, p.18). Segundo Alfred Fischl, “eles haviam reconhecido a forma de bola da terra e dos outros corpos celestes”.

Havia também os que achavam que a terra apresentava forma cilíndrica. Assim, “Anaxágoras, um típico filósofo jônio, sustentava que a terra era um cilindro, e não uma esfera, como os pitagóricos a julgavam” (FISCHL, 1962, p. 22). O importante no presente contexto é que para eles ela não era plana. Todo esse conhecimento foi reunido por Eratóstenes (276-194 a C) em seus estudos de geografia matemática e astronômica. Para todos eles, a terra era vista “como um globo dotado de dois polos e um equador" (MASON, 1962, p. 37). Possidônio (+100 a C) falou de esfericidadade da terra indiretamente, tentando determinar sua circunferência. Ele era “o grande matemático dos estoicos” (FISCHL, 1962, p. 153).

A despeito de tudo que acaba de ser dito, ou seja, a despeito de a esfericidade da terra ter sido demonstrada desde a Antiguidade, a concepção de que a terra seria plana perdurou por muitos séculos. Surpreendentemente ela subsiste até os dias de hoje, felizmente em círculos restritos, compostos de pessoas que negam os achados da ciência, os terraplanistas, logo, todo terraplanista é também negacionista.

Os terraplanistas contam com associações com vários membros, têm canal no YouTube, enfim, ainda há muita gente que acredita que a terra é planiforme. Nos EUA existe a Flat Earth Society (Sociedade da Terra Plana). Para os terraplanistas, dizer que a terra é redonda é uma falácia dos globalistas. Tanto que odeiam a NASA, pois, juntamente com inúmeros satélites artificiais, ela tem mostrado o globo azul pairando no espaço sideral, cena vista pela primeira vez por Yuri Gagarin em 1961.

Mesmo assim, os terraplanistas acham que Copérnico, Tycho Brahe, Kepler, Galileo, Newton e Einstein são mentirosos. O que demonstraram não é a verdade. Verdade é aquilo em que acreditam. Nem o fato de um casal italiano que saiu em um veleiro à procura da beirada da terra ter se perdido os convence. Esse casal teve que ser resgatado pela guardia costiera italiana, munida dos recursos tecnológicos necessários providos pela ciência que eles negavam.

 

6. Geocentrismo

Entre os gregos, quem primeiro disse que o sol gira em torno da terra foi o filósofo alexandrino Cláudio Ptolomeu (90-168 a C), em seu livro Almagesto (Sintaxe matemática). Usando epiciclos e deferentes ele criou um modelo de movimento dos corpos celestes bem avançado para a época. A ideia foi aceita inclusive por Aristóteles, a meu ver o maior cientista de todos os tempos. O modelo prevaleceu nas sociedades da Idade Média. Mas, o que lhe deu mais força foi a Igreja tê-lo transformado em um dogma, com o que ele sobreviveu por mais de uma dezena de séculos. Houve até mesmo quem fosse executado (queimado na fogueira) por defender a ideia contrária, considerada herética, de que é a terra que gira em torno do sol (heliocentrismo). Um deles é Giordano Bruno (1548-1600), que defendia outras ideias consideradas heresias. Galileo Galilei (1564-1642) só não morreu porque se retratou perante o tribunal.

A crença de que a terra é o centro do mundo, melhor, de que o sol gira em torno da terra se perde nas brumas da história. Para os leigos, o que se vê a olho nu é o sol girando em torno da terra. É possível prová-lo simplesmente mostrando o movimento do sol. Ao alvorecer, ele nasce no leste e vai subindo no céu, passa pelo zênite (sobre nossa cabeça, oposto ao nadir, sob nossos pés), começa a descer na direção do oeste até se por e desaparecer no horizonte. No dia seguinte, o movimento se repete, indefinidamente. Portanto, é possível “provar”, ou “demonstrar” direta, concreta e objetivamente que ele gira em torno da terra. Não há como negar, pois é o que se vê. Se você não acreditar, eu posso lhe mostrar. A propósito do conhecimento, Giordano Bruno (1548-1600) distingue “quatro graus, em ordem hierárquica ascendente. São eles: os sentidos, cujo objeto é o sensível, e a verdade que manifesta é mera aparência”. A razão, o intelecto e a mente é que estão no nível do conhecimento científico (apud PADOVANI; CASTAGNOLA, 1958, p. 215-216).

Por se basearem apenas nos sentidos, no caso, a visão, não entendem que há uma paralaxe. De uma perspectiva indutiva, que parte dos dados para se chegar a generalizações, fica “cientificamente” provado que é o sol que gira em torno da terra, não o contrário. Infelizmente, porém, nossa experiência sensorial pode nos enganar. “O sol girando em torno da terra” é uma visão a partir de dentro do próprio sistema. Mas, a ciência não se limita a essa visão; ela olha para a relação sol-terra a partir de fora dos dois, mesmo que isso tenha que ser feito por método geométrico e cálculos matemáticos. Atualmente, isso pode ser feito a partir de um satélite artificial que nos fornece uma visão holística da relação entre sol e terra. Sem a menor sombra de dúvida, fica cientificamente demonstrado, e até mostrado, que a terra gira em torno do sol.  

De todos os disparates e de todas as irracionalidades discutidas neste ensaio, o geocentrismo é o mais anódino, o mais inofensivo. Poder-se-ia mesmo dizer que é o que faz mais sentido, com perdão da contradição, pois, o que é disparatado e irracional é logicamente contraditório, portanto, não é muito legítimo dizer que faz sentido. No entanto, ele é parte do senso comum até os dias de hoje. Afinal, o que vemos todos os dias é o “sol girando e torno da terra”. Se alguém discordar, basta ir com o descrente para um lugar aberto antes do amanhecer e lhe mostrar o movimento do sol até o anoitecer. Este é o melhor exemplo para se mostrar que o que nos mostram os cinco sentidos não é necessariamente o mundo como ele é. Como diz a sabedoria popular, as aparências enganam.

 

 

7. Heliocentrismo

O primeiro pensador a dizer que a terra gira em torno do sol foi Aristarco de Samos por volta de 270 a.C. Segundo Fuillée (1875, p. 45) houve quem defendesse a ideia indiretamente, como Pitágoras (582-500 a C), para quem “a terra não deve ser o centro do mundo”. Hiketas (ca. 400 a.C. - -335 a.C.) disse que a terra gira em torno de seu eixo (rotação da terra). Seleuco de Selêucia procurou fundamentar cientificamente esse sistema já em 150 a C. O jônico Anaximandro de Mileto (611-548 a C) dizia que "a terra se assemelha grandemente com uma esfera " (FISCHL, 1962, p. 10). Assim, Copérnico pôde referir seu sistema a esses precursores” (FISCHL, 1948, p. 19, 22) (Russell (1982) p. 85ss).

Sempre que se fala sobre heliocentrismo o primeiro nome que vem à tona é o de Nicolau Copérnico (1473-1543). Ele formulou a hipótese no livro De revolutionibus orbium coelestium (Da revolução de esferas celestes), em 1543, de modo mais elaborado, não apenas metafisicamente. A ideia provocou uma revolução na Astronomia, a tal ponto que Immanuel Kant a chamou de “revolução copernicana”, na Crítica da razão pura (1781). Mais próximo de nossa época, Thomas Kuhn publicou o livro A revolução copernicana (1957), que teve um impacto muito grande na história da ciência.

O heliocentrismo, a ideia de que a terra gira em torno do sol, foi ganhando adeptos um atrás do outro. Um deles é o dinamarquês Tycho Brahe (1546-1601), nascido três anos após a morte de Copérnico. Brahe é um dos mais ilustres representantes da nova ciência, que se baseava fundamentalmente na observação direta, tendo chegado a conclusões importantes sobre as estrelas e os planetas. Essas conclusões eram uma síntese eclética das concepções tradicionais (que incluíam o geocentrismo) e as modernas, ligadas a Copérnico. Seus achados constituíram subsídios importantes para Johannes Kepler formular as leis subjacentes à teoria copernicana. 

Em seguida vem Giordano Bruno (1546-1600), contemporâneo de Tycho Brahe. Bruno defendeu ideias que iam de encontro aos dogmas da igreja, ou seja, ideias consideradas erros teológicos, heresias, blasfêmias e conduta imoral. Entre essas heresias estava a defesa do heliocentrismo, sua discordância em relação à condenação eterna, à trindade, à divindade de Cristo, à virgindade de Maria e à transubstanciação. Por isso foi condenado à morte na fogueira pela Inquisição do Santo Ofício. No entanto, sua condenação e execução pelos algozes da Inquisição saiu pela culatra: sua morte fez dele um mártir e acabou chamando a atenção para as ideias que defendia.

O terceiro defensor ilustre do heliocentrismo é Galileo Galilei (1564-1642), 18 anos mais novo que Giordano Bruno. Portanto, foram contemporâneos. Galileo só não foi executado porque se retratou perante os algozes da Inquisição, num famoso processo que inclusive foi objeto de uma peça teatral de Bertolt Brecht, A vida de Galileo, escrita entre 1939 e 1943. Tudo isso aconteceu porque o geocentrismo dominou a Astronomia na Antiguidade e na Idade Média, como um dogma de Igreja. Corre a lenda que mesmo tendo se retratado e dito que é o sol que gira em torno da terra no tribunal da Inquisição, ao sair ele teria murmurado para si mesmo: eppur si muove (“mas ela se move – a terra, hhc), ou seja, a terra se move ao redor do sol. Muitos cientistas inclusive da atualidade justificaram sua retratação. Se ele tivesse mantido suas ideias revolucionárias e antidogmáticas perante os algozes, teria sido executado e o mundo teria perdido um grande cientista. Ele pôde continuar vivendo e fazendo suas pesquisas, mesmo que tenha tido que viver o resto da vida em prisão domiciliar. Sua morte prematura teria sido uma grande perda para a ciência.

O quarto grande defensor do heliocentrismo é Johannes Kepler (1571-1630), alemão, que foi assistente de Tycho Brahe. Com ele o geocentrismo foi definitivamente rechaçado nos meios científicos, quando não devido ao fato de ele ser uma das figuras mais importantes no período da revolução científica do século XVII. Suas ideias foram uma das bases para a teoria da gravitação universal de Newton.

 

8. Discussão

A filosofia dos negacionistas é o Achismo. O mundo, as coisas, os acontecimentos, os eventos são aquilo que acham que são, não o que efetivamente são. Eles veem em tudo apenas a parte que lhes interessa, a partir do que conseguem ver. Não são capazes de ver o todo (holismo). Por verem só uma parte, são parciais. Assim, cabe uma pergunta: eles procedem assim por ignorância, por ingenuidade ou apenas para discordar por discordar, para serem diferentes? Ou existe uma intenção maquiavélica por trás de suas atitudes, uma velhacaria, má fé?

Silva (2021, p. 27-28) apresenta uma síntese das ideologias discutidas acima (criacionismo, negacionismo, terraplanismo, geocentrismo), acrescentando a elas o bolsonarismo. Ele é o negacionista-mor brasileiro, despudoradamente maquiavélico. Seu desejo não tão velado assim é implantar uma ditadura militar, de modo que possa ditar a todo mundo o que acha e o que quer. Por agrupar todas as demais supra, ele é o campeão de obscurantismo e do primitivismo, no pior sentido dessas palavras. Para ele, quem não adere a essas ideologias, está praticando “ideologia”, mas ele não. Mal sabe ele que a sua é ideologia no pior sentido da palavra. Por tudo isso, nenhuma dessas ideologias merece o nome de teoria. Talvez possam ser chamadas de síndrome, como diz Eco da teoria da conspiração, que ele chama também de “síndrome do complô” (ECO, 2016).

Das cinco ideologias aqui comentadas (negacionismo, conspiracionismo, criacionismo, terraplanismo, geocentrismo), as três últimas podem ser inofensivas, caso não estejam associadas ao negacionismo nem ao conspiracionismo. Se contiverem também um negacionismo moderado, continuam anódinas. Só se tornam perigosas, nocivas, se vêm associadas ao negacionismo radical. Asseverar que a terra é plana não ofende ninguém. O mesmo se pode dizer de quem nega a teoria da evolução (criacionismo) e de quem acha que é o sol que gira em torno da terra. São ideologias ingênuas, às vezes infantiloides e até mesmo folclóricas. São defendidas por pessoas com pouca (in)formação cultural e científica. Acreditam mais no que os vizinhos e conhecidos dizem do que nos achados da ciência. Atualmente se informam basicamente pelo que recebem pelas redes sociais, sem sequer checar as informações antes de repassá-las a outrem. 

Márcio M. S. Silva diz sobre dessas ideologias;

 

A essas quatro ideologias aberrantes, poderíamos acrescentar a ‘ideologia bolsonarista’”, que ele considera primitiva. Sobre todas elas Silva diz que “Se as filosofias construcionistas dizem, com base em argumentos filosoficamente aceitáveis, que a linguagem cria o mundo, as ideologias recém-elencadas dizem que o mundo, os fatos, a verdade é o que interessa a mim e ao meu grupo, é o que nós queremos que aí esteja e que seja como queremos que seja. O que os outros veem é mentira, é conspiração para defender interesses espúrios e incógnitos”. A conclusão que o autor tira disso é que “Até parece que os defensores dessas ideologias estão a fim de fazer deboche com a situação, fazer gozação de nossa cara, zoar conosco; só pode ser isso. É difícil acreditar que sejam sinceros no fundo de suas consciências” (SILVA, 2021).

 

De todas essas ideologias estapafúrdias, o negacionismo e a teoria da conspiração são as mais nocivas porque são movidas pelo conflito, que leva ao ódio, que pode levar à violência. Tirando o geocentrismo, que é bastante antigo e que para o sentido da visão parece fazer sentido, todas essas ideologias têm muito em comum. Frequentemente elas se imbricam umas nas outras.

Reza a lenda que Albert Einstein teria dito que é mais fácil desintegrar um átomo do que um preconceito arraigado. Você pode matar uma pessoa, mas não suas crenças.  Não há argumentos científicos, históricos ou exemplos concretos que convençam os negacionistas e os conspiracionistas. Se lhes mostrarmos um pau e eles disserem que é pedra, nada os faz mudar de opinião. Por isso, Márcio M. G. Silva argumenta que “ideologia cega e ensurdece as pessoas. Não interessa o que elas veem nem o que ouvem. Elas estão afetadas pelo Problema de Orwell, como formulado por Noam Chomsky: as evidências abundam, ninguém em sã consciência discorda, mas os seguidores dessas ideologias juram de pés juntos que não é verdade. Tudo é culpa da imprensa, que só quer falar mal de sua ideologia, distorcendo os fatos” (SILVA, 2021, p. 28).

Poderíamos aplicar aos seguidores das ideologias absurdas comentadas acima a asserção de Umberto Eco de que “as redes sociais dão direito de palavra a uma legião de imbecis que antes se expressavam apenas no bar depois de um pouco de cerveja, sem incomodar a coletividade. Logo em seguida se calavam, ao passo que agora têm o mesmo direito à palavra que um prêmio Nobel. É a invasão dos imbecis” (La Stampa, 23/06/2019). Eco disse isso quando recebeu o título de doutor honoris causa em comunicação e cultura na Universidade de Turim. Minha primeira reação foi considerar a asserção de Eco uma atitude preconceituosa. No entanto, diante de tantas asneiras, tantas imbecilidades que ouvimos pelas redes sociais, tantas notícias falsas, maldosas mesmo, bem como diante das ideologias comentadas no presente artigo, sou propenso a dar razão a ele. Qualquer negacionista ou conspiracionista, qualquer imbecil pode divulgar o que acha sobre qualquer coisa aos quatro cantos do mundo. Quando é apenas besteira inocente, tudo bem, mas, frequentemente são palavras ferinas, ofensivas, maldosas, mentirosas que podem afetar a reputação de alguém inocente.

As cinco ideologias discutidas acima se entrecruzam de diversas formas. Os terraplanistas negam a esfericidade da terra; os criacionistas negam a teoria evolucionista; os geocentristas negam que a terra gira em torno do sol; os conspiracionistas negam tudo que refuta sua crença de que há conspiração naquilo em que acreditam. Os bolsonaristas negam tudo que a ciência, a história e o senso comum nos mostram se não estiver de acordo com aquilo em que o guru Bolsonaro acredita. 

Falando dos “idiotas da pandemia”, Luiz Felipe Pondé disse que “a ciência exige pensamento racional, mas grande parte da humanidade tem dificuldade para pensar racionalmente, frequentemente agindo como se agia na época das cavernas”. O atual presidente está nesse caso. Tudo isso leva ao negacionismo (TV Cultura, 15/03/2021, 21h10min).

 

7. Observações finais

Arne Naess escreveu um livro inteiro para defender a importância do sentimento (da intuição, da inteligência emocional) frente ao pensamento racional, mas sem negá-lo (NAESS, 2002). Os dois são parte de um todo.

A recolha de dados para este artigo me permitiu fazer uma breve, porém interessantíssima viagem pela pré-história e história da ciência. Foi muito bom ter uma ideia de como as bases epistemológicas de nosso conhecimento científico foram sendo construídas. 

Para terminar, apresento um diálogo possível entre um negacionista e um cientista no que tange às interações entre a terra e o sol:

 

-Cientista: A terra gira em torno do sol.

-Negacionista: Não, é o sol que gira em torno da terra.

-Cientista: Por que você afirma isso?

-Negacionista: Porque é o que se pode ver e é eu vejo todos os dias.

-Cientista: Infelizmente, o que você vê não é o que você acha que vê.

-Negacionista: Por que não?

-Cientista: O que você percebe pelo sentido da visão é apenas uma minúscula parte do todo em que as relações entre a terra e o sol estão inseridas. Uma visão do todo, a partir de fora da terra e do sol, mostra a terra girando em torno do sol. Do contrário seria como você querer avaliar a posição relativa de sua casa em relação ao bairro em que ela se encontra olhando a partir de dentro da própria casa. 

 

Referências

BOFF, Leonardo. Os negacionistas ameaçam a vida na terra. Revista IHU On-Line. edição 546, 04 de fevereiro de 2021. Disponível em:

http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/606539-os-negacionistas-ameacam-a-vida-na-terra-artigo-de-leonardo-boff

ECO, Umberto. La síndrome del complotto. Query: La scienza indaga i mysteri. 23/02/2016. Disponível em:

https://www.queryonline.it/2016/02/23/speciale-umberto-eco-la-sindrome-del-complotto/

_______. Conclusioni sul complotto: da Popper a Dan Brown. CICAP 30-05-2017. Disponível em: https://www.cicap.org/n/articolo.php?id=278419

FARIA, Rodrigo Cristino de. Filosofia, história, astronomia: um estudo sobre Ptolomeu. Tese de Doutorado em Filosofia, USP, 2019.

FISCHL, Johann. Geschichte der Philosophie. Graz: Verlag Anton Pustet, 1948, 2ed.

FUILLÉE, Alfred. Histoire de la philosophie. Paris: Librairie Delagrave, 1875.

MASON, Stephen Finney. História da ciência. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1962.

MILANESI, Claudio. Il complotto, il gioco, la realtà: Umberto Eco, George Orwell, Primo Levi, Dan Brown. In: Magni, Stefano; Palombi, Mélinda (orgs.). La réécriture de l’histoire dans les romans de la postmodernité. Aix-en-Provence: Presses Universitaires de Provence, 2015, p. 91-102.

NAESS, Arne. Life’s philosophy: reason and feeling in a deeper world. Athens: the University of Georgia Press.

PADOVANI, Humberto; CASTAGNOLA, Luís. História da filosofia. São Paulo: Edições melhoramentos, 1958, 3ed.

POPPER, Karl. Conjectures and refutations. Londres e Henley: Routledge & Kegan Paul, 1976, 4ª. ed.

RECALCATI, Massimo. Os negacionistas puberais. Revista IHU On-Line, edição 546, 12/08/2020. Disponível em:

http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/601790-os-negacionistas-puberais-artigo-de-massimo-recalcati

RUSSELL, Bertrand. História da filosofia ocidental. São Paulo/Brasília: Cia. Ed. Nacional/Editora da UnB, 1982. 

SANTOS, Boaventura de Sousa. Negacionismo, gatopardismo e transicionismo. Revista IHU on-line, edição 546, 02/12/2019. Disponível em:

http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/604083-negacionismo-gatopardismo-e-transicionismo

SCHLUMBERGER, Jean-Philippe. I ching: princípios, prática e interpretação. São Paulo: Pensamento, 1997, 10ed.

SCHÖCH, Christof. La teoria del complotto nei romanzi di Umberto Eco o lo specchio del nichilismo contemporaneo. Toulon (La garde), 2017. Disponível em versão francesa e italiana em: https://www.romanistik.de/aktuelles/2000

SZWAKO, José. O que nega o negacionismo? Cadernos de subjetividade, PUC-SP, 2020.

SILVA, Márcio M. S. Um estudo do discurso do ex-capitão Jair Messias Bolsonaro pela Análise do Discurso Ecossistêmica. ECO-REBEL v. 7, n. 1, 2021, p. 18-34. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/erbel/article/view/36696/29025

VITA, Luís Washington. Momentos decisivos do pensamento filosófico. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1964.

 

quarta-feira, 4 de março de 2020

Discursística


DISCURSÍSTICA

Hildo Honório do Couto

Universidade de Brasília



Aqui está uma sugestão de troca do nome ‘Análise do Discurso’ por ‘Discursística. Trata-se de um neologismo na língua portuguesa, mas em ciência sempre precisamos criar neologismos. Eu fiz uma pequena sondagem no Google e não encontrei nenhuma ocorrência da palavra ‘discursística’. Mas, pelas regras sistêmicas1 da morfologia portuguesa ela é perfeitamente possível, logo, gramatical, no sentido da Gramática Gerativa, ou seja, é uma palavra inativada, prevista pelas regras de formação de palavras do português. Quanto a mim, a primeira vez que a mencionei, embora de passagem, foi em Couto (2019, p. 41). Aqui ela será caraterizada de modo mais pormenorizado. A expressão ‘Análise do Discurso’ designa uma área tão vasta e tão prolífica nos estudos da linguagem que bem merece um nome mais curto que, adicionalmente, pode ser comparado a ‘Linguística’. Muito provavelmente os especialistas da área não se mostrarão receptivos a essa sugestão de mudança de nome. No entanto, a meu ver a denominação univocabular ‘Discursística’ tem algumas vantagens frente à quadrivocabular ‘Análise do Discurso’, que consta das palavras ‘análise”, “de”, “o” e “discurso”, apenas com a preposição e o artigo fundidos. 

Há vários motivos que justificariam essa troca de nome. Em primeiro lugar, e como já observado, o objeto de estudo do que se tem chamado ‘Análise do Discurso’ é um dos mais investigados no Brasil e talvez na América Latina, bem como nos países latinos em geral. Na China já existem inúmeros trabalhos sob o título de ‘Análise do Discurso Ecológica’, inclusive uma variante chamada ‘Análise do Discurso Harmoniosa’, esta última iniciada no Centro de Ecolinguística da Universidade de Agricultura do Sul da China, em Guangzhou (Cantão)2. Como se vê, há ramificações nas teorias de Análise do Discurso. Por isso, parece apropriado usar-se um nome mais curto, como ‘Discursística’.

O termo univocabular ‘Discursística’ estaria em paralelo com muitas outras disciplinas científicas cujos nomes terminam pelo mesmo morfema ‘-ística’: Linguística, Estilística, Dentística, Estatística, Patrística etc. Nas universidades alemãs há departamentos dedicados ao estudo de línguas, literaturas e culturas, como Romanística (línguas, literaturas e culturas latinas), Germanística (línguas, literaturas e culturas germânicas), Escandinavística (línguas, literaturas e culturas escandinavas), Eslavística (línguas, literaturas e culturas eslavas) etc. Além disso, há disciplinas com nomes terminados de modo bastante parecido, como Onomástica e outros.

Adotando-se o termo ‘Discursística’, ficaria mais fácil criarem-se compostos como: a) Discursística Pêcheutiana; b) Discursística Crítica (em vez de ADC); c) Discursística Dialógica; d) Discursística Positiva (J. Martin); e) Discursística Ecossistêmica/Discursística Ecológica etc.

O nome ‘Discursística” deixaria bem clara sua relação com Linguística. Assim, Discursística trataria das questões de textos-discursos, ao passo que a Linguística se dedicaria aos demais fenômenos da linguagem, mesmo que mediante subdisciplinas como Sociolinguística, Psicolinguística, Semântica, Sintaxe, Morfologia, Fonologia etc.

Como estamos falando em discurso, seria interessante lembrar que a expressão ‘texto-discurso’ é preferível a simplesmente ‘discurso’ pelo fato de todo discurso ter que estar materializado em algum texto. Não há discurso sem um texto que o suporte. Assim, parece óbvio que é melhor falar-se em ‘texto-discurso’ em vez da palavra simples ‘discurso’ (aqui, sim, é recomendável o uso de composto). Mesmo quando o ‘discurso’ esteja materializado em uma manifestação não verbal, mas pictórica, em vídeo ou outras formas, tem que haver algum suporte material para ele. De qualquer modo, o que interessa diretamente à Discursística é, naturalmente, o ‘discurso’, embora sua materialização não possa ser deixada inteiramente de lado, em consonância com a nova visão do mundo trazida pela Teoria da Relatividade, a Mecânica Quântica, a Teoria dos Sistemas, a Ecologia etc., que procuram integrar em vez de segmentar e separar como se faz na Filosofia de Descartes. Procuram também ver o mundo como uma imensa rede de interações, não como um conjunto de coisas que se relacionam entre si em um espaço fechado, como na Física Clássica, de Newton.

É claro que na própria Linguística em geral há disciplinas com nomes hifenizados como ‘Sócio-linguística’, ‘Psico-linguística’, ‘Eco-linguística’, ‘Paleo-linguística’ etc. No entanto, nos dias de hoje normalmente essas palavras se escrevem sem hífen, com o que não seriam vistas como palavras compostas no sentido tradicional.

Às vezes é inevitável usar-se um termo composto, como no caso de “Linguística Ecossistêmica” e do já mencionado texto-discurso. No entanto, no que concerne às Análises do Discurso é possível e até aconselhável o uso de um termo único. Com efeito, o objetivo de seus praticantes não é pura e simplesmente analisar discursos. Eles vão muito além disso, frequentemente interpretando o conteúdo dos discursos, entre outras coisas. Talvez eles façam mais ‘interpretação’ do que ‘análise’. A análise seria apenas uma primeira etapa, que deve ser complementada com alguma interpretação. Assim sendo, por que “análise do discurso”?

Talvez ficasse até mais fácil a área se firmar como uma disciplina acadêmica, embora o que se chama de “Análise do Discurso” já seja amplamente dominante na academia. Uma disciplina com nome simples parece mais “científica” do que uma outra cujo nome seja um sintagma. Praticamente todas as disciplinas tradicionais, “clássicas” têm nome simples. No momento, não me ocorre nenhuma com denominação plurivocabular. Portanto, se os estudiosos da área adotassem o nome Discursística, pode ser que os linguistas que se dedicam a teorias formais, como a Gramática Gerativa, parassem de olhar de soslaio para sua área. Eu cheguei a ouvir de um linguista estruturalista da velha guarda que ‘Análise do Discurso’ não é Linguística, mas Literatura. Adotando o novo nome, seus praticantes poderiam dizer, “sim, nossa disciplina não é Linguística; ela é Discursística, pois se dedica a analisar e interpretar discursos, ou textos-discursos”.  



Notas

1 Para o conceito de regras sistêmicas, como integrantes das regras interacionais, ver Couto (2015, p. 64).

2 ECO-REBEL v. 6, n. 2, 2020 conterá um artigo com uma visão de conjunto da Ecolinguística na China.


Referências
Couto, Elza K. N. N. & Couto, Hildo Honório do. 2019. Uma leitura ecolinguística de “Se eu quiser falar com Deus” de Gilberto Gil. Linguística ecossistêmica. Ecolinguística: revista brasileira de ecologia e linguagem (ECO-REBEL) v. 5, n. 2, p. 40-53. Disponível em:


Couto, Hildo Honório do. 2015. Linguística ecossistêmica. Ecolinguística: revista brasileira de ecologia e linguagem (ECO-REBEL) v. 1, n. 1, p. 47-81. Disponível em:
https://periodicos.unb.br/index.php/erbel/article/view/9967/8800

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Porque você fala errado









Hildo Honório do Couto











PORQUE VOCÊ FALA ERRADO















Editora Hinoco

1987

(Livro inédito, que chegou a ser anunciado pela Cortez Editora/Autores Associados, mas eu suspendi a publicação devido às reviravoltas políticas mundiais).










1. 0 Que É Português Brasileiro 



Você já deve ter se surpreendido diversas vezes dizendo besteiras como "Eu falo tudo errado", "O fulano não sabe falar", etc. No fundo, no fundo, você não tinha convicção nenhuma sobre o que estava afirmando. Apenas repetia o que a escola, os gramáticos e todo o aparelho ideológico de estado incutiram em você. Em suma, você apenas repetia o que era domínio comum, a ideologia linguística segundo a qual falar bem é privilégio de uns poucos "eleitos". Escrever, então, nem se fale! É pior ainda. O "escrever bem" é apanágio de um grupo mais restrito ainda, só de "iluminados"
No inicio de 1986, eu publiquei um livrinho na Coleção Primeiros (número 164) da Editora Brasiliense, com o mesmo título do presente capítulo. O que tentei fazer nele foi, creio que pela primeira vez no Brasil, tentar conceituar a que é a língua de um povo ou, mais especificamente, o que é a língua do povo brasileiro, de um ponto-de-vista marxista. Nenhuma obra anterior, pelo menos até onde pude averiguar, tratara da questão desta perspectiva.
Não que eu queira dar uma de pioneiro. O fato de só em 1986 ter sido possível o surgimento de urn livro sobre a questão, de uma perspectiva marxista, tem justificativas históricas, tem causas extrínsecas, além das intrínsecas. As primeiras são os mais de vinte anos de ditadura militar e a consequente comunofobia (o comunismo passou a justificar as maiores atrocidades, de todos conhecidas) impingida em nós pelos aparelhos ideológicos e repressores de estado. Corn isso, não só a ideologia mas também os próprios termos "marxismo", "materialismo dialético e histórico" passaram a ser blasfêmias reprimíveis pelo Santo Oficio, aliás, DOI-CODI. Tanto assim que mesmo em 1986 eu ainda tinha pejo, aliás, receio, de usar explicitamente aquelas expressões, isto é, receio de escandalizar o leitor (e o pior é que muitos se escendalizaram, como veremos).
As causas intrínsecas para uma discussão tardia do assunto estão na alienação total vigente no ambiente das letras, sobretudo no que se refere à questão linguística, que para o status quo é mera questão de normatização gramatical (ou "gramatiquice", nas palavras do gramático Gladstone Chaves de Melo). No seu livro A Crise  da Psicanálise, Erich Fromm disse dessa ciência: "A moderna psicologia acadêmica e experimental é, em elevado grau, uma ciência que trata de homens alienados, é estudada por investigadores alienados, usando métodos alienados e alienantes" (p. 62). Até parece que ele estava descrevendo a situação na linguística. Se substituirmos o termo "psicologia" por "linguística" a carapuça serve perfeitamente. Parece não haver lugar onde a alienação se manifesta com mais intensidade do que na linguagem. Daí o perigo que ela representa, por isso ela pode ser usada (e é usada frequentemente) como instrumento de dominação e opressão.
Assim que o livro veio a lume, surgiram várias crtícas, algumas favoráveis (a maioria), outras desfavoráveis (apenas duas). Algumas delas foram publicadas em jornais, outras em revistas semanais ou semestrais. Até mesmo na televisão (TVE) o livro foi alvo de apreciação crítica. Além das duas críticas desfavoráveis publicadas em jornais de São Paulo, tive oportunidade de ouvir várias outras em encontros, em palestras e até em conversas de corredores. Por isso, resolvi dar urma resposta a elas, sobretudo às desfavoráveis que, apesar de minoritárias, foram feitas por pessoas que não tinham o direito de dizer os absurdos que disseram. No capítulo III  apresento a lista de todas as críticas e resenhas que foram feitas ao e do livro.
É claro que o surgimento de QPB não agradou aos guardiães dos privilégios linguísticos. Como verdadeiros sicofantas do sistema vigente, como dizia Marx dos economistas "vulgares", reagiram com uma violência muito superior à minha importância no contexto da cultura nacional. Se tivesse sido uma reação sincera, convicta, eu até que compreenderia. Mas não. Foi apenas um ato de defesa dos próprios privilégios. Foi reação no pior sentido da palavra, ou seja, no sentido de quem não age para melhorar, para revolucionar a situação injusta vigente, mas reagem quando alguém ousa fazê-lo. Tanto assim que nenhum dos dois principais detratores foi ao âmago da questão Nenhum deles sequer tocou no ponto nodal, no leitmotiv de toda a minha argumentação: a língua de um povo é a língua usada por esse povo. Nenhum deles tentou mostrar alguma incoerência interna na exposição do assunto (o português brasileiro). Os dois detratores se ativeram à periferia, ficaram na superfície, na aparência. Eu acho até que nem leram o livro todo, tamanha a superficialidade e leviandade de seus "argumentos". Seria como alguém que, baseado na "objetividade" do fato de que "o sol gira em torno da terra" (aparência superficial), pretendesse que isso fosse um fato cientificamente comprovado (essência, realidade intrínseca das coisas).
No 18 Brumário de Luís Bonaparte, Marx diz que "a sociedade é salva tantas vezes quantas se contrai o círculo de seus dominadores e um interesse mais exclusivo se impõe ao mais amplo". Pole bem, nas republiquetas latino-americanas, que sempre são "salvas" por homens "iluminados" tipo Videla, Pinochet, Somoza, Stroessner, Médicil, Geisel et caterva, quando uma categoria de trabalhadores entra em greve, o que es zeladores pela "ordem" fazem não é verificar se o salário deles é insuficiente para viverem. A única preocupação é com a perturbação da "ordem" (dos privilegiados). Se os trabalhadores estão passando fome, não vem ao caso. Antes de tudo a "ordem", só depois é que vem o "progresso". Quando um grupo de famílias instala seus barracos num terreno desocupado, vem a polícia e destrói tudo, enxotando-os. Se os desmandos, a corrupção e a impunidade na administração (em geral biônica) da economia do país fez com que es aluguéis subissem para três, quatro vezes o salário bruto do trabalhador, isso não é questionado. Antes de tudo, preservar a "ordem" (dos privilegiados). Se não há mais lugar nem debaixo da ponte, não importa, ignora-se. Antes de tudo a "ordem" (dos privilegiados).
A coisa no Brasil chegou a tal ponto que um dos mais legítimos representantes do poder autoritário e corrupto (autorrupto), que depredou o Brasil durante vinte anos (Antônio Delfim Netto), foi eleito deputado constituinte e, no gozo dessa deputação, disse, com o desplante e o e o cinismo que lhe são peculiares: "O presidente Sarney parece desconhecer que o presidente da república no Brasil tem três poderes formidáveis: a caneta, o Diário Oficial e a baioneta" (Correio Brazilense, 27/4/87, p. 2). Diante de um estado de coisas como esse, não é de admirar que urn livro de denúncia como QPB tenha despertado tanta ira nos sicofantas do poder linguístico.
O mesmo tipo de argumento vale para a questão da língua. Aqui também temos os policiais com seus cavalos, suas baionetas e seus cães amestrados. Se alguém ousa dizer que o desenvolvimento da língua acompanha o desenvolvimento das forças produtivas e das correspondentes relações de produção, surgem os defensores da "boa linguagem" para detê-lo (em todos os sentidos da palavra). Afinal, a língua portuguesa é aquilo que os "clássicos" nos legaram. Não podemos conspurcá-la com "vulgarismos", com regionalismos, com "solecismos", com cacofonias e quejandos. A língua deve ser mantida "pura". Se mais de 60% dos brasileiros dizem "nóis vai" em vez de "nós vamos" não importa. Ou melhor, importa no sentido de que constitui um aleijão e, como tal deve ser curado ou, se isso no for possível, ou, pelo menos escondido. Do contrário, o que iriam pensar de nós os povos "civilizados"? Antes de tudo a "ordem linguística" nacional.
Na página anterior à do início do primeiro capítulo de QPB há uma dedicatória ao recém-falecido filósofo do direito Roberto Lyra Filho (autor do livro O Que É Direito, da mesma coleção) na forma da seguinte frase de sua autoria: "Num sistema injusto, se quisermos ser sérios temos que ser marginais". Trata-se de uma posição radical. Eu acrescentaria que nas republiquetas latino-americanas de capitalismo selvagem aquela famosa frase do espanhol que diz que "Si hay gobierno soy contra" pode ser sempre aplicada. É impossível a gente conseguir ser fiel aos ideais de justiça social e ao mesmo tempo assumir cargos na administração pública. É impossível servir a dois senhores ao mesmo tempo: ao povo trabalhador (e desempregado) e aos patrões. É impossível considerarmos o homem simples, analfabeto, em sua dignidade, se ao mesmo tempo mantemos preconceitos linguísticos inaceitáveis neste final de seculo XX.
Tampouco essa dedicatória foi vista pelos meus detratores. Por quê? Simplesmente porque não lhes interessava. Afinal eles são guardiães da política linguística que o livro condenava. Antes de tudo deve-se defender a "boa linguagem". É bem verdade que não se usa mais a divisa "boa "linguagem". Substituíram-na por outras, tais como "unidade linguística nacional", "unidade dos povos de língua portuguesa", etc. Com isso esquecem-se de um princípio dialético elementar segundo o qual a unidade e a variedade constituem um todo em íntima relação dialética. Com isso escamoteiam a verdadeira questão, ou seja, a defesa de seus próprios privilégios. Até hoje eles foram os únicos a dar as cartas em matéria de linguagem. Quando aparece um joão-ninguém querendo meter a colher de pau em assunto "de sua exclusiva alçada", aí eles atacam violentamente. Sem entrar no mérito da questão. Atacam por princípio. Não vem ao caso a justeza das opiniões nem a coerência da argumentação. A única coisa que veem é a ameaça a seu feudo.
Eu tentei publicar uma resposta a todas as críticas logo após seu surgimento. Mas, como não pertenço ao sistema, como eu o contesto, a imprensa não publicou minhas réplicas, apesar da lei de imprensa que o garante sempre que alguém se vê atacado injustamente. No começo fiquei muito aborrecido com as críticas. Mas, aos poucos fui me conscientizando de que se tais guardiães do sistema me tivessem elogiado aí é que eu deveria ficar desconfiado. E assim cheguei à conclusão de que ao me atacar eles me fizeram o maior dos elogios. Aliás, eu tenho um amigo, desses que não têm papas na língua, que afirma que prefere ser identificado pelos inimigos que tem do que pelos amigos. Eu não iria tão longe, mas me sentiria constrangido com apoios vindos de defensores daquilo que condeno. Foi o mal de Tancredo Neves. Ele recebeu adesões por demais comprometedoras.
Eu quero me sentir livre, sem ter o rabo preso em nenhuma das garras do sistema injusto dominante. Quero ser livre para criticar quem e quando eu achar que devo fazê-lo. Por exemplo, quando um figurão das letras nacionais, tido como uma enciclopédia ambulante, recebe poderes da Academia Brasileira de Letras para modificar a ortografia do português, eu quero ter o direito (porque tenho a obrigação) de protestar. E eu o fiz do modo que me foi possível, ou seja, junto aos meus alunos, em conferências e em alguns jornais.
Nem como cidadão nem como estudioso de questões linguísticas, eu nunca deleguei nenhum poder a este cidadão para modificar, em meu nome, a ortografia da língua portuguesa. E o que é pior, nenhum dos meus colegas com quem tive oportunidade de falar sobre o assunto o fez. Apenas a Academia de Letras o designou para tal. E aí eu pergunto: "Com que autoridade?" Não que nossa ortografia não esteja merecendo uma boa reforma. Só que esta deve ser feita de maneira democrática, e não atabalhoada e sofregamente por um único indivíduo "iluminado" (olhe aí o autoritarismo). Em determinadas circunstâncias históricas pode ser até que isso seja necessário. É o caso de nações jovens, que ainda não dispõem de quadros suficientes, com poucas pessoas instruídas, etc. Hoje não. Já temos inúmeros cursos de pós-graduação em letras espalhados por todo o país. Acabou a era do mandonismo linguístico, dos coronéis da língua, da palmatória linguística. Vivemos um tempo de constituinte no plano do ordenamento jurídico do país. Por que não aplicar o mesmo princípio no domínio da linguagem? Por que é que as "reformas" na língua têm que ser feitas tão de afogadilho? Não! Ponhamos um basta nisso! Chegou a hora e a vez de uma constituinte para a língua.
Não se trata de ser contra pelo simples fato de ser contra. Há fundadas razões para isso, ou seja, para não aceitar "reformas" feitas por um único "iluminado". No passado várias "reformas" ortográficas foram feitas. Nenhuma delas, no obstante, logrou êxito. Nenhuma delas pegou. Por quê? Simplesmente porque foram feitas nos mesmos moldes da que estão tentando nos impingir agora. Isto é, foram feitas por um grupelho adrede indicado, às vezes auto-indicado, com o fito de aparecer, de lançar logo em seguida "guias ortográficos", "gramáticas" dentro dos novos padrões, etc. Em suma, com o objetivo de manter o poder linguístico sob seu domínio.
Com esse negócio de se fazer "reformas" individualistas, casuísticas, em doses homeopáticas, o que que se consegue? Qual é o resultado? Com isso o que se consegue, e os "iluminados" estão muito cônscios disso, é manter a chama do lugar comum de que não somos um povo serio. Enquanto isso os "iluminados" nos guiam para não cairmos nas trevas. Afinal, se um grande filólogo em name da Academia de Letras não nos orienta fazendo as "reformas" ortográficas de que nossa língua está necessitada, o quo será dela? A história é parecida com a daquele personagem de Jô Soares que dizia: "Eu não sou palhaço. Estão querendo me fazer de palhaço, caramba!".
É hora de pôr um basta nos boatos de golpe militar, de que não somos um país sério, de que não sabemos português. Tais boatos são criados para nos intimidar, para que não reivindiquemos nossos direitos, por mais legítimos que sejam. A reivindicação pode "perturbar a ordem" (dos privilegiados) e aí é perigoso, os militares podem dar um golpe. Portanto, fiquemos quietos! A espada de Dâmocles (o golpe militar) paira sobre nossas cabeças.
O povo brasileiro é analfabeto, não tem instrução, portanto, não sabe o que quer, não sabe votar, não sabe português. Precisa ser tutelado, precisa de um "iluminado" para guiá-lo, para lhe ensinar a "boa linguagem". Ele não está preparado para a democracia. Por isso precisa de um "grande homem" que o oriente. Do tipo daqueles citados acima! O sociólogo Octavio Ianni escreveu um trabalho muito interessante sobre tais "salvadores" da pátria, na revista Humanidades (Ano IV, n. 12, 1987). Lá ele diz que para tais "salvadores", "A Pátria não deve se debilitar por controvérsias políticas. O inimigo e a desordem estão sempre latentes no organismo da sociedade. E o povo é incapaz de proteger-se. Deixa-se contaminar pelo vírus da anarquia, desordem, subversão. Por isso nenhuma oposição será tolerada. A estabilidade social exige que toda erva daninha seja arrancada" (p. 70). Para eles vale a frase atribuída ao rei Luís XIV "L'État c'est moi". No caso da linguagem vale a paráfrase. "Le langage c'est moi" que os gramáticos e os guardiães da "boa linguagem" se atribuiriam de bom grado. Mesmo que não o digam, na realidade sentem-se os donos da chave que abre a câmara em que jaz imaculada a "boa linguagem".
A propósito da ideia de que o povo não está preparado para a democracia, de que o povo não sabe falar corretamente, de que se houver uma liberação linguística viria o caos, a incomunicação, eu gostaria de lembrar o que me disse um pobre cearense exilado (como tantos outros) na Alemanha (1977) por motivos mesquinhos. Quando alguém lhe disse que o povo brasileiro não estava preparado para a democracia ele bradou com toda veemência, com verdadeira fúria santa : "Então é com o fascismo que vamos prepará-lo?" A única possibilidade de aprender a conviver com a democracia e praticando-a. Não há outra alternativa. A única maneira de se expressar bem, de falar "corretamente" a língua do próprio país é usando-a, é praticando-a. O importante é o conteúdo a ser transmitido. Se este for legítimo, a forma virá automaticamente, mesmo porque não há conteúdo sem forma nem forma sem conteúdo. Eles constituem uma unidade contraditória, dialética.
É verdade que está havendo uma mudança mesmo nas hostes gramaticais. O gramático (ou ex-gramático) Celso Pedro Luft, por exemplo, publicou em 1985 o livro Lingua e  Liberdade (Ed. L&PM, de Porto Alegre ) em que defende, entre outras, a ideia de que todo mundo sabe sua língua. Não existe essa história de que "fulano não sabe português" e outras balelas semelhantes. Mas é um passo muito tímido ainda. É necessário ser radical, ir à raiz do problema, que é antes de tudo econômico, político, social e..... (pense em qualquer coisa de radical!).
O grande problema é que no plano linguístico as coisas se dão de maneira sutil, subreptícia, embora com consequências talvez mais danosas a longo prazo do que as do plano político-econômico. É que a língua está intimamente ligada à consciência, ao pensamento. Ora, qualquer mudança social, só se faz se houver convicção, se houver consciência de sua necessidade. E como a língua permite dizer tudo, mesmo as mentiras mais deslavadas, "os guias do povo" vêm e dizem que as coisas são assim e assado, bla-bla-blá, e tudo bem. O povo crê (será que crê?). Todo mundo está mal, a maioria à míngua, grande parte passando fome, mas se um "guia iluminado" afirma na televisão que está tudo em "ordem", que o país trabalha tranquilo, então tudo bem. Durmamos tranquilos com nossas consciências! Como diz ainda Octavio Ianni, "...Quem sabe o que acontece organiza o acontecido... Aquele que faz o discurso institui a interpretação e o fato. Inventa as coisas que conferem com as palavras....O povo pode entender mal as coisas, o sucedido. Não está preparado para pensar, decidir, votar. Precisa ser orientado....O governo estabelece o fato e a interpretação; fabrica o dito e a dita" (p. 71). Trocado em miúdos, isso quer dizer que os detentores do poder, inclusive do linguístico, manipulam a realidade, usando a linguagem. Ela é um poderoso instrumento de poder.
Uma das consequências mais graves deste poder da linguagem como instrumento do poder é uma auto-desvalorização por parte dos desprivilegiados, dos que não detêm o poder, portanto, não podem dizer o que é "certo" e o que é "errado". Aqueles que os "iluminados", que os "guias" consideram falantes de um português acaboclado, "errado" são naturalmente classificados como faltos de inteligência, de baixo QI (quem indica?), burros. Ser inteligente é usar frases altissonantes, barrocas, e palavras e expressões especiosas.
O fato é que  QPB desagradou a alguns e agradou a outros. Os que não gostaram dele são os defensores da "boa linguagem", os "linguistas vulgares", segundo a paráfrase que fiz das expressões marxianas. Mas, um outro grupo, o dos "linguistas clássicos" ainda segundo aquela paráfrase, também não gostaram dele. Os "vulgares" não gostaram porque não gostam de nada que conteste o esta do de coisas existente. Como dizia Marx dos economistas vulgares, eles são verdadeiros capachos do poder, dos donos do poder, trabalham para eles servilmente, mesmo que por cima de toda a comunidade. São mesmo desonestos, como quaisquer defensores de poderes injustos. Politicamente são de extrema direita. E a direita, como sabemos, é matreira, solta bombas em bancas de revistas, leva bombas para shows musicais onde se aglomeram milhares de pessoas (Riocentro), para depois jogar a culpa nas esquerdas. Têm medo da luz do dia. Os "linguistas vulgares" chegam a afirmar que a linguagem do povo é uma deformação da linguagem "asseada", culta, escorreita, dos filólogos, gramáticos e literatos.
Os "clássicos", por outro lado, são honestos, só que estão presos a determinado horizonte de visibilidade, a determinada ideologia científica. No caso dos estudiosos da linguagem, são formalistas, são acadêmicos estritos. Às vezes até têm boas intenções, mas estão presos às suas teorias formalistas e deslumbrados com elas. Isso faz com que caiam na esparrela de supervalorizar o modelo teórico e, consequentemente, de menosprezar a linguagem viva, dinâmica dos falantes de carne e osso. É o caso dos estruturalistas, dos gerativistas e, a contra-gosto, dos sociolinguistas. Na verdade o que fazem é matar a língua, aprisionando-a numa camisa-de-força. Ao fim e ao cabo entregam os pontos à ideologia dominante, ou seja, a ideologia das classes dominantes. Trocado em miúdos, acabam fazendo o jogo do poder. Afinal de contas, o formalismo tem muitas afinidades com a burocracia, marca registrada de qualquer autoritarismo que se preze.
Diante do exposto, é mais do que natural que QPB tenha incomodado. Ele disse quo o português brasileiro é o português  é o português usado pelos brasileiros. Na ótica dos "linguistas vulgares" isso é subversivo, pois atrapalha o exercício da "legalidade", ou seja, atrapalha ao poder dominante impor o português das gramáticas ao povo brasileiro. Este português, como está lá no livro, é o de antigamente, o de uma única região dentre as várias em que se fala a português (Portugal) e o das classes dominantes. É o que chamei de as três distorções: temporal, espacial e social (cada uma delas formando um capítulo do livro).
Tudo isso é feito por linguistas vulgares com a conivência dos clássicos, a serviço dos eventuais detentores do poder. Os clássicos, no fundo no fundo, no aceitam isso de bom grado. No entanto, como não tomam partido (por não ser a política seu "metier"), como ficam aferrados a seus modelos teóricos, a suas metodologias, acabam sendo muristas, o que favorece o poder dominante.
Eu tenho recebido inúmeras cartas de gente simples, humilde, e de estudantes universitários, alguns destes perguntando se há gramáticas e dicionários elaborados nos moldes do que é proposto no livro. Não obstante isso, ele desagradou aos donos do poder linguístico, aos linguistas vulgares, aqueles aos quais eles servem e, apesar dos pesares, aos linguistas clássicos. Mas, isso significa pura e simplesmente que o que é bom para as pessoas simples (a grande maioria) não é bom para a minoria encarapitada no poder.
Por essas e outras, resolvi escrever outro livrinho a fim de esclarecer melhor certos pontos que tinham ficado um tanto obscuros no primeiro, responder críticas tanto dos linguistas vulgares quanto dos clássicos e, por que não, avançar a discussão sobre a questão da língua. Afinal, ela é tão importante que sem ela a própria sociedade não existiria.


2. Aulicismo versus anarquia linguística
Em primeiro lugar, vejamos o que se entende por "aulicismo" e "anarquia linguística". A palavra "aulicismo" é um substantivo derivado do adjetivo "áulico", que designa "o que pertence à corte". Um outro significado de "áulico" é "cortesão", "palaciano". Em suma, o termo tem a ver com a corte, que é o centro do poder, o foco de convergência do reino. É o lugar onde vivem os parasitas cortesãos, que vivem inventando modas a fim de poder discriminar os aldeões, os provicianos, etc. É para onde se convergem as elites políticas, sociais. Por essa razão, tomei o termo "aulicismo" para designar a concepção de linguagem ligeiramente esboçada no final do capítulo anterior e que será melhor detalhada em seguida.
A expresão "anarquia linguística" está sendo usada para de­signar a concepção oposta à de aulicismo. Segundo os donos do po­der linguístico, se liberarmos a linguagem, virá o caos, cada região terá sua língua, ninguém mais se entenderá, cada um poderá falar e escrever como bem entender. Enfim, seria uma verdadeira anarquia linguística. Daí a necessidade de um freio, de contro­les, através de uma linguagem considerada como boa, pura, casti­ça, livre de barbarismos, solecismos, de "erros" pura simplesmente. É a concepção aulicista, a única a impedir a anarquia  linguística. Mas, será que essa visão maniqueísta da linguagem está correta?
Sabemos que qualquer comunidade, qualquer agrupamento de pes soas só existe e subsiste se tiver um conjunto de regras que ori­ente o comportamento individual e o coletivo. Do contrário preva­lece a lei do mais forte, do mais esperto, do mais inescrupuloso. Nesse caso teríamos, efetivamente, uma anarquia. Para evitá-la, cria-se um conjunto de regras. E esse conjunto de regras não é nada mais nada menos que linguagem, no sentido mais amplo do termo. E como é criada essa linguagem? O agente da história é o próprio homem. E como a linguagem é um fato histórico, segue-se Que também ela é criada pelo homem.  mas como? (AQUI ESTÁ PTL EM GERME)
Como já tentei mostrar em QPB, em prin­cípio existem duas maneiras de se elaborar o conjunto de regras que orientam o comportamento no seio de uma coletividade  (págs. 69 a 71).  A primeira delas consiste na coordenação da vontade coletiva. As regras são estabelecidas de baixo para cima. Todos os interessados participam de sua elaboração. O método usado é, por conseguinte, o cooperativo, que é o único democrático. É ele que foi praticado, embora. inconscientemente, no surgimento das línguas históricas. Na luta pela sobrevivência, as pessoas tinham que in­teragir. Dessa interação foi surgindo um conjunto de regras (em geral palavras e regras para seu uso), um instrumento para o enten­dimento mútuo, ou seja, a língua, sem que o percebessem. Como não poderia deixar de ser, essa língua foi evoluindo pari passu com a comunidade que a criava e usava.
A segunda maneira de surgimento das regras do jogo (da linugagem, no caso) é através da subordinação da vontade da maioria à de uma pequena minoria ou até mesmo à de uma única pessoa. Ou seja, em vez de se Proceder cooperativamente, o método usado é o compe­titivo, o da rivalidade. E aí surgem os espertalhões que, por um acidente histórico qualquer, dispõem de registros (orais ou escritos) da língua de épocas anteriores. Como são os únicos detentores dela, passam a considerá-la como a única correta e a impô-la à co­letividade. A língua concreta, viva, usada pelo povo em sua luta pela produção e distribuição dos bens passa a ser tachada de errada por eles, e o povo passa a ser considerado ignorante, sem instrução, sem conhecimento da linguagem castiça dos antigos . Isso válido para qualquer comunidade em que imperam relações de produção competitivas, de privilégios, personalistas, mesmo que os eventuais detentores do poder se considerem socialistas. Na é­poca atual, tais espertalhões são os gramáticos, muitos filólogos, os planejadores do ensino e todo o aparelho ideológico escolar.
É claro que a linguagem que usamos hoje nos foi legada pelos nossos antepassados. Isso é inevitável. Do contrário teríamos que reinventar a roda a cada nova geração. Portanto, o que os antepassados nos legaram representa o aspecto acervo da língua, como conjunto de palavras e de regras para combinação destas palavras, ou sejam, como sistema. Esse sistema estático funciona como instru­mento para continuarmos nos comunicando. Agora, nós não estamos presos a ele, ele não é imutável. Longe de ser uma camisa-de-força que nos aprisiona, que nos obriga a nos expressarmos de uma única maneira, a linguagem transmitida a nós pelos antepassados é um instrumento de produção de novas mensagens, ela nos ajuda na medida em que nos permite nos expressarmos e co­municarmos uns com os outros. Portanto, em vez de nos aprisionar ela nos liberta do mutismo se a encaramos como uma realidade dinâmica, viva, para cuja evolução nós próprios colaboramos, como fizeram nossos antepassados. Não é só eles que tinham o privilégio de criar e enriquecer a linguagem.
Aliás, como entender que não contribuímos para o acervo linguístico uma vez que continuamos interagindo, produzindo novas mercadorias, novos produtos de consumo que requerem novos meios expressionais? Na pior das hipóteses teríamos que criar novas denominações paxá tais produtos. Acontece que no próprio processo de  produção novos tipos de relações intervêm,  criando a necessidade de novos torneios linguísticos. Em suma, o homem produz linguística e não linguisticamente (produção material). Da interação entre os dois  tipos de produção, resulta um enriquecimento mútuo. Por um lado a produção material enriquece a língua de novos meios expressionais. Por outro lado, a língua  favorece a criação de novos produtos, de novos meios de consumo,  uma vez que é ela que permite os planeja mentos, a comunicação entre planejadores e produtores diretos e as­sim por diante.
Infelizmente os linguistas vulgares (ao equivalente na e­conomia Marx chamou de "sicofanta"), defensores dos interesses e dos privilégios da  minoria detentora do poder linguístico, nunca  aceitam isso. Tentam separar as duas coisas.  Se a produção linguística é  associada à não-linguística percebe-se imediatamente a necessidade de novos meios expressionais, que a língua evolui. Como eles querem nos enfiar goela abaixo a ideia de que a única linguagem correta é aque­la antiquada de que são os únicos detentores, com a finalidade de oprimir o povo, tentam vender a ideia de que a nova linguagem que o povo usa é estropiada, feia, cheia de erros, e papos-furados que tais. Eles não querem perceber que uma língua que não e­voluísse não serviria mais para falar das novas realidades com que o homem se defronta. Realidades, aliás, criadas pelo próprio homem. Quem não admite a evolução da linguagem se assemelha a alguém que ficasse apartado de sua comunidade por longos anos. Assim que voltasse a ela se sentiria como peixe fora d'água, não entenderia uma série de ex­pressões, palavras e torneios que foram criados nesse ínterim para atender às novas necessidades expressionais da comunidade.  Assim, os que não aceitam que os novos instrumentos de comunicação produzi­dos pela nova geração passem a fazer parte da linguagem coletiva as­sumem uma atitude subordinadora, competitiva, de rivalidade, na lu­ta pelo poder, ou melhor, na  luta  pela  manutenção do poder nas pró­prias mãos. Eles recolheram um pouco de água do grande rio que é a língua, fizeram um tanque (gramática e dicionário) e passaram a ignorar a torrente que continua a fluir no leito do rio. Para eles apenas a água estancada de que passaram a ser os proprietários, ou se­ja, a língua estática do passado, é a boa linguagem, correta. Não percebem que ao longo do tempo sua aguinha tende a ficar choca, suja, e que a água pura do rio continua a correr. Por fim, eles se aferram a  uma linguagem estática,  antiquada, e perdem o pé da realidade, não falam a linguagem da  maioria,  mas sim a de uma  minona pedante, que só serve a essa minoria exploradora da maioria.
Para dizer a verdade nua e crua, o que os linguistas vulga­res fazem ao defender o aulicismo linguístico como única alternativa ao que chamam anarquia linguística é manter o o status quo linguístico, que lhes é favorável, pois mamam nele. Se o sistema dominante deixasse  prevalecer a idéia de que a língua de um povo  é a língua usada per esse povo, deixaria de ser dominante. Aca­bariam os privilégios proporcionados pela dicotomia língua popu­lar X 1íngua culta. Ignorando o fator econômico, que ao fim e ao cabo é o determinante, se desmistificássemos o mito da linguagem pura, escorreita, as pessoas simples do povo seriam capazes dos mesmos  raciocínios que os "gênios", sobretudo hoje, com a massificação da informação. Por isso o aparelho escolar de estado não abre  mão do privilégio de inguagem culta distante da reali­dade do povo.
Abolir uma tal distinção seria uma atitude radical, no sen­tido marxiano de ir à raiz do problema. Como bons guardiães do status quo os donos do poder linguístico, os coronéis da. língua, reagem violentamente à ideia de que o português brasileiro é o  português usado pelos brasileiros. Isso despertaria a atenção para o fato de que talvez mais de 60% dos brasileiros digam "amanhã nóis vai trabaiá", fato que deve ser escondido, pois depõe contra nós. Segundo sua ideologia, isso não é português. Então o que é? Segundo Calvet, seria uma nã-lingua, por oposio à língua, que é a linguagem elitista de cujos segredos são os detentores. Ir à raiz do problema incomoda, pois desmascara o mito de que a linguagem à qual  pertencem expressões como essa é uma deforma­ção do verdadeiro português.
Na lla tese sobre Feuerbach, Marx disse que os filósofos se limitamm a interpretar o mundo diferentemente, mas que era necesário transformá-lo.  É justamente o que fazem os linguistas vulgares (e os clássicos), ou seja, interpretar a língua de acordo com a teoria da moda. A cada ano, e  às vezes até menos, surge uma nova teoria, ou uma nova versão da teoria da moda, para a análise da 1íngua, no M.I.T. Mas, uma transformação na própria compleição da língua não se vê sair de lá. Eles apenas manipulam o aparato técnico forjado para analisar a língua abstrata, estancada, cristalizada, de uma comunidade supostamente homogênea. Segundo essa concepção de comunidade (e, consequentemente, de língua) os habitantes da favela da Rocinha são exatamente iguais aos da Vieira Souto, no Rio de Janeiro. Ou então, os moradores da Ceilândia, da favela do Para­noá, do Gama, etc., têm o mesmo nível de vida que os que moram no Lago Sul, inclusive, na Península dos Ministros, em Brasília. A consequência natural é que a linguagem deles também é exatamente a mesma, como pressupõem as teorias linguísticas acima.
"Reacionário" é um adjetivo derivado de "reação". E "reação" significa "uma ação que foi provocada por outra". Assim, os reacionários são aqueles que nada fazem para mudar o estado de coisas injusto vigente. Mas, quando alguém toma alguma iniciativa para fazê-lo (ação), e­les contestam violentamente (reação), tachando-o de subversivo, de co­munista, e o prendem, torturam, expulsam do país, matam. Por quê? Por que qualquer transformação no estado de coisas põe em  risco seus privilégios.  Agora, é claro, que eles não o dizem explicitamente. O sigilo é a marca registrada de qualquer regime injusto. Seus praticantes têm medo da luz, preferem o escuro, preferem ficar escondidos, como o ladrão.
A bandeira que os donos do poder (inclusive o linguístico) desfraldam contra qualquer tentativa de mudança do status quo injusto é a da legalidade, ou da correção gramatical, no caso da língua. As­sim sendo, não se pode fazer isso ou aquilo porque é ilegal; não se pode escrever assim ou assado porque é errado. Só que eles escondem  o principal, a fim de fazer suas balelas serem engolidas pelo povo (e o pior é que ele as engole, pelo menos a curto e médio prazo). Omi­tem deliberadamente que as leis são feitas por eles, interpretadas por eles e aplicadas por eles, frequentemente sob a forma de decreto-lei, ou de lei que passa por decurso de prazo. O pensador Roberto Ly­ra Filho, tantas fezes aqui citado, afirmou que o sistema jurídico de um país como o Brasil é um conjunto de normas para garantir os privilégios das classes dominantes. Do mesmo modo, a norma gramatical é um conjunto de regras para manter o povo inseguro sobre o que é certo e o que é errado. Por isso tem que recorrer aos "iluminados" que conhecem os escaninhos do labirinto gramatical.
A fim de manter sempre acesa a pira da língua culta, áulica, u­ma meia dúzia de filólogos e gramáticos se arrogam o direito de conhecedores profundos da língua (a serviço da corte, do poder). Ou então, são designados pela Academia Brasileira de Letras, que é uma geronto­teca, um lugar onde um grupo de velhos ou de pessoas de mentalidade envelhecida, se reúnem para tomar chá. Nos intervalos dos chás eles nomeiam um i1uminado   para, sozinho, reformar a ortografia da língua portuguesa, em nome de mais de 130 milhões de brasileiros.
Onde está o poder aí? Está no prestígio que o  feito traz a esse paladino do "bom português". Está também nos livros que ele tem no prelo, redi­gidos de acordo com a nova ortografia, forjada por ele próprio. Assim que o governo transformar a proposta em lei, ele lança esses livros no mercado e ganha rios de dinheiro. Eu não vou comentar a proposta de re­forma ortográfica aqui porque seria descabido. No entanto, se alguém se interessar pelo assunto,  pode  ler a crítica que fiz a ela no Correio  Braziliense de 8/11/87, onde cito várias outras críticas feitas por outros autores.
A questão das relações entre linguagem e poder é muito mais séria do que o leigo pode imaginar. Metodologicamente é bom distinguir o "po­der da linguagem" da "linguagem do poder". Do primeiro ponto-de-vista, verifica-se que ela é um instrumento poderosíssimo. É por meio dela que intervimos no ambiente social que nos circunda. Com ela podemos convencer os outros da justeza de nossas opiniões. Portanto, devem seguir-nos, embora possamos também falhar nessa tarefa. Mas, nesse caso a culpa não está na língua, e sim no usuário. A língua nos permite dizer tudo, mesmo as mentiras mais deslavadas, o que faz dela um instrumento perigoso nas mãos de pessoas inescrupulosas. Além do mais, toda a cultura passada está registrada quase exclusivamente através de textos linguísticos. É o ca­so das bibliotecas, das discotecas, dos museus do som e uma série de ou tros meios de preservação da memória de um povo. As outras formas de re­gistro do acervo cultural são, via de regra, subsidiárias da linguística.
Uma vez que a linguagem tem um poder tão grande assim, é preciso que a dominemos. Dominar a língua significa conhecê-la sob todas as modali­dades que ela possa apresentar: linguagem popular, linguagem culta, linguagem coloquial, linguagens regionais, gírias, jargões, etc. Enfim, do­minar a língua significa ser seu senhor, não seu escravo. Por exemplo, quem não usa determinada expressão po ser considerada popular, mesmo que seja a mais adequada para exprimi a ideia que quer expressar, es­tá fugindo dela, evitando-a. E a gente só foge daquilo de que tem me­do. Por outro lado, quem evita uma expressão por ser muito culta, eru­dita, às vezes até arcaizante, mesmo sabendo que seus leitores a conhecem, também está sendo dominado pela linguagem. E com isso está fazen­do exatamente aquilo que os donos do poder linguístico querem que ele faça.
Numa sociedade de classes antagônicas como a nossa, é inevitável que haja diversas variedades de linguagem. Enquanto essas distorções não forem abolidas, devemos dominar todas as variedades que a língua apresentar. Não adianta querer fazer revolução, sozinho sem antes pre­parar as condições para sua efetivação. Seria bancar o D. Sebastião, para não dizer o D. Quixote. Seria nadar contra a corrente.
Segundo o conhecido esquema da comunicação de Shannon e Weaver, para que uma mensagem es viada por um emissor (E) a um re­ceptor (R) seja captada, percebida, e tenha eficácia é neces­sário que ela tenha sido formulada em um código comum a ambos. Ou seja, é necessário que E e R falem a mesma linguagem. Vê-se, por conseguinte, que quem quiser se comunicar com o poder, ou melhor, com alguém do poder, deve falar a linguagem do poder, que neste caso será o receptor. O contrário dessa tautologia é que quem contesta o poder não fala a sua linguagem e, se não a fala, não se comunica com ele, fica marginalizado do sistema dominante. E aqui eu gostaria de repetir a frase de Roberto Lyra Filho que reproduzi em QPB como dedicatória a ele: "Num sistema injusto, se quisermos ser sérios temos que ser marginais".
Vemos, portanto, que o poder tem a sua linguagem. Como diz ainda Octavio Ianni no artigo mencionado no capitulo I, "aquele que faz o discurso institui a interpretação e o fato. Inventa as coisas que conferem com as palavras". "O governo estabelece o fato e a interpretação; fabrica o dito e a dita". É o que vimos a propósito da lei. Se alguma coisa que um membro da classe no poder faz não é le­gal, cria-se uma nova lei para legalizá-lo, como no caso da famige­rada  Lei Fleury. O porta-voz do poder (p. ex., Carlos Átila, no governo Figueiredo) vem a público e diz que a situação no Brasil está as­sim e assado. Oficialmente, fica estabelecido que é assim e assado. No dia seguinte, ele vem a público de novo e diz que não disse, e assim fica sendo. No terceiro dia, ele volta e diz que não disse que não dissera. E assim fica sendo. Mesmo que todos es­tejam vendo que a realidade nua a crua não é nada disso.
Na linguagem do poder o significado de dicionário das palavras não vale nada. A versão dos detentores do poder que estejam de plantão é que é o "verdadeiro" significado delas. For exemplo, se o Sarney vem a público com sua retórica oca e ridícula, e diz que está fa­zendo tudo pelo social, mesmo que o brasileiro esteja empobrecendo a cada dia que passa, então ele está fazendo tudo pelo social. A maior autoridade (biônica) do país não disse que é assim? Então é assim. Tanto que pelo menos um segmento da população acaba votando em um Delfim Netto, em um Roberto Campos, em um Jânio Quadros e até em um Ibrahim Abi-Ackel (contrabandista de pedras preciosas, apesar de ter sido mi­nistro da justiça da ditadura militar) que, felizmente não foi elei­to.
Num país surrealista como é o nosso Brasil, a linguagem do po­der é sempre ambígua, dupla. Há sempre uma interpretação oficial e uma paralela para, no caso de dúvida, preservar os privilégios de quem manda. O caso mais evidente de coexistência de uma linguagem oficial e uma paralela é o da taxa de câmbio. Oficialmente, há uma taxa fixa, legal. No entanto, ao seu lado temos o câmbio negro, ou o parale­lo, tão ou mais dinâmico que aquela. Mas, o curioso é que tanto a taxa oficial quanto a paralela são anunciadas nos veículos de comunicação de massa. E o que raia ao surrealismo é que ambas são assimiladas, são aceitas, mesmo que tacitamente, pelas autoridades do poder. Tanto que não proíbem o paralelo. Pelo contrário, individualmente e às escondidas até fazem uso dele. Se os bancos suíços revelassem os números e         os donos das contas dos brasileiros, teríamos a prova do crime.  Mas, o         capitalismo internacional tem as suas defesas.
No oficial temos a ordenação jurídica formal. Ela compreende a constituição, o código civil, o penal, o comercial, em suma, todo o arcabouço jurídico. No paralelo, o que vale é a interpretação que se dá das leis, é o poder econômico para se ter acesso ao labirinto que é a legislação. Assim, quando alguém comete um delito, o importante não é se tem culpa ou não, mas se pode contratar um bom advogado, se pode pagar a fiança, etc. A coexistência do oficial e do paralelo jurídicos é tão pa­tente que chega a ter nome, ou seja, de jure e de facto, respectivamente. Oficialmente, todos são iguais perante a lei. No paralelo, como disse George Orwell, alguns são mais iguais que os outros. Os mais iguais são justamente os membros da classe dominante, sobretudo os que estão com  o poder nas mãos.
A linguagem verbal está cheia de expressões que refletem essa dualidade de linguagem na cultura brasileira. Assim, temos o jeitinho, o quebrar de galho, o QI (quem indica), o dr. Fulano, etc. Oficialmente, uma solicitação pode ser legal, estar prevista na legislação formal.. O seu acatamente e atendimento (paralelo), no entanto, depende. Se o solicitante conhece o dr. Fulano para dar um jeitinho ou que­brar o galho, ou seja, se ele tem QI, será atendido, quer seu pleito seja legal ou não. Se ele não se enquadra nas condições descritas, seu pedido será enrolado indefinidamente, ou seja, não será atendido, mesmo que esteja legalmente perfeito.
A coexistência da linguagem oficial e da paralela em nosso meio é tão marcante que envolve tanto a classe dominante quanto a dos desprivilegiados. A diferença reside no fato de que a primeira dita as normas (por subordinação), o que significa que ela tem um papel ativo na manipulação das duas, tem a esperteza e o poder (em todos os sen­tidos do termo) para jogar com uma ou com outra conforme as conveniências do momento. E aí surgiu o casuísmo, que nos últimos 20 anos, mas não só, foi a norma. Quanto à classe dos desfavorecidos, tem um papel mais passivo nesse jogo, sua responsabilidade é quase nula, pois representa a parte fraca da corda (que é a que sempre arrebenta), é sempre a vítima.
Uma tal duplicidade de linguagem existe, no fundo, para per­petuar privilégios, para a dominação. Ela é um alvo móvel, no qual os dominados nunca acertam. Se miram o paralelo, a autoridade lhes diz que o que vale é o oficial. Se apontam para o ofici­al, surgem dificuldades as mais diversas. Mas, se mesmo assim ameaçam atingi-lo, vêm os intérpretes do oficial e demonstram por a mais b que nesse caso a praxe (paralelo) consagrou o contrário. Portanto, é melhor desistir. Entretanto, se o postulante é teimoso e torna as coisas difíceis para as autoridades, então perguntam-lhe se sabe com quem está falando, afirmam que desacatou a autoridade e o coitado pode ir para a cadeia. Como se vê, a existência das duas linguagens, de dois significados, é de suma importância para a linguagem do poder. Sem elas esta não existiria. A linguagem do poder é sempre escorregadia.
Uma vez que até nós mesmos somos coniventes com essa linguagem ambígua, matreira, do poder, em geral a contra-gosto, temos uma realidade sui generis. Assim, o que importa, inclusive para nós enquanto coniventes com a linguagem do poder, não é o que se diz. O que importa é:
a) quem diz
b) a quem diz
c) em que circunstância o diz
Para quem achar que isso é um absurdo vou dar um exemplo. Suponha­mos que se anuncie duas conferências para a mesma hora e no mesmo prédio da universidade. O conferencista da sala 7 é Ronald Reagan e o da sala 8 é o José da Silva. Adivinhem qual sala ficará lotada e qual ficará inteiramente vazia? Independentemente do assunto e da mensagem que ambos tenham anunciado, podemos antecipar com uma grande margem de segurança que não será a saia 8 a lotada. Como disse George Orwell, "o poder corrompe o homem", ele é como um ímã que nos atrai para si. O poder de comunicação de quem está no poder é tão  mais forte que o de um jogo-ninguém, mesmo que este seja altamente competente, que poderíamos colocar na boca de Maquiavel o seguinte: "Se queres ser ouvido, conquista o poder".
Não é de admirar que os donos do poder linguístico invistam com toda a veemência contra aqueles que tentam trazer à luz do dia a verdade das relações sociais que defendem. E isso vem de longa data, da própria formação do estado moderno. Sendo a língua um dos componentes mais importantes do estado, é claro que ela tem que ser mantida como os donos do poder querem, ou seja, de modo a manter o povo manietado, inseguro, nunca sabendo a "boa lingua­gem", exatamente como fazem os gramáticos até hoje.
Segundo Louis-Jean Calvet, no seu livro Linguistique et Colonialisme: Petit Traité de Glottophagie, a ideia de superiori­dade de uma língua sobre outras e sobre os dialetos recua até, no mínimo, os gregos. Para Platão, p. ex., o grego era a língua bem formada, o que significa que as outras eram mal formadas, bárbaras. Durante toda a Idade Média a concepção de língua foi centralizadora, estática, como se ela fosse um bloco compacto e homogêneo. E como naquela época já havia tantas (ou mais) variações regionais quanto hoje, o que restava aos teorizadores da linguagem era procurar algum jeito de provar "cientificamente" que a linguagem da corte (aulicismo) era a língua. A linguagem popular, a dos camponeses rústicos, a dos aldeões, simplesmente era ignorada. Não existia oficialmente. Aliás, este ignorar das linguagens populares (e da linguagem do ou­tro, em geral) vem de antes da própria Idade Média. Os romanos, p. ex., conviveram longos anos com os etruscos, portanto, tinham pelo menos um conhecimento passivo de sua língua. No entanto, em toda a vasta literatura latina, não se encontra a citação sequer de uma frase etrusca, com tradução. Com os gregos se deu o mesmo. Eles conviveram com diversos povos. Heródoto viajou muito, escreveu muito sobre história, mas não deixou nenhuma informação sobre a língua do povos com que entrou em contato. A língua grega era praticamente a língua que em geral se resumia no ático. Até hoje "aticismo" sig­nifica "elegância e sobriedade de linguagem".
Ainda segundo Calvet, em seu livro acima mencionado, a teoria linguística sempre esteve a serviço do poder. A princípio (séc. XVI), era necessário defender a nacionalidade. Daí surgirem teorias linguísticas para explicar a filiação da própria lingua a uma língua nobre originária (hebraico, grego, latim...). É claro que a  "boa linguagem"  era a da corte (aulicismo). Internamente havia, no caso da França, um claro desprezo por línguas minoritárias e dialetos, como o bretão, o gascão, a "langue d'oc",   o  normandoo , etc..  Parra Calvet, as línguas só eram consideradas como tais se estavam no po­der.
No século XVII, Vaugelas defendia a supremacia da linguagem da nobreza (aulicismo) frente à do povo, quando se pretendeu esta­belecer o francês oficial. Só que ele camuflava esta defesa atra­vés do uso; ele pretendia estabelecer o francês oficial partindo dele. No entanto, ele distinguia "le bon usage" (o bom uso) de "le mauvais usage"(o mau uso). Não é preciso nem perguntar a qual dos usos ele recorreu. Foi nessa época que se fundou a Académie Française  (29/1/1635), a fim de decretar o que era considerado "bon usage" e o que não o era, com a finalidade de impor a língua do reino (aulicismo).
Além de Vaugelas, claramente elitista, havia um outro estudio­so da linguagem, Malherbe. Este, sim, era liberal, pois tinha como fonte de observação da linguagem os carregadores do porto (crocheteurs). Acontece que esses carregadores eram de Paris, não da província. Como diz Calvet, no fundo Malherbe era chauvinista (contra o estrangeiro) e contra os provincianismos. Em suma, defendia inconscientemente a supremacia da linguagem de Paris contra a da província. Tanto que já naquela época um tal de Balzac (não o escritor!) mostrava que o que Malherbe queria era "desgasconizar" o francês, ou seja, livrá-lo de provincianismos, de regionalismos. Assim, tanto Vaugelas quanto Malherbe defendiam o centralismo lin­guístico e, por via de consequência, o político: o primeiro defen­dendo a linguagem da nobreza contra a do povo; o segundo, defenden­do a de Paris (onde estava a corte) contra a da província.
No século XVIII continua a preocupação com a origem das línguas, a fim de se "demonstrar" a filiação nobre das línguas europeias frente às línguas nativas das terras recém-descobertas. Era a fase de in­tensificação da colonização, tanto econômico-politica quanto linguística. Era necessário provar a superioridade das línguas europeias. Tanto que as línguas africana eram chamadas de "dialetos" (até hoje ainda se ouve isso!). Essas línguas nativas eram ainda imperfeitas. O resultado de tudo        isso todos nós sabemos: dizimação quase total delas juntamente com os povos que as falavam.
No século XIX, já se começa a estudar a língua em si mesma, co­mo se fosse um organismo. Seria o momento de se mostrar que estruturalmente toda língua é perfeita, como faria o estruturalismo no iní­cio do século seguinte. O que aconteceu, porém, foi uma desvinculação da língua da comunidade que a fala. Então podiam provar "mais cientificamente" a superioridade das línguas europeias (as dos países colo­nizadores, é claro!) através de métodos "imparciais", observando-se a própria estrutura interna da língua. E se as línguas dos coloniza­dores eram mais perfeitas que as dos povos colonizados, a consequência natural era que os povos que as falavam (arianos) eram superiores. Mais uma vez a teoria linguística serviu à dominação.
Segundo Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil), nos sécu­los XVI, XVII e até começos do XVIII, a língua predominante em São Paulo era o tupi. Tanto que as autoridades portuguesas chegavam a aceitar o fato, pois ele facilitava o domínio político-econômico sobre os do lugar. No entanto, a força político-econômica do português era tão forte que o tupi acabou sucumbindo. O português acabou engolindo-o por completo. É o que Calvet chama glotofagia (gloto= língua), fato corriqueiro em qualquer processo de colonização, tanto  de um país para outro como da capital para a província, para os dialetos. Modernamente, esse processo vem sendo chamado de inva­são cultural.
Em Portugal e no Brasil as coisas não se deram de modo muito diferente do do que se deu na França. A única diferença é que nesses países o centralismo, o elitismo, o aulicismo linguístico se dão de maneira subdesenvolvida. Praticamente todos os primeiros gramáticos-filólogos-letrados portugueses recomendam que se evite o falar "vicioso" e "feio" dos aldeões, dos camponeses. Reformas no ensino como a de Pombal são altamente autoritárias.
No caso específico do Brasil temos, desde a colônia, uma preo­cupação com imitar a linguagem de Portugal. Nossos primeiros intelectuais foram os bacharéis que se formaram em Coimbra. Mesmo posterior mente, até o séc. XIX, prevaleceu a mentalidade de que o português correto é o de Portugal, de que o brasileiro fala tudo errado (aliás, essa última ideia tem vigência até hoje). Os filólogos Serafim da Silva Neto (Introdução ao Estudo da Língua Portuguesa no Brasil) e Celso Cunha (Língua Portuguesa e Realidade Brasileira), entre outros, discutem pormenorizadamente essa questão.
O brasileiro já tinha um modo de falar bem diferente do dos portugueses. Mas,  os habitantes intelectuais da corte (aulicism), que eram uma insignificante minoria, impunham como único correto esse português lusitanizante, a fim de manter o domínio sobre a maioria que não o conheciam. A coisa chegou a tal ponto que as escolas brasileiras davam preferência aos professores lusitanos para lecionar português pois, dizia-se, falavam melhor que os brasileiros. Dentro desta ideologia, o dado étnico (contribuição indígena, africana e outras), o geográfico (novo país, várias vezes maior que Portugal) e o estatístico (o número de falantes já era bem superior ao de Portugal) nada significavam.
No século XIX  José de Alencar suscitou a famosa polêmica sobre "língua brasileira". Por volta da segunda década de nosso século, Má­rio de Andrade retomou a questão. Aparentemente são dois movimento democratizantes. Acontece que, como no caso de Malherbe, e­les defendiam o português do Rio de Janeiro, da capital, o centro cultural e político do país e ex-sede reino (aulicismo). Por conseguinte, o que eles propunham também era altamente elitista e centraliza­dor. Com efeito, referiam-se praticamente só à linguagem escrita, literária e, sobretudo, ignoravam toda a produção linguística de S. Paulo, de Minas, da Bahia e de todo esse imenso território que é o Brasil. Como sempre, a fim de manter a unidade linguística nacio­nal a serviço do estado, ou seja, a serviço do poder.
No final da década de 60, surgiu um projeto para o estabeleci­mento da norma falada culta brasileira. Aliás, esse projeto (chamado Projeto NURC-Norma Urbana Culta) é de inspiração ibero-americana, o que em si não representa nenhum mal. Acontece que ele levará em conta só a linguagem das grandes cidades, com mais de 1 milhão de habitantes.          Em QPB eu o critiquei duramente, chamando-o de elitista e natimorto (ele anda tão devagar que quando for terminado já estará ultrapassado). Hoje eu o chamaria também de centralizador, discriminador, anti-democrático e autoritário. Como já disse naquele li­vro, é preciso levar em conta o português das pessoas cultas de todo o Brasil, do Oiapoque ao Chuí e da Ponta do Seixas (Paraíba) a Serra do Divisa (Acre). Só assim teríamos uma constituinte da língua. Só assim estabeleceríamos, de modo duradouro, a norma linguística nacio­nal, pois só assim ela seria legítima e, consquentenvente, teria a adesão natural de todos.
Infelizmente não é isso que pensam os incansáveis pesquisadores do projeto. Estão imbuídos da maior boa vontade. No entanto, como a ideologia que está por trás de seu empreendimento é burguesa, capita­lista, portanto, subordinativa, competitiva, o projeto só poderá ser conservador, reacionário. Pelo fato de eu ter chamado a atenção para isso em QPB, Ataliba T. Castilho, um dos envolvidos no NURC, fez um comentário altamente destruidor a ele em um jornal de São Paulo, como veremos no próximo capítulo.


3. O que é a língua de um povo
No primeiro capítulo de QPB, que se intitula "Partindo de um fato óbvio", eu disse que a língua de uma comunidade é a  usada por esta comunidade. Em seguida tirei a consaquência támbém óbvia dessa obviedade que é a de que a língua do  povo brasileiro é a língua usada pelo povo brasileiro. Praticamente todo o restante do livro desenvolve essa ideia, levando-a suas últimas consequências. Para espanto meu, isso não agradou. Diante esboço histórico da política linguística praticada até hoje e brevemente apresentada no final do capítulo anterior, nem seria de se esperar outro tipo de reação (substantivo do qual se derivou "reacionário").
Os linguistas vulgares (com a conivência dos clássicos), ou seja, os zeladores da manutenção do status quo linguístico, os sicofantas linguísticos dos donos do poder (para mais uma vez parafrasear Marx), não veem o fato óbvio. Ou melhor, como bons linguistas vulgares, eles tomam uma pequena parcela da imensa comunidade brasileira (a áulica) pela comunidade brasileira como um todo. Numa atitude típica dos pensadores (sic!) não dialéticos, positivistas, eles tomam uma parte pelo todo e, num desvio a ideológico intolerável, impingem em nós essa parte como se fosse o todo.
Quer defendam a linguagem da corte contra a da província (no caso a do Rio e das grandes cidades contra a das pequenas cidades e a das zonas rurais), quer defendam a linguagem antiga contra a a atual (no caso a de Portugal contra a do Brasil), quer até mesmo defendam a linguagem da elite contra a da grande massa do povo (como faz, por exemplo, Artur de Almeida Torres, num insosso artigo na revista Littera no 5 (1972), o que se faz é sempre defender uma linguagem elitizante. Esse último autor pelo menos é honesto e diz que a linguagem áulica é a "linguagem seleta da sociedade", que tem "esplendor e majestade", é ela que é a linguagem "legítima e asseada". "A língua popular ou vulgar é a que serve de comunicação habitual à sociedade média e se desenvolve sem rigorosa observância de certos preceitos gramaticais". Ora, desde pelo menos o surgimento do estruturalismo linguístico, que data aproximadamente da década de 20 de nosso século, está provado que toda língua tem estrutura perfeita, nenhuma língua deixa de observar "certos preceitos gramaticais". Isso é argumento típico de extrema direita, isto é ideologia fascista.
Diante de tantas distorções, diante de tantas ideologias canhestras, reacionárias, fascistas, é necessário retomar a questão e dar uma resposta à altura aos detratores de um livro que procurou mostrar que a língua de um povo é a língua desse povo. É preciso desmascarar para sempre a ideologia linguística de direita que quer se passar por avançada.
Fora os comentários orais, feitos diretamente a mim, bem como aqueles feitos em seminários e conferências, também oralmente, fora também o comentário feito na TVE, no dia 10/03/86, à noite, os quais não posso recuperar, os comentários publicados que che­garam até a mim foram os seguintes:

1. "Livro tenta analisar a língua portuguesa", de Ataliba T. de  Castilho (doravante AT), Folha de S. Paulo, 29/6/86;
2. "Linguagem. Pouca ajuda para uma saudável polêmica", de Beth Brait (doravante BB), O Estado de S. Paulo, 29/3/86;
3. "O Que É Português Brasileiro", resenha, de Januário F. Megale (doravante JM), Revista de Cultura Vozes, Ano 80 n. 2, p. 115. O mesmo texto saiu também em Leia, Ano VII, março de 1986;
4. "O Português do Brasil", de Afrânio Coutinho (doravante AC), Diário de Pernambuco,14/4/86, e O Povo (Fortaleza), 22/4/86;
5. "Couto,Hildo H.do. O que é português brasileiro, 2a. ed., São Paulo, Brasiliense, 1986", resenha de Marcos Bagno (doravante MB), revista Humanidades Ano IV, p.123,1987;
6. "Equívocos de um autor apaixonado", de Maria Christina Diniz Leal doravante MC), Correio Braziliense,18/6/87.
7.COUTO, Hildo H. do. O que é português brasileiro. 3ed.,São Paulo, Brasiliense, 1986 (Col. Primeiros Passos, 164), de Regina Maria de Souza (doravante RM), Pesquisa Linguística 1,1988.

Dessas se resenhas críticas, as duas primeiras, ou seja,  as de AT e BB são as mais deletérias, destrutivas, parciais, unilaterais e distorcidas ideologicamente. As outras cinco são mais imparciais, não no sentido de só fazer elogios, mas por não serem ves­gas, por terem enxergado no livro o que realmente estava lá. A MC, por exemplo,  faz duras críticas a QPB, só que críticas objetivas,, não distorcidas por vieses ideológicos. A de MB é praticamente a única que percebeu que o livro foi o primeiro a enfocar a questão do português brasileiro de uma perspectiva dialético-materialista. Outras, ou viram coisas que eu não disse no livro, ou não captaram a essência do que ele quis defender. De qual­quer maneira, tiveram boa fé, contrariamente às criticas de AT e BB.
Não vou levar em conta "argumentos" como o de Antônio Houaiss que, numa mea-resonda sobre política linguística em Brasília, tachou ideias como as que apresento em QPB de "ridículas". Argumentos objetivos, bem fundamentados e livres de desvios ideológicos como esse eu não consigo responder. Eles são profundos demais para que minha humilde pessoa possa chegar até eles. Eles foram proferidos oralmente, mas o Correio Braziliense de 7/9/85, p. 18, registrou alguns.
Começo respondendo às "críticas" de AT. Antes de mais nada devo esclarecer a AT que meu livro em momento algum visava "analisar a língua portuguesa", como ele diz já no título de seu libelo. Se ele soubesse interpretar textos teria visto que o livro é decididamente uma tomada de posição política sobre a questão da língua portuguesa no Brasil. Qualquer bom entendedor percebe isso já na primeira página.
Em seguida, AT decreta que o livro foi "escrito no estilo radical-chique" e que deixa "de lado o assunto resumido no título". Quanto a não respeitar o assunto resumido no titulo, AT é especialista nisso. O seu texto é testemunho insofismável do fato. Agora, com respeito ao "estilo rical-chique", isso é facilmente explicável pelo fato de AT ser defensor do status quo linguístico, portanto, nada mais natural que não aceite uma linguagem que tente ir à raiz do problema. Ele tenta como pode ridicularizar a linguagem dialético-materialista em que o livro está vazado. Afinal, a teoria do materialismo-dialético é o que ainda há de mais contundente para desmascar as hipocrisias burguesas, tão bem representadas por AT. Seria como querer que o diabo apreciasse a cruz.
No parágrafo seguinte, num vislumbre de imparcialidade (ou é por que as afirmações comentadas não interferem na sua ideologia burguesa?), diz AT: "O esquema analítico está certo: a norma culta como um fenômeno histórico, geográfico e cultural. Mas os resultados da análise ficaram deslocados, pois o conjunto não foi ordenado por uma teoria da variação linguística visível".
A única coisa sensata que está aí é a primeira parte; a historicidade da língua. Como bom representante da ideologia burguesa, capitalista, consumista, AT é partidário da chamada "teoria da variação" em sociolinguística. E como ele desconhece que há outras abordagens ao fenômeno da heterogeneidade linguística, pensa que a única alternativa é essa tal de "variação".
A teoria da variação é um dos últimos produtos do capitalismo americano. O seu criador é tido como um liberal, talvez até esquerdista. Acontece que ele é liberal até onde o permitem os interesses do capitalismo americano, que financia suas pesquisas. Na superfície, essa teoria é muito avançada politicamente. Quando a analisamos em todas as suas implicações ideológicas, verificamos que é tão reacionária quanto as teorias (também americanas) que quer contestar. É bem verdade que Labov (seu criador) inovou no sentido democrático. Ele mostrou que a língua não é um bloco homogêneo, compacto, como nos faz crer o estruturalismo e o transformacionalismo. A língua varia, sobretudo no espaço. Aliás, isso não é novidade nenhuma. Os dialetólogos do século passado já haviam notado a imensa variação interna nas línguas do mundo.  O mérito de Labov foi antes ter introduzido métodos quantitativos para estudar tais variações e correlacioná-las com fatos sociais.
Não obstante tudo que foi dito a favor da inovação da teoria da variação, quando entramos na essência da questão e analisamos suas relações internas, verificamos que ela é um lobo na pele de cordeiro. Com efeito, o que é "variação"? Vamos usar a metáfora da estrada: que é uma variante? É um desvio do leito normal da estrada. Ora, sabemos que os desvios são sempre piores que a própria estrada. Todo desvio é desvio de uma norma. Consequentemente, a variação (uma variante) de uma língua é uma espécie de deformação, de transformação para pior. O perfeito, o "asseado" (A. A. Torres) é "norma", é a língua. Para AT a língua portuguesa do Brasil é a das principais capitais (cidades com mais de 1 milhão de habitantes) e a das cidades tradicionais (olhem aí a distorção temporal de que falo em QPB! Tanto assim que ele é um dos executores do projeto NURC acima mencionado.
Podemos refutar a teoria da variação, tão cara a AT, até mesmo partindo das gramáticas, ou seja, partindo de sua própria base de apoio. Com efeito, várias gramáticas (que se copiam umas ás outras, como diz Afrânio Coutinho mais abaixo) definem gramática da seguinte forma: "1. Gramatica é a exposição methodica dos factos da linguagem (Júlio Ribeiro, Grammatica Portugeza, Rio,Francisco Alves, p.1). Ora, "factos da linguagem" são todas as manifestações linguísticas que se encontram no domínio daquilo que denominamos "português brasileiro".
No fundo, como se vê, os próprios gramáticos percebem que as coisas devem ser como se defende em QPB e aqui. Mas, como isso iria contra seus interesses, eles torcem subrepticiamente os dados e elaboram suas gramáticas com base exclusivamente na linguagem dos escriores clássicos. A contradição em que caem se torna mais gritante quando um gramático como Artur de Almeida Torres chega a considerar como desestruturada a linguagem popular). Como todo representante da direita, eles são personalidades divididas. No fundo sabem que o que praticam não tem fundamento científico nenhum. Não obstante, se agissem diferentemente, prejudicariam seus próprios interesses. Teoricamente, os gramáticos percebem que a língua apresenta modalidades diferentes de uso. Chegam até a afirmar que a função da gramática é sistematizar esses usos. Na prática, no entanto, se limitam a ditar normas de como se deve falar e escrever, ou seja, conforme os "clássicos" escreviam.
Como beneficiário do sistema burguês que defende, AT não poderia aceitar um fato que no marxismo é ponto pacífico, ou seja, o papel decisivo desempenhado pela base econômica sobre toda a superestrutura. Assim, tacha de "engraçadas" afirmações como, "a língua é o reflexo da sociedade em que é usada". Se esta for rica, economicamente forte, a língua será necessariamente complexa e sofisticada. Se for pobre, de desnutridos e subnutridos, a língua será simples, sem grandes pretensões à universalidade (p. 84). Eu recomendo a ele que leia Basil Bernstein e sobretudo Ulrich Ammon para se aperceber de que o tipo de linguagem das pessoas está diretamente relacionado com o modo pelo qual ganham a vida, ou seja, com a produção. Se se dedicam a um trabalho físico, braçal, usarão um "código restrito", que só funciona no mini-mundo em que vivem. Se ganham a vida através de algum tipo de trabalho intelectual, sua linguagem será um "código elaborado", com um raio de ação muito mais amplo. Ignorar isto é achar que se eliminou uma coisa através da proibição de seu nome.
Em seguida AT parte para sua "refutação" do texto supra: "qualquer análise linguística mostra que a língua é sempre uma construção altamente elaborada, seja a dos de tradição escrita". Em seguida AT baixa seu decreto-lei: "Não existe uma 'língua simples'". É claro que não conhecendo a filosofia do marxismo e a própria dialética, que encarando a língua apenas em sua estrutura (ignorando o meio social em que é falada), ele só podia não aceitar o fato comprovado no decorrer da história da humanidade e de que a evolução se dá do simples para o complexo, do inferior para o superior, etc. Para AT o iaualapiti é estruturalmente tão complexo quanto o inglês, seu vocabulário tão vasto quanto o desta língua. Segundo sua concepção de língua, é perfeitamente possível traduzir o Ulisses de James Joyce para o iaualapiti. Ou então, um tratado de física nuclear. Gostaria que AT provasse essa possibilidade, que segundo ele existe.
Trocando meus conceitos de "linguagem A, B e C por "classe A, B e C", respectivamente, ele tacha de "pitoresca" a maneira pela qual defini os conceitos de "linguagem A", "línguagem B" e "linguagem C". Partindo da língua de uma sociedade de classes (que AT não reconhece) como a nossa, eu tentei mostrar que metodologicamente é útil considerar que há aqueles três níveis de linguagem, quanto à formalidade.
O nível A seria a linguagem mais formal; o B seria um meio termo entre A e C, que seria o nível da linguagem popular. AT crê que a sociedade brasileira é homogênea e, consequentemente, também a língua aqui usada. Aliás, isso vai contra sua "teoria da variação visível". Contradição é o que não falta no seu texto. Outra vez AT torceu as minhas palavras com a finalidade de fazer média com o leitor do jornal. AT afirma que no livro está dito que "na classe C há "excesso de vulgaridade". Aqui AT torce duplamente minhas palavras. Primeiro, se ele soubesse ler, veria que no livro está dito que para os burgueses capitalistas como ele, o nível C de linguagem denota "vulgaridade". Não sou eu que o afirmei. Eu repeti o que é lugar comum na ideologia que ele defende. Segundo, mais uma vez não se trata de "classe C", mas de nível C de linguagem.
Agora chegamos ao ponto que provocou toda a fúria de AT. Ele afirma que "o autor desanca o Projeto de Estudo da Norma Linguística Urbana Culta, que considera elitista e natimorto, pois contempla apenas as cidades de Porto Alegre, Rio de Janeiro, S. Paulo, Salvador e Recife, e porque pretende impor a norma dessas cidades ao restante do país". Para começo de conversa, quem cita essas cidades nominalmente é o próprio AT. Para se verificar que o projeto contempla apenas algumas das principais cidades do país, basta consultar, de Ataliba T. de Castilho), "O estuda da norma culta do português do Brasil", Rev. de Cultura Vozes, Ano 67, no 8, p. 23 (1973), em que ele cita precisamente as cidades que mencionou acima.
A seguir, AT baixa mais um de seus decretos-leis: "a coerência não é o forte deste livrinho". Como AT não sabe o que é "coerência", vou lhe dar o significado: "Coerência (coherencia). s.f. qualidade ou estado de quem é coerente; ligação nas ideias expostas; conexão; harmonia" (Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa). Acaso ele demonstrou por a + b que não havia ligação entre as ideias expostas no meu livro? Não. AT apenas decretou que isto é engraçado, aquilo é pitoresco aquiloutro é singular, etc. Além do mais torceu os argumentos. Por isso acha que usei conceitos "desaperecidos do debate cultural brasileiro", ou seja, os conceitos do marxismo. Como ele tem uma venda burguesa nos olhos não percebe a profusão de ensaios, livros, artigos, debates sobre a problemática brasileira no contexto dessa metodologia. Finalmente, os "conceitos linguísticos básicos" que ele acha que eu confundo são exatamente aqueles que servem à ideologia dominadora, burguesa, capitalista, discriminadora como "variação" e que eu rechaço com argumentos, não por decretos-leis, como faz AT. Sua posição é exatamente igual à de Malherbe no sec. XVII.
Para terminar, gostaria de dizer que é muito difícil as pessoas bem intencionadas, honestas, idealistas, que querem ver subvertida a ordem injusta que aí está, é muito difícil, repito, essas pessoas se defenderem contra os sicofantas do capitalismo selvagem. Com efeito, eles estão no sistema, falam a linguagem do sistema, gozam de suas benesses, têm acesso a qualquer canal de comunicação. Nós outros, somos marginais a esse sistema, contestamo-lo. Portanto, não temos acesso aos jornais para uma simples réplica a afirmações infundadas feitas contra nós. Por fim, contra a leviandade, a falta de escrúpulos e a desonestidade é muito difícil as pessoas que jogam limpo se defender.
A crítica de BB se afina pelo mesmo diapasão da de AT. Eu não tenho o prazer de conhecê-la pessoalmente, portanto, presumo que tampouco ela me conhece. Não sei se ela é linguista ou não, como o é AT, fato que deveria impedir que ele dissesse as impropriedades que disse. O artigo de BB deve ser o mais longo dentre os seis arrolados acima. Ele compreende três colunas de mais de meia página de jornal contendo 11 parágrafos bem extensos. Nos 9 primeiros ela diz o que acha sobre a questão da língua portuguesa no Brasil, a política que se lhe aplica ou deveria aplicar, sobre seu ensino, avança algumas ideias próprias. De um modo geral, ela quer deixar transparecer que não é reacionária, conservadora. No entanto, condena os radicais de esquerda, preferindo uma posição "mais modesta", ou seja, de "consenso", conciliando as duas posições. Enfim, BB não é conservadora nem esquerdista; talvez ela tenha a mesma posição do Centrão (nome que se deu à maioria reacionária da Constituinte). Aliás, a direita nunca assume, nunca aceita o nome que a designa. Nos 2 últimos parágrafos ela passa a fazer uma série de generalizações sobre meu livro.
BB diz que tem  QPB tem "falta de consistência". Pois bem, sem dizer porque ele é inconsistente, fica difícil rebater sua acusação. De uma coisa a gente fica imediatamente certo: o texto de BB é inconsistente. Com efeito, ele se propõe a falar de uma coisa, ou seja, o conteúdo do livro cuja capa é reproduzida pelo jornal, mas o que ela faz é expor o que acha sobre o assunto do livro e correlatos. Além do mais, ela afirma que a norma culta existe (49o parágrafo), para logo em seguida afirmar que "não sabemos o que é norma culta". Parece aquela história do espanhol que dizia: "Yo no creo en brujas, pero que las hay las hay!" Dado o ímpeto com que BB expõe suas idéias, falando de gramáticas, linguística, etc., seria de se esperar que ela soubesse que a linguística moderna já mostrou à saciedade que todo indivíduo normal de uma determinada comunidade sabe, conhece a língua dessa comunidade. É o que os partidários da gramática gerativa transformacional não cansam de dizer. Numa linguagem mais acessível, próxima da que emprego aqui, Celso Luft também demonstrou isso no seu livro Língua e Liberdade. Portanto, é incompreensível que BB tenha dito asneiras como a de que muitos alunos "ingressam nas universidades e se veem durante todo o curso questionados por sua incapacidade de estruturar uma frase". Ou então essa outra pérola: "muita gente que ensina também é incapaz de redigir um texto". Para não me alongar demais nesse assunto, pergunto apenas: que tipo de texto? sobre o quê? em que linguagem? Mas, passemos à contestação das frases soltas em que
BB deblatera contra meu livro.
Em primeiro lugar, BB afirma que "o autor...se põe a malhar os cultores da norma culta". Eu não malho cultor de norma culta coisa nenhuma. Se ela tiver lido meu livro, deverá ter notado que o que eu faço o tempo todo é acusar aqueles que, mantendo uma norma culta" alienada da realidade brasileira, querem impingi-la como se fosse o português, como se fosse todo o português, que as classes desfavorecidas não teriam linguagem, apenas grunhiriam (aliás, a idéia de que os outros não falam já vem dos gregos: barbarós, nome que aplicavam a todo estrangeiro, significa justamente quem não fala, no caso, o grego ático!). Quem quiser cultivar a "norma culta" que a cultive. Eu não tenho nada contra o que cada um faz entre quatro paredes. Quem ler o livro sem ideia pré-concebida perceberá isso. O fato de BB afirmar que eu recorro a "simplificicações de caráter linguístico e sociológico" não merece resposta. A linha da Coleção Primeiros Passos não permite erudições filológicas. Tudo deve ser escrito numa linguagem quase jornalística.
Em segundo lugar, BB decreta que eu sou "um ditador de normas idêntico aos gramáticos ortodoxos". Gostaria que ela mostrasse onde, como e porquê. Se o livro defende um respeito à linguagem usada pelo povo ao se estabelecer a norma, como é possível que estou ditando normas? A não ser que ela ache que respeitar os interesses da maioria seja ditadura (ditadura da maioria, como dizem os reacionários de direita). Nesse sentido, eu seria um ditador de normas. Para mim, a vontade da maioria é sagrada. Se a opção é entre "ditadura da minoria", como ocorre em todas republiquetas latino-americanas, e "ditadura da maioria", então eu fico com a útima. Como diz o sociólogo Michael Löwy, "as classes dominantes (a minoria-HHC), a burguesia (e também os burocratas, num outro contexto) têm necessidade de mentiras para manter seu poder. O proletariado revolucionário (a maioria-HHC) tem necessidade da verdade..." (Método Dialético e Teoria Política).
A linguagem da minoria (os gramáticos, no caso) é sempre ambígua, nunca se sabe ao certo se determinada construção é "correta" ou não. Tudo está envolto em brumas, uma vez que se formula uma regra e, em seguida, se cria uma série de exceções a ela. Afinal, se ficasse fácil demais, como é que eles poderiam dizer que o povo fala tudo errado? Eu fiz em 1974 uma descrição da linguagem de um lugarejo rural do município de Patos de Minas. Para minha surpresa, verifiquei que quase todas as regras da gramática local são sem exceção. Dou, pelo menos um exemplo, para não fazer o jogo de BB e AT que acusam sem comprovação. Todos nós sabemos o quanto é difícil aprender as regras de colocação pronominal das gramáticas. Na gramática a que me refiro, só há uma regra: "se o pronome é átono, vem antes do verbo; se é tônico, vem após ele". Sem exceção. E assim há uma série de regras. Já pensou o quanto seria mais fácil redigir textos se não tivéssemos que desviar nossa atenção para questiúnculas como "colocação pronominal"? Por que em Major Porto (este é o nome do lugarejo) as regras são tão simples, bem como em praticamente toda a imensa porção rural e suburbana do Brasil? Simplesmente porque lá as regras são estabelecidas por coordenação, cooperativamente, como vimos no capitulo II. Cá, ao contrário, o português é estabelecido pelos gramáticos, de cima para baixo, num processo subordinativo, competitivo, no que são apoiados por AT e BB. E tudo que não tem legitimidade é sistematicamente ignorado pelo povo, como é o caso das leis biônicas, discricionárias, casuísticas dos governos auto-eleitos brasileiros.
Segundo BB eu sou "um ingênuo e superficial combatente do sistema". O qualificativo "ingênuo" talvez até seja correto. Com efeito, é ingenuidade a gente querer subverter a ordem injusta que aí está. As garras do imperialismo são tão fortes que na atual configuração de forças mundiais uma revolução é pura e simplesmente uma ideia quixotesca. Mas isso não significa que ela não deva ocorrer. BB não vê as unhas de águia do imperialismo americano. Ou ela é cega ou não sabe o que é americano e o que é brasileiro. Até uma das manifestações mais genuinamente brasileiras, como a música caipira, já está infestada pela mentalidade americana, o que pode ser visto nas calças "jeans", nos chapéus de "cowboy", e até mesmo na "country music" que acompanha qualquer vaquejada no interior (Barretos, p. ex.), aliás, "rode". Abra os olhos, que você verá a presença americana para onde quer que você virar! Até na linguagem. Muita gente até pensa que o português existe para traduzir o inglês americano (é claro que não o reconhecem explicitamente!). Quanto ao qualificativo "superficial", este fica por conta da leviandade das afirmações de BB.
BB afirma também que o livro é um "panfleto apaixonado, crivado de estereótipos linguísticos esquerdistas". Apaixonado ele é, decididamente. Agora, se "panfleto" é acusação feita por uma maioria oprimida contra a tirania de uma minoria pretensiosa, então ele é também um panfleto. Nesse caso, ele seria o primeiro no Brasil. No que tange à expressão "estereótipos linguísticos esquerdistas", devo observar que o mundo linguístico no Brasil (e de certa maneira em todo o mundo ocidental) é altamente alienado. Aliás, isso já está dito no começo do primeiro capítulo do presente livro. Portanto, BB, no Brasil não temos estereótipos esquerdistas no âmbito da linguística. Eles só existiriam num país com uma longa tradição de linguistas esquerdistas. Para começo de conversa, a linguística começou no Brasil só na década de 60, de maneira muito bem comportada, bem estruturalista e, na década seguinte, gerativo-transformacionalista. Ambas tendências são bem alienadas politicamente, como qualquer marxista sabe muito bem.
Mas, a pecha de "estereótipo esquerdista" merece mais comentários. Este é o lema da direita, ou seja, afirmar que as esquerdas vivem manipulando estereótipos. Aqui eu me lembro de um Gustavo Corção, de um Leonildo Tabosa Pessoa, de um Plínio Correa de Oliveira et caterva que todo ano redigem o epitáfio do marxismo, ou seja, decretem sua morte. Ainda bem que já lá se vão mais de 100 anos que a direita declara que ele morreu, a todo ano que passa. Dada a grande quantidade de trabalhos que são publicados da perspectiva marxista no mando inteiro, inclusive no Brasil, somos levados a crer que ele é como a Fênix, que renasce das próprias cinzas. E com mais vigor do que antes, para tristeza das ilustres personalidades supra, BB e AT. Para a direita, o marxismo continua usando a mesma linguagem de 100 anos atrás. Que bom para os marxistas. Isso só vem provar sua coerência. Prova também que as injustiças que ele denunciava há 100 anos atrás continuam, portanto, não é necessário mudar a linguagem de denúncia. Mas, para tentar desmoralizá-lo, a direita rotula uma linguagem contundente e firme como uma marxismo de "estereótipo". Que pena que ainda haja gente que não veja o óbvio.
Por falar em óbvio, BB efetivamente não o vê. Ela não viu que o meu livro parte da obviedade de que a língua de um povo é a língua usada por esse povo. Não viu também que todo o livro gira em torno dessa questão. Ela preferiu ficar em generalidades e superficialidades como a de que eu me perco "em gestos efusivos contra indivíduos, projetos em andamento, referências vagas e, principalmente, falta de consistência". Como ela deve ter feito seus comentários com base no que alguém lhe disse sobre o livro, não viu que todo ele foi escrito para comprovar a obviedade supra e para tirar as consequências de sua observância e de sua não observância. Isto para BB, é falta de consistência. Ela prefere o Centrão que é direita mas se chama de "Centro".
Eu gostaria de saber contra quem eu gesticulei efusivamente, contra que projetos em andamento eu me manifestei (será que o NURC?  Aí ela tem razão).
Por, fim, BB imputa a mim arranhar "posturas isentas". Jamais, em tempo algum eu deixei de tomar partido. Eu sempre assumi abertamente que defendo o ponto-de-vista da maioria oprimida, que como disse Löwy, precisa da verdade para se impor. A minoria opressora, ao contrária, precisa sempre do escuro, de sigilos, age na calada noite, pois sabe que o que defende é injusto, imoral, prejudica a maioria. É o caso dos gramáticos e de todo o aparelho ideológico escolar, tão ardorosamente defendidos por BB.
"Last but not least", eu tenho uma "mágoa pessoal" muito grande por ver que sou impotente contra a corrupção, a impunidade o autoritarismo velados ou descarados, sempre presentes nos nossos administradores (em geral biônicos), que fazem com que haja tantas distorções, tantas injustiças em nosso país. Apesar de sermos a oitava economia do mundo, mais de 40% de nosso povo m vive na miséria. Há algum mal em estar magoado por isso?
A partir de agora, vou comentar os outros cinco artigos e resenhas, ou seja, os de JM, AC, MB, MC e RM, que aparecem sob os números 3, 4, 5, 6 e 7, no começo deste capítulo. A tarefa aqui é bem mais fácil, não só por eles não terem assumido uma postura de linguistas vulgares mas também pelo fato de no essencial concordarmos uns com os outros. Só aqui ou ali se faz necessário um esclarecimento.
Começo pela resenha de JM. Este autor tem um enorme poder de síntese. Conseguiu comprimir em apenas três parágrafos curtos praticamente todo o conteúdo do livro, com exceção do último, o sexto. Um deslize imperdoável cometido por JM é o de achar que há diferenças "aberrantes", em relação ao "português ensinado nas escolas", no "idioma vivo, falado pela população". Aí JM caiu na mesma esparrela que AT e BB, ou seja, considerar as "variantes" da língua como "desvios", como deformações.
"O resenhista fica perplexo" pelo fato de o livro defender a ideia de que há tantas normas quantas as modalidades de linguagem faladas por comunidades específicas. Ele acha que "isto aniquila todo o acervo didático implantado até hoje". Nada disso, JM! O que QPB defende é que ao se estabelecer a norma do português brasileiro deve ser levado em conta o português das pessoas cultas de todo o Brasil, ainda que por amostragem, já que é impraticável no momento consultar todas elas. Com isso, teríamos um português fatalmente diferente do português lusitanizante das gramáticas, o que, não obstante, não interferiria de maneira drástica na intercompreensão entre brasileiros e portugueses. Entre pessoas que tiveram chance de cursar a escola até a universidade e depois conseguiram um emprego condigno, não há nenhum problema de comunicação com os portugueses. Além do mais, o "padrão geral de uma cultura letrada" não precisa ser queimado por uma turba enfurecida como num processo revolucionário. Ele continuará aí. Quem quiser ter acesso a ele, poderá tê-lo, contanto que tenha as condições para tal (econômicas, no caso). No caso do inglês, todos nós procuramos aprendê-Io avidamente, nossa própria iniciativa.
Por fim, "o slogan publicitário "se liga Brasil" não tem duplo erro gramatical. Como mostrei no livro que JM resenhou tão bem (pág. 25 a 27), a tendência no Brasil é colocar o pronome oblíquo átono antes do verbo. O resto se explica pelo nível de linguagem a que a expressão pertence. A questão é mais complexa do que pode parecer à primeira vista. Aqui vale a pena relembrar Bernstein e Ammon.
A resenha de MB é tão pequena quanto a de JM. No entanto, dos artigos e resenhas comentados até aqui, ele é o único que reconhece, explicitamente, alguns dos pontos fundamentais do livro. O primeiro, é a íntima relação que existe entre língua e poder. MB chega a esboçar um histórico da questão, começando com a China antiga, passando pela Índia das castas pela Reforma luterano-calvinista até chegar à sociolinguística moderna. Segundo MB, na relação estreitíssima entre língua e poder", "tudo depende da situaçâo em que se acha quem julga e quem é julgado: se o primeiro, o juiz, ocupa um lugar privilegiado no sistema social em que se insere, é natural que suas normas de comportamento e de pensamento sejam consideradas as corretas". Uma frase sua muito original é: "a língua oficial - ponte entre a servidão e a dominação".
MB foi o primeiro, até aqui, a ver que o livro tem "um mesmo acorde insistente: a língua do povo brasileiro é a língua usada pelo povo brasileiro" que, por incrível que pareça, no foi visto nem por AT nem por BB, embora intuído por JM. MB foi também o único a chamar a atenção para o fato de que o livro defende uma espécie de constituinte para a língua: "para se descobrir qual é o português do Brasil, o autor propõe uma ampla investigação do português que se usa no Brasil, hoje".
Para terminar, transcrevo o último período de texto de MB, que é relativamente longo. "Unindo, talvez pela primeira vez no Brasil, o estudo linguístico e a análise materialista dialética dos fatos sociológicos, Hildo do Couto mostra que a questão de uma norma linguística nacional está inextricavelmente relacionada ao modo de produção capitalista, que não prescinde da oposição entre uma classe minoritária que domine e explore uma segunda classe majoritária, estrategicamente mantida à distância do patrimônio cultural, científico e tecnológico que ela própria, sem o saber, construiu e constrói".
O artigo de AC também é imparcial ou, pelo menos, não unilateral e leviano como os de AT e BB. Assim, ele reconhece que o livro denuncia o  "subordinar a norma brasileira, através do ensino e das gramáticas, à portuguesa, isto é, numa distorção dupla, espacial e temporal". Reconhece também que "não se sabe entre nós qual a norma culta brasileira, porque os nossos filólogos em vez de observar os fenômenos linguísticos do uso brasileiro, não fazem mais do que copiar as gramáticas portuguesas e se copiarem uns aos outros". Concorda AC com a denúncia que fiz do Projeto NURC, calcanhar de Aquiles de AT e, ao que parece, também de BB. Concordamos também no que concerne ao procedimento a ser seguido ao se estabelecer a norma culta do português brasileiro, ou seja, levando-se em conta a linguagem das pessoas cultas do Brasil, de todo o Brasil. Por fim, diz AC, "que merece aplausos os que têm a coragem, como o professor Hildo do Couto, em desafiar a ira dos nossos autoritários mestres na defesa dos nossos hábitos linguísticos".
Em seguida temos o artigo de MC. Apesar de ser minha colega de trabalho, ela não ficou a tecer loas ao livro. Pelo contrário. Ela afirma que QPB pode ser dividido "em dois momentos: o primeiro, situado no primeiro capítulo, "Partindo de um fato óbvio", é de demolição. O autor ataca de forma violenta, mesmo agressiva, o modo como vem sendo imposto o 'português correto' no Brasil". Em seguida, MC acha que houve uma "rendição", um abrandamento de postura. "É reconhecida, então, a necessidade da existência de uma norma". Acontece que em momento algum o livro negou a necessidade de normas que orientem o comportamento coletivo. Só que como está em QPB (pág. 69 a 71) e no capítulo anterior, do presente livro, tais normas devem ser estabelecidas por coordenação geral da vontade da maioria, e não da subordinação de seus interesses ao de uma minoria (os gramáticos, no caso).
MC afirma também que "encontram-se alguns exageros e formulações de extrema fragilidade". Como exemplo, ela alega que eu associo "norma culta" a "uma sociedade burguesa capitalista" (p.9). Na realidade, o que ali está dito é que esse tipo de sociedade facilita e usa abundantemente normas cultas alienadas da maioria. Tanto não é verdade que só em sociedades burguesas há normas cultas que na mesma página são citadas a Alemanha, a Inglaterra e a França, nas quais também existe uma norma culta distante do que é usado pela grande maioria da população. Só que acrescento que lá todos têm acesso a essa norma culta. Portanto, mesmo que ela seja distante da linguagem quotidiana do povo, não é injusta porque todos podem aprendê-la, o que está longe de acontecer no Brasil, que além de ser "uma sociedade burguea capitalista", é também subdesenvolvida, periférica, dependente, fundo-de-quintal dos Estados Unidos, com todo o lixo que de lá escorre.
Num ponto, MC tem toda razão. O livro apresenta um "tom sincero e apaixonado". Quanto a explicar melhor o que é a norma, isso já está feito nas páginas precedentes. Agora, "preservação da unidade idiomática" é o maior equívoco de todo regime autoritário. Língua não se preserva nem se unifica. O que se preserva é a sociedade como um todo. Se a sociedade brasileira, ou melhor, se o povo brasileiro está todo mutilado devido ao desgoverno, à corrupção e ao autoritarismo, como é que sua língua pode ser preservada lusitanamente? O fato espantoso é que apesar de tudo, o brasileiro continua falando e, o mais espantoso ainda, com pequenas diferenças, do Oiapoque para o Chuí e de Ponta do Seixas para a Serra do Divisor. Os liguistas vulgares querem nos impingir uma desigualdade linguística inexistente no Brasil a fim de imporem com mais facilidade a sua "norma culta", alienada da realidade brasileira. Hoje, a Rede Globo de Televisão unifica o Brasil linguística e não linguisticamente mais do qualquer decreto inspirado pela Academia Brasileira de Letras. O Brasil é um imenso país sem praticamente dialetos regionais, o que não ocorre na Alemanha, na Itália, na França, no Japão, etc., que são países muito menores do que muitos estados brasileiros.
A última resenha, e a mais recente, é a de RM. Para honra minha, ela cita até Fernando Pessoa, sendo, portanto, a mais poética de todas as resenhas. Uma das coisas que mais chamam a atenção em RM é a ênfase que ele põe no fato de o livro "subverter". Primeiro, "por ser politicamente atuante". Segundo, "pelo uso da língua e pelos epítetos pouco convencionais dirigidos à gramática tradicional, aos filólogos e aos professores". Terceiro, "pela própria estrutura da obra".  
Como  fez MB, também RM reconheceu a ênfase dada em a QPB à obviedade de que a língua de um povo é a língua usada por esse povo. RM chega  a tirar uma das consequências lógicas desse fato: "a língua do povo brasileiro é a língua usada pelo povo brasileiro".
Por fim, RM chama a atenção para o fato de não ser a incomunicabilidade justificativa para o poder linguístico discriminar as variedades populares da língua. Esse é um ponto de suma importância. Ele é a bandeira que a direita gramatical sempre desfralda quando quer justificar suas normas alienadas da realidade brasileira. Eu já chamei a atenção, acima, para o fato de analfabeto que isso é o maior papo-furado. Um potiguar que nunca saiu de sua terra e um gaúcho também analfabeto que nunca saiu de sua terra se comunicam sem maiores problemas. O Brasil tem uma unidade linguística, mesmo a nível popular, de fazer inveja a qualquer país europeu, por menor que seja. Além do mais, a televisão está padronizando tudo pela pior forma possível, levando a americanização que invadiu o mundo inteiro até às zonas rurais.
A língua existe única e exclusivamente para a comunicação. Portanto, senhores direitistas, não tenham medo. O caos linguístico jamais virá. Vai haver uma padronização geral, mas não como os senhores querem (pelas normas lusitanizantes). Ela virá no bojo do processo arrasador de americanização geral do mundo, via meios de comunicação de massa. E isso eu sei que os senhores também abominam (para uma discussão contundente do assunto no que se refere à França, veja Henri Gobard, L'Aliénation Linguistique).


4. Recolocando a questão
Autores tão diversos em suas linhas de pensamento quanto Marx (Sobre a Questão Judia e "Prefácio" a Para uma Críti­ca da Economia Política) e Wittgenstein (Tractatus logico-philosophicus) mencionaram o fato de que propor um problema já implca sugerir sua solução. Segundo Marx, a humanidade só se propõe as tarefas que pode resolver, pois, se se considera mais atentamente, se chegará à conclusão de que a própria tarefa só aparece onde as condições materiais de sua solução já existem, ou, pelo menos, são captadas no processo de seu devir" ("Prefácio"). Já Wittgenstein afirma, na sua linguagem concisa e lacônica: "Se uma questão pode ser colocada, poderá também ser respondida" (Tractatus).
As duas citações vêm a propósito da pergunta feita, so­bretudo por jovens idealistas, sobre o porque de não se ter prati­cado uma verdadeira democracia político-econômica e linguística já entre os gregos, na Idade Média, após a Revolução Francesa, etc.Por que nem se discutiu tais questões, por que elas não eram postas?
Na comuna primitiva, que foi a primeira forma de organização social, esses problemas não existiam. As relações sociais eram de coordenação, eram cooperativas. Não havia propriedade pri­vada. Presume-se, portanto, que a língua dessa comunidade fosse relativamente homogênea, sem "dialetos", sem diferenciação de linguagem em que existissem expressões como (a) "amanhã nós trabalharemos" e (b)amanhã nóis vai trabaiá". Consequentemente, não havia discri­minação linguística, ou mlhor, não havia discriminação social ne­nhuma. Socialmente todos eram iguais. Portanto, o problema de uma "democracia linguística" não se punha simplesmente porque ele não existia. Essas relações cooperativas ainda sobrevivem em algumas tribos indígenas.
Na formação sócio-econômica escravista, que se seguiu à comuna primitiva, já começou a haver um excedente na produção e al­guns espertalhões se apropriaram dele. Começou a haver a escravi­zação de homens. É praticamente o surgimento do estado. As relações sociais já são, obviamente, de subordinação, competitivas. Não obstante, não havia uma consciência, nem por parte dos dominadores nem por parte dos dominados, a respeito da perversidade dessas relações. Pre­sume-se que tenha sido nessa época que a língua começou a se dife­renciar em "culta" (a da minoria escravocrata) e "inculta", "vulgar" (a dos escravos e do restante do "populacho"). Mas, tudo parecia mais ou menos natural, tinha que ser assim, não poderia ser de outro modo. A questão não era posta porque não havia condições obje­tivas para respondê-1a.
A formação sócio-econômica seguinte, o feudalismo, continuou e acirrou as diferenças entre senhores feudais e servos, camponeses. Só que aqui a escravidão era disfarçada. O servo podia ter alguma propriedade, na qual podia trabalhar após ter dado conta do trabalho para o senhor feudal. A única diferença entre o modo de produção feudal e o escravista que lhe precedeu é que ele defendia os interesses econômicos e políticos não dos escravocratas, mas dos senhores feudais. O estado continuou se desenvolvendo, o que significa que as diferenciações linguísticas entre linguagem "nobre" e "popular" se acirraram mais ainda. Mesmo assim, as condições para uma reflexão sobre a justeza ou não dessa distinção ainda não existiam. Certamente o povo pensava que era realmente rústico, ignorante, por conseguinte, falava mal. Quem falava bem era a nobreza, refinada, amaneirada. Ninguém punha a questão do porquê dessa discrepância. Eles não tinham ainda uma respos­ta para ela.
Com a Revolução Francesa e a consequente abolição definitiva das relações feudais, surgiu a modo de produção capitalista.A ex­ploração da maioria por uma minoria prepotente continuou, só que sob nova forma. Não havia mais a escravatura, nem sob a forma a­tenuada do feudalismo. Não obstante, o trabalhador era obrigado a entregar sua força de trabalho ao dono da fábrica a troco de salários vis, trabalhando mais de 10 horas por dia. De qualquer ma­neira, a divisão do trabalho se intensificou (ela havia se inicia­do na formação escravista), o que teve consequências no desenvol­vimento da linguagem, ou seja, um maior refinamento e especializa­ção lexical a fim de dar conta das novas especialidades. Foi a época do surgimento dos movimentos socialistas, que punham em questão a propriedade privada, as relações de produção capitalista” a própria existência do estado (Proudhon, Bakunin, Kropotkin, Marx, Engels, etc.).
Vê-se, assim, que na época do capitalismo as condições para se pôr a questão linguística já existiam, ainda que de modo precário. Foi assim Que, em fins do século passado, surgiu a chamada geografia linguística, a dialetologia, cuja preocupação era registrar os dialetos regionais a fim de que não desaparecessem. Es­tavam surgindo as estradas-de-ferro, e os filólogos temiam que com isso as comunicações se intensificassem e os falares regionais desa­parecessem.
À primeira vista, parece um movimento altamente consciente na direção de desfazer os preconceitos linguísticos, de uma maior democracia linguística. Porém, se observarmos melhor, verificaremos que o que os dialetólogos faziam era aproximadamente o mesmo que os colonizadores faziam com os dados culturais dos países recém-desco­bertos na Ásia, na África e na América. Ou seja, eles tiravam os objetos históricos de seus legítimos donos e os levavam para os mu­seus de Londres, de Paris, de Madri, etc. Era um verdadeiro saque, uma pilhagem. Do mesmo modo, os dialetólogos se preocupavam em recolher amostras dos falares regionais a fim de enriquecer o acervo cultural das classes dominantes urbanas. Esses falares eram uma espécie de dado folclórico, que devia ir para o museu da burguesia como coisa exótica. Era a época do romantismo, ideologia típica da burguesia.
Em seguida ao movimento dialetológico e ao do comparatista surgiu, já no nosso século, o es­truturalismo (já mencionado). Para ele a língua era um sis­tema que permitia a intercompreensão entre os membros da sociedade. Portanto, era uma visão social da linguagem. Só que a visão da língua como um organismo, como um sistema fechado, perfeito, acabou desvinculando-a da sociedade que a usava. A estrutura linguística passou a ser uma finalidade em si mesma. Se por um lado o estruturalismo mostrou a estrutura interna do xavante é tão per­feita quanto a do francês, por outro lado ele excluiu o indivíduo falante. Além do mais, se a língua passou a ser encarada como uma estrutura perfeita, a consequência lógica é que ela não se transformava: o que é perfeito não muda. E assim, o estruturalismo acabou se esclero­sando, pois ignorava a fato de que a língua é dinâmica, está sempre evoluindo. Essa ideologia esteve em voga até o final da década de 60.
Na década de 70 a moda era a gramática gerativa transformacio­nal, que justamente enfatizava o aspecto individual, criador, dinâ­mico" da linguagem. Mas, como já vimos, o indivíduo dela era um indivíduo abstrato, numa comunidade abstrata. O importante passou a ser a formalização. E como disse M. Bakhtin (Marxismo e Filosofia da Linguagem), a formalização é irmã gêmea do autoritarismo. O que não é de se admirar, pois essa teoria linguística nasceu nos Estados U­nidos, com financiamento das Forças Armadas.
Um questionamento verdadeiro sobre o autoritarismo linguístico só começou a surgir a partir do advento do estruturalismo, em autares marginais, não inseridos na ideologia acadêmica. Nenhum deles é considerado um "grande" linguista pela academia linguística. Essa consiste numa escolinha de elogios mútuos, de convites mútuos, de citações mútuas.
Só os membros dessa escolinha conseguem publicar suas obras nas grandes editoras nacionais. Além do mais, seus projetos são sem­pre aprovados pelas agências financiadoras, como "relevantes. No entanto, em que tais projetos ajudam na construção de uma socie­dade mais justa? Em nada. Apenas permitem aos seus autores publi­carem artigos e até livros no exterior, em inglês. O resultado mais palpável de tudo isso é o aumento de seu poder linguístico. Autores que, como Calvet na França, contestm o poder linguístico (e o não linguístico também), não são considerados sérios pelos acadêmicos, os linguistas clássicos, que sequer os lem.
O motivo para um tal estado de coisas é mais ou menos evidente. Esses autores marginais não desvinculam linguagem e poder, lingua­gem e política, linguagem e ideologia, linguagem e sociedade, para dizê-lo em poucas palavras. Quem diz que há colonialismo linguístico, tanto externa quanto internamente, quem tem a ousadia de dizer que a defesa de uma "norma culta" distante da realidade concreta do linguajar do povo é dominação, quem tem coragem de levantar e de­fender tais questões não pode ser aceito na academia. Mesmo que conviva fisicamente com os acadêmicos, não é um deles. Afirmam que ele não é sério. No fundo, no fundo, porém, eles devem, ter a consciência de que assim procedem na defesa dos próprios interesses,  não por o ponto de vista dos "marginais" estar errado. Afinal, esses "marginais" defendem a ideia de que a língua reflete a sociedade em que 4é foladaa, de que a língua reflete e refrata (Bakhtin) as relações so­ciais da comunidade em que é usada. Enfim, defendem a ideia de que a língua parece com o povo que a fala.
Eu tenho plena consciência de que os acadêmicos não têm conhecimento de QPB e do presente livro. Para eles isso não é "ciência".  A ciência, para eles, é neutra, não se envolve com  questões políticas, ideológicas, econômicas. Como bons positivistas, separam sua "ciência" da subjetividade, de toda e qualquer vincula­ção político-ideológica a fim de manter uma presumível "objetividade". Com isso ignoram, talvez conscientemente, que até mesmo entre os positivistas, neopositivistas e outros positivistas existe quem não considera, a ciência neutra. Com isso no estou dizendo que todo mundo deve ser um ativista político. Pelo contrário. Há várias maneiras de participar politicamente. Uma delas é estar consciente das implicações políticas de sua ciência, de sua atividade, da relevância social dela na solução dos problemas da miséria em que está atolada a maioria da população. Uma atitude consciente, mesmo que dentro do laboratório, pode ser de grande valia corno retaguarda dos mo­vimentos sociais de libertação do povo sofredor. Não é necessário deixar o tubo de ensaio e ir participar das passeatas  de protesto  na  rua.
AT é um acadêmico. Não é para menos que ele  afirma que "qual­quer análise linguística mostra que a língua é sempre uma constru­çao altamente elaborada, seja a dos povos ágrafos, seja a das na­ções de tradição escrita.. Não existe uma 'língua simples". Ou seja para ele a língua é uma estrutura,  no que está  inteiramente certo. Só não está certo quando crê que a língua é só estrutura ("construção altamente elaborada"). A sua é a concepção de língua que Michaíl Bakhtin chama de "objetivismo abstrato". Bakhtin a resume da seguinte maneira:
"1. A língua é um sistema estável, imutável, de formas lin­guísticas submetidas a uma norma fornecida tal qual à consciência individual e peremptória para esta.
2. As leis da língua são essencialmente leis linguísticas específicas, que estabelecem ligações entre os signos linguísti­cos no interior de sistema fechado. Estas leis são objetivas relativamente a toda consciência subjetiva.
3. As ligações linguísticas especificas nada têm a ver com valores ideológicos (artisticos, cognitívos ou outros). Não se en­contra, na base dos atos de fala lingilksticos, nenhum motor ideológico.  Entre a palavra significante-HHC) e seu sentido (signifi­cado-HHC), não existe vinculo natural e compreensível para a consciência, nem vínculo artístico.
4. Os atos individuais de fala constituem, do ponto de vista da língua, simples refrações ou variações fortuitas ou mesmo de formações das formas normativas. Mas são justamente estes atos individuais de fala que explicam a mudança histórica das formas da língua; enquanto tal, a mudança é, do ponto de vista do siste­ma, irracional e mesmo desprovida de sentido. Entre o sistema da língua e sua história não existe nem vinculo nem afinidade de motivos. Eles sao estranhos entre si  (Marxismo e Filosofia da Linguagem, p. 83)"

Eu considerei essa longa citação necessária porque ela expõe toda a concepção de linguagem do status quo, ou seja, a defendida por AT, BB e todos os linguistas vulgares e clássicos, enfim, pelos linguistas acadêmicos. Sendo um sistema perfeito, desligado
de uma comunidade de falantes, ele se cristaliza, vira uma realidade com um fin em si mesma. Passa a ser um objeto, encarado positivisticamente. Como objeto independente das vicissitudes históri­cas por que passam seus usuários, a língua pode ser manipulada, po­de-se tomar uma parte (a língua antiquada das gramáticas) como se fosse a língua portuguesa. Pode-se convencer os incautos de que o português "perfeito" é o "culto". A língua do povo é uma deformação dele, como o próprio Bakhtin já diz, na citação acima.
Na realidade, o que os linguistas vulgares, como AT,  fazem é tapar o sol com a peneira. Todo mundo está vendo que a realidade linguística brasileira concreta não tem praticamente nada a ver com a chamada norma gramatical, com a linguagem considerada culta. Todo mundo sabe que o que o brasileiro real, de carne e osso usa é tão diferente de certas expressões da linguagem lusitanizante, quanto essas últimas o são do espanhal culto. No entanto, afer­ram-se a ela com unhas e dentes. Mesmo quando, num gesto de libe­ralismo extremo, se lançam a um projeto modernizante, como o pro­jeto NURC, excluem centenas de comunidades de porte médio e até algumas de grande porte, "mas que não têm tradição", como me disse pessoalmente um dos primeiros coordenadores do proje­to. Isso sem falar nas comunidades menores,  que  são excluídas mesmo que tenham um grande contingente de pessoas cultas.
Tapam o sol com a peneira também ao quererem impor a lingua­gem dos grandes centros aos pequenos. Como Calvet já nosrou para a França, desde o século XVI rata-se pura e simplesmente de centralismo, de elitismo, de aulicismo linguísticos. Apesar disso que rem nos impingir a idea de que o projeto seria  um avanço ci­entíffico e, como tal, democrático. Ora, os déspotas esclarecidos também pensavam assim. Querer transformar uma questão política em questão de pura ciência, de lógica, significa impor um autoritarismo, um despotismo dos mais execráveis.
Hoje em dia já existe, felizmente, uma soma considerável de ensaios, livros, artigos e encontros em que a questão da dominação linguística vem sendo posta a nu. Na União Soviética, Mikhail Bakhtin publicou, já em 1929, o seu Marxismo e Filosofia  da Lingua­gem, mencionado acima, que, apesar de eminentemente teórico, contém uma série de indicações para o equacionamento do problema lin,guístico. Na França, temos os trabalhos de Calvet, de Henri Gobard  (L'Àliénation Linguistique), os trabalhos de Marcellesi e vários tros, todos da atualidade. Em épocas anteriores, já publicava ensaios nesta direção M.Cohen (década de 50). Na Itália, na Alemanha (tanto a Ocidental quanto Oriental) há inúmeros livros e ar­tigos recolocando o problema.
Mais recentemente, até no Brasil têm surgido autores preocupados com recolocar a questão.  Já na década de 60,  Carlos Henrique Escobar tentava, quase sozinho, mostrar que há outras e melhores saídas para se abordar a questão linguística. Ele era eminentemente um teórico, mas os caminhos por ele sugeridos eram aproximadamente os mesmos a­qui defendidos. Em outras áreas, como por exemplo na teoria da literatura, também começou a haver vozes criticas na mesma direção, já naquela década. Na UNICAMP existe toda uma geração de jovens pesquisadores que estão afinados com a nova ideologia cientffica. Em outros centros do estado de S. Paulo encontra-se muitos deles aqui e ali. No Rio, em Belo Horizonte, em Brasília, enfim, por todo o Brasil eles estão surgindo em grande quantidade, o que se justifica in­clusive como resultado de um grito de liberdade após 20 anos de ditadura militar. Os linguistas vulgares fazem tudo para contê-los.
Até na imprensa temos defensores de algo que se aproximaria de uma constituinte da língua. Por exemplo, o jornalista José Roberto Whitaker Penteado Filho tem protestado contra a arbitrariedade de alguns filólogos que se arrogaram o direito de modificar a ortografia da língua a seu bel-prazer. A propósito dos "17 filólogos de Portugal, Brasil, Angola, Cabo Verde, Moçambique e São Tomé e Príncipe" que se reuni­ram no Rio de Janeiro para decidir o que fazer do idioma português, falado ---de acordo com as estatísticas -- por 170  milhões de pessoas", José Roberto diz o seguinte: "O que me revolta e deixa perplexo é que se acate como perfeitamente aceitável e até natural que esses dezes­sete senhores e sanhoras decidam, dessa forma intempestiva e autori­tária, como devem escrever mais de 100 milhões de pessoas -- conside­rando que devemos subtrair, dos 170 milhões que falam português, os analfabetos. Afinal, quem são os donos da língua?". Em seguida ele mostra que uma plêiade de profissionais trabalham com a língua dia­riamente, além dos linguistas, filólogos e escritores. É o caso dos jornalistas, publicitários "que diariamente escrevem mi­lhões de palavras em páginas de jornais, revistas, anúncios, folhet­os, correspondências e relatórios". Como ele próprio diz, esses são os textos mais lidos e ouvidos, diariamente.
No final do texto José Roberto diz: "Causa-me tristeza e es­panto que ainda não tenham protestado contra essa evidente arbitra­riedade as associações de classe que reúnem os trabalhadores do i­dioma, como a Ordem dos Advogados do Brasil ou a Associação de Imprensa. Mas ainda há tempo para agir. A conspiração que denuncio neste Ponto de Vista estabeleceu o seu projeto subversivo para daqui a dois
Anos" (VEJA,11/6/1986, p. 162).
Contra essa arbitrariedade filológica, manifestou-se também Eno Teodoro Wanke, presidente da Federação Brasileira de Entida­des Trovistas (FEBET). Em um folheto intitulado "A ortografia que nos ameaça", ele faz uma análise minuciosíssima do projeto e o critica em termos até irônicos. Ele chegou a escrever uma carta aos parlamentares, pois leu nos jornais que o projeto de reforma ortográfica já estaria tramitando no Congresso Nacional. Enfim, até pessoas ligadas a entidades populares já estão se preo­cupando com a questão linguística.
O que se verifica é que já está havendo uma massa crítica, que se contrapõe à velharia da Academia Brasileira de Letras, e que reivindica o direito (porque é também uma obrigação) de ter voz em tudo que diz respeito à coisa pública. Há um desejo de participação política irrefreável, o que, logicamente, não agrada aos linguistas vulgares, aos donos do poder linguístico. A ABL não pode mais monopolizar a política linguística no Brasil. Com o fim da ditadura militar, com o avanço dos movimentos feministas, dos negros, dos jovens e das minorias em geral, a consciência política do brasileiro está se despertando, o que provoca um desejo de par­tícipação que ninguém segura.
O que tudo o que ficou exposto acima mostra é que nos­sa época já apresenta as condições para se reformular a questão da língua. Reformular" é formular de novo, é simplesmente formular sob novas condições. Eu iria mais longe ainda e diria que a questão já está formulada. Portanto, se Marx e Wittgenstein, entre outros, es­tiverem corretos, já estamos em condição de dar uma resposta, adequada às exigências sociais de nossa época, à questão linguística nancional. Basta os administradores quererem. Pressão é o que não falta. O problema é que os nossos administradores, em geral alçados ao po­der político à           à força dinheiro, nunca ouvem os clamores do povo. Depois de eleitos eles se julgam no direito de votar "de acordo com suas consciências" e não com o que desejam seus eleitores.
Nós estamos precisando de uma definição da norma linguística nacional. A das gramáticas, que vem sendo imposta até agora, é ir­realista, é alienada, é uma imposição autoritária. Por outro lado, não teria sentido ir para escola para escrever só na linguagem que já se usa em casa. Logo, a definição da norma linguística é urgência urgentíssima. Só que ela deve ser formulada cooperativamente, pela coordenação da vontade da maioria, se não for possível levar em consideração a de todos. Essa norma não é, com certeza, a do projeto NURC. Como vimos em diversas oportunidades, ele é elitista, conservador, centralizador, discriminador e, consequentemente, mais uma iniciativa a serviço das classes dominantes.
O único "problema" com uma norma estabelecida pela coordenação da vontade da maioria é que ela desmascararia os donos do poder linguístico. Com efeito, todos logo perceberiam que todo mundo sa be a própria língua, o brasileiro não precisa aprender a língua portuguesa, já que ela é a sua língua. Uma norma assim seria legítima, autêntica, duradoura porque teria a adesão natural  de todos. Uma norma legítima como essa acabaria com a mamata dos donos do poder linguístico de ditar normas de colocação pronominal, de concordância e regência para nós e, consequentemente, tachar de burros aqueles que não assimilam bem tais normas fajutas. Acabaria com seu poder de policiar o cumprimento de tais normas nos vestibulares, nos concursos públicos, etc. Acabaria com seu poder de "prender" quem não cumprisse suas normas ilegítimas sob a forma de reprovação na escola, nos vestibulares e concursos.
Infelizmente, num país como o Brasil, em que o poder nunca te­ve legitimidade, eu não tenho nenhuma ilusão de que teremos uma norma legítima a curto e até mesmo a médio prazo. Os tentáculos do poder são tão fortes que por mais que o povo grite contra os desmandos (políticos e linguísticos), os donos do poder continuam sempre os mesmos, fazendo sempre as mesmas coisas que sempre fizeram. É o caso do Figueiredo e do Sarney que que­riam permanecer no poder a qualquer custo, mesmo que todo o povo estivesse dizendo: "Fora Figueiredo!", "Fora Sarney!". No plano linguístico, a Academia Brasileira de Letras continua designando os filólogos para "unificar", "reformar" nossa língua, mesmo que haja manifestação contrária por todo o Brasil, como vimos acima.


5. Porque você fala errado
Retomemos uma questão que foi apenas aflorada no início do primeiro capítulo: Qual é a razão de quase todo brasileiro achar que fala tudo errado? É claro que os habitantes de um país subdesenvolvido como o Brasil tem todos os motivos do mundo para se considerar inferiorizados frente à Europa e, modernamente, aos Estados Unidos. Dessa perspectiva, a causa estaria num complexo de inferioridade de colonizado. E esse sentimento vem de longa data, como mostra Viana Moog (Bandeirantes e Pioneiros).
O problema é que explicações como essa não à raiz da questão, ficam a meio caminho. É bem verdade que o brasileiro é complexado frente à Europa e os Estados Unidos, que tem sua mente sempre voltada para lá. Mas, se partíssemos dai, partiríamos do meio do caminho para a frente, perdendo com isso o começo, a causa principal. Como disse Eni P. Orlandi, teríamos uma história contada que seria mera caricatura da história contida. Além do mais, seria uma postura fatalista. O fatalismo é muito cômodo para os donos do poder, para as classes dominantes, que sempre querem que o povo pense que as coisas são inevitáveis, que não podemos inter­ferir no curso dos acontecimentos. Já que existe a causa tal, não há como evitar que as coisas se deem como se dão. Assim sendo, uma vez estabelecida a língua culta com base nos clássicos portugueses, nada mais pode ser alterado nela.
Os linguistas vulgares acatam explicações como a supra de muito bom grado. No entanto, aqueles que defendem os interesses da maioria, que propugnam por uma maior legitimidade do poder (linguístico e não linguístico) jamais poderiam aceitá-la. Como vimos com Marx, não basta interpretar o que está ocorrendo de outras manei­ras, é preciso desviar o próprio curso dos acontecimentos para u­ma direção mais justa. O próprio complexo tem suas causas. Elas precisam ser descobertas e explicitadas. Enfim, é preciso ir até a raiz do problema..
A causa principal do complexo que o brasileiro tem de que "não sabe português", de que "fala tudo errado" deve ser procurada no lugar onde jaz em berço esplêndido a causa de todos os males brasileiros (e de todo povo oprimido). Esse lugar é a existência de u­ma insignificante minoria, que sempre mantém o poder (econômico, político e militar) em suas mãos, por um lado, e de uma esmagadora maio ria, por outro lado, que trabalha só para manter o ócio dessa minoria, para manter seus privilégios. Como essa minoria ociosa tem tempo para "inventar modas",  forjar estilos de vida, modos de vestir e de se comportar, inclusive de falar, a fim de poder se distinguir do povão rude. Tudo que essa minoria pratica é tido como  "moderno", "in". Tudo que o povão faz é "cafona", "brega".
Na sociedade dos colunáveis, dos "cocktails", há todo um conjunto de normas de comportamento. Se alguém "de fora", por um acidente qualquer, se vê nesse meio, pode cometer ratas, pode cometer "gaffes", etc. No plano linguístico há um equivalente perfeito da "gaffe" social. O poder linguístico sempre martelou no ou­vido do povo que "carça", "arma" são errados. Assim., ele conclui (com toda lógica, aliás) que o uso do "r" depois da vogal é errado. Portanto, já que o certo é "calça", "alma", etc., for­mas como "malmita" (marmita),"galfo" (garfo) é que são as corretas. Os exemplos desse tipo de "erro" abundam. Os sociolinguistas lhe deram o nome de hipercorreção. Essa é, como se vê, uma amostra linguística do conflito existente entre uma classe dominadora, elitista, que detém todo o poder, e uma classe dominada, que vive para trabalhar para a outra, quando consegue trabalho. Há também uma imensa quantidade de pessoas desempregadas, passando fome.
Quem detém o poder, quem está atrás do canhão, pode dizer a quem não o detém, a quem está na frente dele o que é certo e o que é errado. Nos estertores da ditadura militar, o alucinado ge­neral Newton Cruz, então comandante militar do Planalto,  fez um repórter se desdizer, chamou-o de moleque e ainda lhe aplicou uma gravata, na frente das câmeras de televidão. Por quê? Simplesmente porque o general tinha poderes excepcionais, concedidos através da decretação de um estado de emergência pelo general Figueiredo, e estava com seus guarda-costas e suas tropas armadas até os den­tes. Qual é o jornalista inerme (sem armas) que vai ter razão diante de argumentos tão convincentes? Diga-se de passagem que hoje (começo de 1988) o referido general, já na reserva, está sendo processado por sequestro e assassínio de outro jornalista.
O tantas vezes citado Calvet demonstrou que a política linguística sempre esteve a serviço do poder dominante, do colonialismo, tanto externo quanto interno. E o que têm feito os donos do poder político-econômico? Como mostram os historiadores e os sociólogos, desde a época colonial o que imperou foi o centralismo, o elitismo, a excludência, o autoritarismo. Poderíamos acrescentar, a ilegitimidade. Ora, se a política linguística é uma fatia do mesmo bolo,  nada mais natural que ela tenha todas essas características.
Numa situação como a descrita, leitor, concluímos que você "fala errado" porque os donos do poder linguístico decretaram que você fala errado. Eles criaram regras espúrias, estranhas à sua realidade histórica, a fim de que você nunca consiga assimilá-las como querem, pois você não é especialista em linguagem, se dedica a outras atividades e, consequentemente, não tem o mesmo tempo que eles para decorar o cipoal que são as regras gramaticais. Portanto, concluem eles em sua lógica propositadamente distorcida, "o povo fala tudo errado", "o brasileiro fala tudo errado". Até o conservador gramático Celso Cunha chegou a usar expressões como "servilismo linguístico" e "terrorismo linguístico", no seu livro já mencionado. A linguista mineira Eunice Pontes escreve um artigo com o título de "Terrorismo gramatical". O conteúdo do artigo faz jus ao título.
Você já pensou no absurdo que existe na expressão "decorar as regras da gramática"!? Como vimos, todo mundo sabe todas as regras de sua própria língua. Caso contrário, não conseguiria falar. A gente só precisa decorar regras de línguas estrangeiras. E aqui chegamos, por outras vias, à conclusão de que as regras do "português culto" que os linguistas vulgares querem nos impingir como sendo o português brasileiro são estranhas ao nosso universo linguístico. O português culto "é como uma língua estrangeira para a gente simples. Aliás, eu já havia dito em QPB que construções como se vós não no-lo trouxerdes soam tão estranhas ao ouvido do menino da região urucuiana de Minas Gerais, por exemplo, como 'yo no lo quiero".
Aqui eu tenho que dar um puxão de orelha no povo (em que eu me incluo). Enquanto ele ficar repetindo o que o poder linguístico impingiu nele, ou seja, que fala tudo errado, estará fazendo o jogo do poder autoritário. Estará alimentando o seu poder. Segundo meu modo de ver, nós precisamos nos valorizar mais, nos desvencilhar do complexo de inferioridade de colonizados que os donos do poder nos impingiram. A linguagem do povo é rica, é poética, tem vida. Portanto, nada existe nela de torto, de errado, como o próprio estruturalismo já mostrou.
Pois bem, leitor! Se você "não fala bem", se você "fala tudo errado", como afirmam os linguistas vulgares, como é que poderá escrever bem? Há uma íntima relação entre linguagem falada e linguagem escrita. Na realidade, a linguagem escrita é uma espécie de fotografia da falada (isso os estruturalismo já havia reconhecido também). O que não quer dizer que a escrita não algumas especificidades frente à fala.
A propósito da redação, da produção de textos, eu gostaria de retomar a questo da língua como produção, instrumento e produto do trabalho linguístico humano, da intercomunicação. Como disse F. Rossi-Landi (Linguagem como Trabalho e como mercado), intimamente associado ao trabalho linguístico e formando um todo, em relação dialética com ele está o trabalho linguístico. Segundo esse autor, "o trabalho linguístico e o não linguístico são reconduzidos como espécies arbitrariamente separadas, ao gênero ao qual pertencem por igual direito. Pretende-se aqui tornar unitária a definição do homem enquanto animal falante e trabalhador" (p. 65). Como já vimos no capítulo II, os dois tipos de produção são como as duas faces de uma mesma moeda. Eles são regidos pelo mesmo princípio, caminham na mesma direção e se enriquecem ou empobrecem mutuamente.
Fazer uma redação é produzir um texto. Aliás, qualquer mensagem emitida por alguém a fim de ser recebida por outrem é um texto, quer seja escrita quer seja oral. O texto é o produto do trabalho linguístico humano, da intervenção linguística no meio social. Assim sendo, quando uma pessoa diz a outra: "Você vai ao cinema?", produziu um texto. Do mesmo modo, quando a outra responde: "Vou!" ou "Não!", também produziu um texto.
A concepção de língua como trabalho (Rossi-Landi) deve ser entendida no seu sentido mais radical. Como a produção linguística é irmã gêmea da produção não linguística, segue-se que para produzir um texto é necessário um instrumento. Marx disse que "não há produção possível sem um instrumento de produção; seja este instrumento apenas a mão". No caso da produção linguística, esse instrumento é o próprio acervo linguístico, o próprio conjunto dos produtos do trabalho linguístico de nossos antepassados que nos foi legado. Aí se inclui a própria técnica de uso do instrumento. Para nós, isso significa os estilos de falar, de produzir textos, os torneios linguísticos próprios, etc. Como disse ainda Marx, "não há produção possível sem trabalho passado, acumulado; seja esse trabalho a habilidade que o exercício repetido desenvolveu e fixou na mão do selvagem" (Para a Crítica da Economia Política, Abril Cultural, p. 105).
Vê-se, portanto, que não podemos fazer tabula rasa do que nos foi legado pelos antepassado, não podemos rejeitar in totum o instrumento e as técnicas de usá-lo, as técnicas de produção. Isso é tão inevitável que o próprio Marx chegou a dizer que "a tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos". No entanto, a geração atual também faz avançar a história, ela não fica apenas repetindo o que foi legado do passado, como gostariam os donos do poder (linguístico ou não).
O mundo evolui. A produção material (não linguística) se aperfeiçoa, o que significa que a produção linguística também se aperfeiçoa, se atualiza. Ou seja, a produção se dá sob determinadas condições históricas. Três linhas acima dos textos citados, Marx diz: "Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem: não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado" (18 Brumário de Luís Bonaparte). Isso quer dizer que para produzir nossos bens (o excedente as gerações futuras usarão como instrumento),  usamos instrumentos e técnicas legadas pelo passado. No entanto, nós também colaboramos para o progresso da humanidade, ou seja, nós também "fazemos história". Por outras palavras nós aperfeiçoamos não só os instrumentos recebidos do passado, mas também as próprias técnicas de produção, de uso dos instrumentos. No caso da produção material os aperfeiçoamentos são ato-evidentes. Na produção linguística, a coisa é mais sutil.
Pensemos nas expressões usadas para com a pessoa que se ama. Muita coisa que se dizia antigamente seria ultrapassada, cafona, hoje em dia. Na linguagem rural e na música sertaneja, de cuja cultura ela é uma manifestação, muitas das expressões já em desuso no meio urbano ainda sobrevivem. Hoje até expressões como "meu amor", querida(o)", "meu bem" estão inteiramente desgastadas. Elas são usadas até para com estranhos. Isso é uma das manifestações do que Erich From chamou de alienação linuística, que vem no bojo de uma alienação mais ampla de nossa época.
Retomando o fio da meada, vê-se que para falar, para escrever, enfim, para produzir nossos textos, temos que partir da linguagem e dos modos de falar e de escrever legados a nós pelos antepassados. Mas, como circunstâncias históricas (condições de produção) são bem diferentes das passadas, podemos e devemos introduzir novos vocábulos para designar as novas realidades, podemos e devemos introduzir novos modos (estilos) de falar e escrever. Do contrário não conseguiríamos nos avir com o mundo atual. Por exemplo, se estamos atulhados de bugigangas eletrônicas (e não eletrônicas) americanas, nossa língua também é invadida por expressões americanas que falam dessa realidade. Mesmo que tais bugigangas sejam produzidas no Japão, o espírito delas é americano. Por isso o inglês americano está conosco até quando dormimos.
O português atual está crivado de americanismos (Houaiss diz que ele está "americanalhado"). Assim sendo, para produzir textos que falem das novas realidades o produtor tem que pôr o pé direito no português tradicional (legado pelos antepassados) e lançar o esquerdo para esse português americanizado. Do contrário ele não avança, não fala da nova realidade. Não adiantam atitudes de xenofobia linguística, como se vê nas autoridades francesas que proibiram o uso de expressões americanas em textos oficiais. No seio do povo (o verdadeiro criador e usuário da língua) o processo é irrefreável. Aliás, a situação pode ser revertida. Só que começando por tomar medidas de base, que atinjam a correlação de forças econômicas, e não atacando apenas a superestrutura. No caso do Brasil, pode até ser que algum dia a influência cultural (a linguística inclusive) se inverta. Se o Brasil virar uma potência mundial, superior aos Estados Unidos, aí seria possível até inverter a direção da invasão cultural. Decretos-leis são inócuos nesse caso,
Os donos do poder linguístico não querem que continuemos a fazer história, que demos um passo adiante. Para eles, devemos continuar falando e escrevendo como os "clássicos" portugueses, como os antepassados gramaticais e filológicos falavam e escreviam. Felizmente o povo simplesmente não os obedece. Se o fizesse, a história parararia.
Adentremos um pouco mais a questão da produção de textos sob as novas condições históricas. Antes de mais nada quero salientar que o problema da redação é, hoje, uma questão mais política do que técnica, pressupondo-se, naturalmente, que a pessoa já seja alfabetizada e saiba escrever frases. Essa afirmação vai chocar muita gente, talvez até mesmo você, leitor. Portanto, é necessário que eu me explique melhor.
Ao dizer que a redação é uma questão política não estou excluindo todo o processo de aprendizado da escrita. Afinal, entendemos por "redação" só textos escritos. Não excluo tampouco um mínimo de conhecimento de organização textual como, por exemplo, a paragrafação, a pontuação, a virgulação, etc., ete. Ao fazer uma afirmação tão radical, baseei-me no fato de que muita gente que já domina tudo isso "não consegue escrever bem". Até alguns (muitos) professores fazem essa reclamação. Vê-se, portanto, que escrever bem, fazer uma boa redação não é uma questão puramente técnica, pois mesmo aqueles que já dominaram a parte formal "não conseguem escrever bem".
Até mesmo para a política econômica se pode afirmar que nós precisamos não é de técnicos, mas de humanistas verdadeiros, não "humanistas" retóricos como Sarney. Com efeito, durante os 20 anos em que os milicos desmandaram nesse país, a economia foi "dirigida" por técnicos, os famigerados tecnocratas. Como vimos, foi justamente nesse período que o país se afundou na maior dívida externa de sua história (sem nenhum resultado para o povo), a dívida interna foi para a estratosfera. A corrupção, o roubo puro e simples seguidos de impunidade passaram a ser a norma. Foi a decadência política, econômica e moral, como jamais se viu. Portanto, o que queremos agora na direção da economia do país é alguém que entenda de gente, de povo, de miséria e queira ir às causas do problama. Não é com fórmulas matemáticas mágicas que se resolverá o problema, mas com tomadas de decisão política. justa. E isso só um humanista pode fazer. Ele pode até ser economista, contanto que considere o Brasil como uma imensa casa (a palavra "economia" vem de "oikós" do grego, que significa "casa") que tem pais, mães,filhos, avós, etc. que precisam ter emprego, estudar, ter aposentadoria justa, a fim de terem uma vida que faça jus à dignidade humana.
A questão da redação é política, ideológica, de poder, em todos os sentidos da palavra. Devido aos longos anos de ensino opressivo, nós nos acostumamos a fazer nossas redações para agradar aos professores. Como eles próprios tinham uma concepção deformada de "bom texto", passou a haver uma trapaça mútua. Em QPB (p.105) eu já tinha tocado nessa questão. O aluno procura encher linguiça, escrever saltando uma linha, fazer letras grandes, etc. tudo a fim de encompridar o texto além do necessário para dar o número de páginas que o professor quer. É uma verdadeira farsa.
A "questão de poder" deve ser entendida, primeiramente, no seu sentido literal, óbvio, ou seja, "de poder (=ter a capacidade) de escrever bem". Só que esse "poder" pressupõe uma série de outros. Assim, quem tem o poder político-econômico-militar, ou seja, quem está por cima, tem não só uma visão de conjunto que os dominados não têm, mas também a tranquilidade, a calma (pelo menos aparente) para o raciocínio. Daí a ser considerado mais inteligente é apenas um pulo. No mesmo capítulo de meu livro (A questão do ensino), eu cito quatro exemplos de presença/ausência de criatividade (para usar um termo americano" conforme o indivíduo estivesse livre de opressão ou sob ela (p. 95-98).
Aqui eu gostaria de acrescentar mais um exemplo de "inteligência" associada ao poder. O capitão-de-mar-e-guerra José Carlos de A. Azevedo (o temível Azevedo) foi o preposto da ditadura militar que desmandou na Universidade de Brasília durante quase 20 anos, mesmo contra a vontade de mais de 80% da comunidade acadêmica, Pois bem, corria o boato na UnB de que "o Azevedo é muito inteligente. A gente pode dizer que ele é tirânico, corrupto, mas que ele é inteligente, isso ele é!". De tanto ouvir isso, fui procurar suas obras publicadas, a fim de comprovar sua inteligência. O que é que encontrei? Um manual de mecânica clássica (repetitório) e um ou dois livros sobre educação (ele era físico).
O manual de mecânica clássica, eu presumo, é uma compilação do que está assente nessa disciplina para ser usado em aula. É como uma apostila em que se tira um texto de um autor, outro de outro e se faz a "obra" do professor. Quanto ao livro sobre educação, esse eu posso julgar melhor. Como o próprio autor declara, trata-se da reunião de artigos escritos em fins de semana, sobre as coxas, e publicados em jornais, sem nenhuma pesquisa de campo ou bibliográfica. Azevedo simplesmente diz em todos eles (no tom dogmático que lhe é característico) o que acha sobre educação. É a pedagogia do achismo. Quando ele ia responder a alguma acusação contra suas falcatruas na administração dos bens da UnB, ele começava a atacar pessoalmente o acusador, falando de sua careca, que ele teria sido visto num motel com um homossexual, etc., em vez de contestar as acusações com provas. Que inteligência!
O motivo imediato para julgarem      esse militar-reitor intelitente é fácil de explicar. Como qualquer tirano, ele era elitista, centralizador do poder (até de demitir competentes professores sem justa causa), sempre sério. Aparentemente ele nunca se alterava, sobretudo diante das câmeras. Todos o temiam. Pois bem, quando ele convocava um professor ou um funcionário para falar com ele, este ia suando frio, tremendo, com medo de ser demitido ou indiciado em algum processo político espúrio, forjado. Para completar, ele fazia o pobre diabo esperar horas a fio na ante-sala, o que aumentava sobremaneira sua tensão. Quando, finalmente, a secretária abria as portas da torre de marfim, que condições tinha a vítima de racionar bem, de "ser inteligente"? Numa situação como aquela nada mais natural que o capitão-mar-e-guerra, respaldado por todo o pode militar da época fosse "mais inteligente". No lugar dele até eu o seria.
No ensino as coisas não se passam muito diferentemente, hoje menos que antigamente. Do modo como é ensinada na escola, a redação está sempre cercada de restrições. Em geral é sobre um tema escolhido pelo professor, na hora, de modo que o aluno não tem tempo pare refletir sobre ele (la. restrição). A redação tem que ser feita numa hora determinada, ou seja, durante a aula, quer o aluno esteja predisposto quer não (2a. restrição). O local também é pré-determinado, é a sala de aula, abarrotada de alunos, com um calor sufocante, sem ventilação (3a. restrição). Não bastassem essas restrições, o aluno sabe que o professor irá riscar de vermelho, e baixar sua nota por isso, todas as trocas de s por z, de x por ch, etc., e vice-versa. Ele sabe que mesmo que faça uma redação coerente, crítica, não obterá boa nota se a forma não estiver como o professor quer (4a. restrição). A maioria dos professores pré-fixam um número mínimo, e às vezes até um máximo, de linhas que o aluno deve preencher (5a. restrição). Para coroar todas essas restrições, temos a nota, da qual depende em parte a aprovação (6a. restrição). Em suma, a redação é uma punição.
Uma vez que não estamos mais na Idade Média, devemos rever o conceito de bom texto, de boa redação. Nas novas condições de produção, boa redação é aquela que organiza os conceitos no papel de forma coerente, concatenada. Fazer uma boa redação é pôr para fora o que se tem dentro, é dar seu recado, exteriorizar conteúdos, pensamentos, ideias. Ora, sabemos que só se exterioriza o que já foi interiorizado. De onde nada existe nada sai. Portanto, a gente só pode falar sobre aquilo que conhece (conhecer um assunto é dominá-lo - poder). E conhecimento é uma coisa muito complicada. Exteriorizá-lo é mais complicado ainda. Exige treinamento, Exige transpiração, como já disse em QPB.
Segundo a teoria do conhecimento do materialismo dialético, o conhecimento é uma relação entre um sujeito cognoscente (S) e um  objeto do conhecimento(O). É uma relação entre a consciência (S) e o mundo que rodeia o indivíduo (O). Na aquisição desse conhecimento por S temos duas etapas.
Na práxis social, o homem (S) tem contato com uma série de fenômenos do mundo exterior (O). Através dos cinco sentidos, esses fenômenos se projetam no cérebro de S9 refletem-se nele, o que resulta num tipo de conhecimento que se chama conhecimento sensorial. Esse conhecimento é compartilhado por homens e animais superiores.
Mas, o contato com os fenômenos se intensifica, dada a vivência diuturna de S com esses fenômenos (O). Esse contato vai aumentando até chegar um ponto em que o conhecimento sofre uma mudança qualitativa, há um salto qualitativo, e ele passa a ser um conhecimento racional. Esse é apanágio do homem. Até aqui temos a primeira etapa do processo de aquisição do conhecimento. É a etapa da passagem de O a S, da matéria para a corsciência. Ou seja, o sujeito ainda não agiu ativa e conscientemente sobre os fenômenos. Ele apenas os recebeu e assimilou (reflexo).
Há também uma segunda etapa do conhecimento. Ela consiste nu ma volta de S a O, da consciência à matéria. Nessa etapa pode se verificar se o conhecimento adquirido na primeira etapa é verdadeiro, válido, eficaz. Trata-se do conhecimento crítico, momento em que o sujeito  é não é mais apenas receptor de estímulos externos, estímulos que ele assimila e racionaliza. Na etapa do conhecimento crítico ele se volta conscientemente ao objeto a fim de analisá-lo, compreendê-lo em suas relações internas, de transformá-lo (cf. Mao Tsetung, "De onde provém as ideias corretas do homem?"). Como se vê, o processo do conhecimento é um complexo movimento dialético que vai do simples para o complexo, do inferior para o superior.
Para se fazer uma boa redação sobre um assunto qualquer (O), é necessário, em primeiro lugar, ter experienciado esse assunto, é necessário ter um conhecimento sensorial dele. É necessário se ter dele também um conhecimento racional, ou seja, a experiência que o sujeito tem dele precisa ir além da que o animal também poderia ter. Em suma, um domínio da primeira etapa do conhecimento é condição necessária para se puder produzir um bom texto. Necessária, porém, não suficiente. Afinal, falar sobre um objeto qualquer é refletir sobre ele criticamente, é discorrer coerentemente sobre ele. E isso só pode ser feito quando se atingiu o nível do conhecimento crítico. Sobretudo no caso dos textos  dissertativos o domínio desse nível de conhecimento é imprescindível. Há também os textos "descritivos"., ou seja, aqueles que descrevem um estado de coisa(descrição, propriamente dita) e um processo (narração). Nesse caso o conhecimento crítico não é tão importante como no anterior, mas mesmo assim, sem ele tais textos não sairiam.
Frequentemente o aluno não teve nem um contato superficial
com o assunto (O) sobre o qual o professor pede a redação, ou seja, ele não tem nem o tipo de conhecimento mais simples, inferior que é o conhecimento sensorial. Para se falar coerentemente
sobre um assunto qualquer é necessário que se tenha atingido «a etapa do conhecimento crítico sobre ele, como já vimos, como é que esse aluno rode se sair bem? E sair-se bem aqui significa atender as exigências do professor, não necessariamente fazer uma redação boa de fato. Suponhamos um professor da periferia ou da zona rural chegando à sala de aula e, de chofre, solicita uma redação sobre a constituinte. Ora, a maioria dos alunos não tem vivência (conhecimento sensorial e racional) com o mundo jurídico nem lê jornal. Eles estão interessados é nos concertos de "rock" (os urbanos), de música sertaneja (os rurícolas) e assuntos semelhantes. Consequentemente, nunca refletiram (conhecimento crítico) sobre o assunto (O). A gente só reflete sobre aquilo que já conhece, aquilo que já conhece pelo menos racionalmente. Nessas condições, o aluno usa o jogo de cintura (e isso é inteligência, muito superior que a do Azevedo e do Newton Cruz mencionados acima) para enganar o professor que, no fundo, é conivente com a trapaça.
Nas circunstâncias descritas, o que o professor faz é valorizar apenas a forma do texto. E forma no pior sentido da palavra, quase como sinônimo de formalidade, de forma pela forma, de formalismo. O conteúdo a ser expresso fica relegado para segundo plano, numa inaceitvel inversão da natureza de um bom texto. E aqui mais uma vez é o poder que se manifesta. Como sabemos, a formalidade está inextricavelmente ligada ao autoritarismo, sob a forma de burocracia, entre outras. De fato, uma excessiva preocupação com a forma tolhe a criatividade, abafa o ímpeto criador, o que é bem cômodo para os autoritarismos, que fogem de ideias como o diabo da cruz.
Uma vez que conteúdo só existe associado a forma e vice-versa, ou seja, uma vez que constituem uma unidade dialética, segue-se que em princípio, pode-se chegar à forma partindo do conteúdo e chegar ao conteúdo partindo da forma como tem feito a escola tradicional. No entanto, a segunda alternativa é mais espinhosa, mais tortuosa, mais difícil, mais anti-democrática, portanto, mais chata. Partir dos conteúdos, das ideias, sobretudo quando estão assimilados até a etapa do conhecimento critico, é muito mais agradável. No fim das contas acaba-se chegando também à forma, só que por um caminho muito mais fácil, muito mais natural que, inclusive, desperta o espirito questionador, critico. Em suma, o que se defende não é um desprezo total à forma. Isso seria um equívoco, um absurdo, para não dizer uma impossibilidade. A forma deve ser o fim do aprendizado da redação, não o início.
Se o professor insiste em cobrar a forma do aluno custe o que custar, se ele a leva a ferro e fogo desde o inicio, o que conseguirá serão bem comportados escrevinhadores de textos gramaticalmente corretos, talvez até mesmo coerentes e compactos, mas insossos. Exatamente como querem os donos do poder linguístico a serviço do poder político-econômico-militar.
Como escrevi em QPB, "como é que um aluno tímido, às vezes com fome, preocupado com os problemas domésticos, com as brigas dos pais, com o professor que irá corrigir s, z, x e ch e, quem sabe, até criticá-lo ironicamente, ridicularizando-o, como é que esse aluno pode escrever um bom texto sobre constituinte? É humanamente impossível. -Toda a sua energia e toda sua atenção estão voltadas para outros problemas que não o texto que lhe foi pedido, além de, possivelmente, não ter pensado no assunto criticamente. Mas, como ele não tem consciência de tudo isso, passará a se considerar incapaz de fazer uma redação, de escrever bem, e o português será uma matéria chata" (p. 105).
Fazer redação, produzir textos é um ato de criação. Ora, a criação é uma ruptura, é um ato de insubordinação a formalismos vazios, é um ato revolucionário de exteriorização social de conteúdos individuais. A criação de um texto é, como qualquer ato criador, incompatível com restrições, com opressões, como as mencionadas acima. É um ato de manifestação da liberdade individual, que sé será legítima se os outros (concidadãos) forem livres também. Ninguém é livre entre escravos.
É bem verdade que produzir um texto é, como de resto qualquer ato produtivo, trabalho. E trabalho é uma necessidade (no sentido filosófico), em geral é encarada como algo desagradável. Porém, se assumirmos a atitude já defendida na antiguidade de fazer com prazer ("ridendo discitur" = rindo se aprende, diziam os latinos) podemos inverter a situação. Sobretudo quando se tem uma visão social, de conjunto, da comunidade, o trabalho pode ser executado de modo não desagradável.
Por ocasião da revolução russa, tivemos os famosos "subbotnik", que eram trabalho a mais que os operários executavam coletivamente a fim de construir o socialismo. Consta que a produtividade nessas horas de trabalho a mais era bem superior à das horas normais. Tudo era feito em clima de euforia, quase de festa. No interior do Brasil, temos os mutirões. Um grupo de camponeses se reúne para executar uma tarefa para um vizinho, também em clima festivo. Só param após terminado o trabalho. E aí vão comemorar na casa do favorecido. Enfim, se o espírito dos "subbotnik" e dos mutirões fosse aplicado no ensino teríamos resultados muito melhores do que os que se tem obtido até agora. O problema é que o trabalho social, em grupo, desperta a consciência critica, o que mais uma vez não é visto com bons olhos pelos donos do poder.
Para dar um último exemplo da relutância dos regimes competitivos, capitalistas, para com o espírito crítico na redação, vou comentar a questão "leitura X redação". Hoje há uma grande quantidade de obras sobre a recepção de textos, sobre a leitura. Sugerem "estratégias", técnicas de leitura, ete. Ora, sabemos que o melhor intérprete de um texto é o próprio autor. Então, por que não enfatizar justamente a produção, numa visão crítica como a comentada aqui? Como disse Marx da produção material, "a produção é também imediatamente consumo" (Para a Critica..). Na produção linguística, quem produz bons textos é capaz de interpretar bem textos alheios. O bom escritor é também um bom interpretador de textos.
Dado que essa ênfase na "leitura" é mais um dos modismos impostos pelo imperialismo econômico americano, podemos descobrir com relativa facilidade qual é sua causa. É que o leitor é o lado receptivo, passivo, do processo comunicacional (produção-recepção  de textos). Enfatizar o produtor, o "escritor", seria dar prioridade ao lado ativo do processo. No caso de ênfase no produtor, teríamos não só bons produtores de textos, mas também agudos e críticos consumidores de textos alheios, "bons leitores". A ênfase no leitor, imposta pelo poderio imperialista, produz robozinhos que interpretam textos pela ótica que o poder dominante deseja. Além do mais, tais textos são produzidos pela máquina ideológica do capitalismo ocidental. Portanto, são textos lineares, de encômios ao bem (capitalismo) e ataques ao mal (comunismo).
Produzir textos escritos é difícil. Os orais nem tanto (que tal gravar o que se quer expressar e, depois, transcrevê-lo?). Pressupõe não só o domínio da língua         falada mas também o da escrita. Além disso existem todas aquelas restrições que envolvem seu aprendizado. Mas, é na escrita que estão registradas as leis, e praticamente todo o acervo cultural da comunidade. Foi ela que permitiu, pela primeira vez na história da humanidade conservar textos. Daí sua magia, o fascínio que ela desperta nas pessoas.
A         consequência do fascínio e do prestígio despertados pela escrita é ela ser um instrumento do poder. Desde priscas eras, quem detinha a escrita, ainda que através de prepostos, detinha também o poder. O arcabouço jurídico, os documentos, as indicações nas ruas, tudo se faz pela escrita. Passamos a viver na era de Gutenberg. A literariedade passou a ser símbolo de progresso, de avanço cultu­ral, em suma, de poder. O fato de a escrita estar associada a poder se manifesta de modo bastante nítido na burocracia, já mencionada acima. Como disse H. Gobard, a escrita "é uma guerra de morte, é a recusa a priori de encontro, é a negação da fala, é o triunfo do papel sobre o corpo. O reino da burocracia supõe a escrita porque o burocrata não fala e não compreende, é um surdo-mudo que lê e que escreve sempre sozinho, pois a escrita separa" (L'Aliénation Linguistique). A burocracia, a papelada escrita espanta as pessoas simples, impede que reivindiquem seus direitos.
Não é para menos que a literariedade é mais uma fonte de insegurança para o brasileiro, é mais um motivo para ele se sentir inferiorizado frente a outros povos e, internamente, as classes dominadas frente às dominantes. Frequentemente ouvimos dizer que, na Argentina, só a cidade de Buenos Aires tem mais livrarias do que o Brasil todo, portanto, somos menos letrados que os argentinos, logo, somos inferiores a eles. É mais uma manifestação do complexo tão bem estudado pelo recém-falecido Viana Moog (Bandeirantes e Pioneiros). Sem entrar nas razões históricas para essa crença, gostaria de terminar esse livrinho com um comentário sobre ela.
Pode até ser que Buenos Aires tenha, de fato, mais livrarias que o Brasil inteiro. Será que por isso somos mesmo inferiores aos argentinos? Longe de mim um ufanismo nacionalista barato, que não leva a nada. O que pretendo mostrar é que o nosso complexo de inferioridade não tem sentido. Ele revela um espírito de colonizado que precisa ser superado. Se o Brasil perde para a Argentina em literariedade, ganha numa série de outras áreas, algumas mais avançadas que ela.
Em primeiro lugar, conforme vejo diariamente na imprensa, a economia brasileira é 4 vezes maior que a argentina. Se alguém . Se alguém alegar que isso se deve às proporções continentais do Brasil, basta lembrar-lhe que só o estado de São Paulo tem mais indústrias que toda a Argentina. Em segundo lugar, o Brasil passou diretamente da cultura analfabeta, "letrada, para a era eletrônica (se isso é um bem ou um mal não vem ao caso no momento; para mim é um mal). E nesse setor o Brasil supera a Argentina de longe. O problema é que tudo isso gira era torno de uma pequena minoria de privilegiados.
Como pode ser inferior a outro um país que o supera naquilo que há de mais avançado no mundo da produção material? Portanto, não temos nenhum motivo para nos considerarmos inferiores aos argentinos por termos menos escritores, menos leitores e, consequentemente, menos livrarias. Como salientou Marshall McLuhan já na década de 60, o mundo da escrita, a "galáxia de Gutenberg" está sendo superado pelo mundo da eletrônica, da comunicação visual, televisiva, via satélite para o mundo inteiro; ele virou uma "aldeia global".
Hoje devemos reformular o próprio conceito de cultura. Na era da comunicação de massa via satélite de qualquer parte do mundo para qualquer outra, "cultura" tem outro significado. Não é mais apenas "cultura humanística" (grega, latina, europeia=literariedade). Os programas do Chacrinha, do Sílvio Santos, as telenovelas, os filmes policiais americanos feitos em série, os desenhos animados, isso é a cultura de nossa época. Como resquício da literariedade passada talvez pudéssemos acrescentar à cultura moderna as revistas em quadrinhos. Na contraparte social temos o desmoronamento da família tradicional. Com isso o relacionamento homem-mulher e pai-filho mudou. A criançada hoje já nasce brincando de "video-games", "flipperamas", etc. Portanto, não vive mais agarrada na barra da saia da mãe. Surgiram as creches, os "baby hotels", etc. Não se vê mais a família tradicional reunida em torno da mesa para o jantar. Cada um come seu "hamburguer" por aí e vai cuidar de sua vida.
No processo de colonização do Brasil tudo foi feito para manter o povo submisso, amordaçado. E povo submisso é tudo menos orgulhoso de si mesmo, de sua história, auto-confiante. Assim, num ciclo de não mais de 20 anos temos um golpe de estado militar, pois cada facção da burguesia dominante se considera a única salvadora da Pátria. O povo fica por fora da história, complexado, de cabeça baixa, alienado, pobre e analfabeto. E acaba reelegendo quem ele próprio execrou alguns anos antes.
Meu caro leitor! Você que teve a paciência de me acompanhar até aqui não se espante com o fato de você, como quase todo brasileiro achar que não consegue escrever bem. Você não consegue escrever bem, porque os donos do poder incutiram em você que você fala errado, que é um ser sem "cultura", rude, inferior. Se você não consegue falar bem, como é que poderá escrever bem? A escrita é uma transcrição da fala. Um discurso oral bem feito é um bom texto. Basta transcrevê-lo para se ter um bom texto escrito. Mas, essa não é a concepção que eles (uma ínfima minoria) têm de texto. Bom texto para eles é uma coisa sobrenatural, acessível só a algun iluminados, como os filólogos, os linguistas vulgares, etc.
Na realidade, você fala o português brasileiro bem, você fala bem sua língua. Garanto que ninguém do seu meio lhe diz que você fala "diferente", "anormal". Se você partisse daí e tentasse escrever aproximadamente pelos mesmos princípios pelos quais fala, aposto que chegaria a escrever bem. Mas "bem" de verdade, não apenas "gramaticalmente correto".
Você "fala tudo errado" porque a ditadura gramatical preparou todo um contexto para decretar que você fala errado. Você não escreve bem porque o ensino da escrita trilha o mesmo caminho, ou seja, o mais difícil, a fim de que você não consiga chegar lá. Enfim,       "você fala e escreve errado" porque o poder linguístico o decretou, não porque você de fato fale e escreva errado.
Last but not least. Sei que muita gente vai dizer que eu apenas procurei dizer como não se deve fazer, que só "demoli" o que se vem fazendo, como alguém já me disse pessoalmente, e como disse MC. Por isso, gostaria de fazer um adendo para adir que acaba de ser publicado um curso de redação por correspondência na Editora da Universidade de Brasília. Lá se poderá encontrar algumas indicações de como a redação pode ser feita de modo não desagradável. O nome do curso é Redação como Libertação. Se alguém se interessar pode escrever para aque1a editora.