terça-feira, 29 de outubro de 2019

O que é português brasileiro


















Hildo Honório do Couto













O QUE É PORTUGUÊS BRASILEIRO





























Editora Brasiliense

1986

1a edição




















Copyright (c) Hildo Honório do Couto



Capa e ilustrações:

     Ettore Bottini













Revisão:



Rosana N. Morales

Elizabeth Tasiro

























Editora Brasiliente S. A.

R. General Jardim, 160

01223 São Paulo - SP

Fone: (011) 231-1422






PARTINDO DE UM FATO ÓBVIO



“Português é difícil demais”, “O português é a língua mais difícil do mundo”, “Português é a matéria mais chata”, etc. Frases como estas são ouvidas a todo instante por professores de português. São ditas não só por estudantes, mas até mesmo .pelo leigo, ao verificar que está diante de um professor. Será verdade o que elas expressam ?



Com efeito, assuntos como “colocação pronominal”” (“me dá” vs. “dê-me”), “análise sintática”, “acentuação gráfica”, “uso do hífen” e “regência verbal” constituem verdadeiro tormento para os

estudantes e até mesmo para os experimentados. Além disso, há um consenso generalizado entre os estudantes e os profissionais de áreas técnicas de que não conseguem “escrever bem”, são incapazes de fazer uma “redação boa”, etc. A reintrodução desta no vestibular teve como consequência a eliminação de muitos candidatos a um cursona universidade.



Em síntese, nós, brasileiros, achamos que “a gente fala tudo errado mesmo!”, “se a gente quiser falar de acordo com a gramática fica muito difícill”, etc. Por aí já se vê que “a gramática” é uma coisa estranha, hostil, que se impõe de fora para dentro ou de cima para baixo. Não é a sistematização de como o brasileiro usa a língua portuguesa.



Tudo isso prova que há um fosso entre aquilo que querem impor de cima para baixo como “português correto” e o que o povo efetivamente usa, tanto oral quanto graficamente, tanto no caso das pessoas cultas quanto no das analfabetas da cidade e no dos roceiros (ou camponeses, se preferirem). O próprio professor de português se sente perdido, pois se vê entre fogos cruzados. De um lado tem na cabeça tudo aquilo que estudou na universidade e que se espera que transmita aos seus alunos. De outro, percebe que a realidade linguística concreta é bem diferente.



Eu já tive o desconforto de ouvir de uma aluna do ensino médio de São Paulo que gostava muito de escrever contos, poesias e até ensaios simples sobre assuntos que interessavam a ela. No entanto, acrescentou: “não gosto de português, é muito complicado”. Como professor de português me senti bastante frustrado e, na época, não sabia o que se passava. Só hoje percebo que “português” para ela não era a língua em que ela escrevia, por sinal até muito bem. Isso é mais uma prova do divórcio existente entre o que querem nos impingir

como “português correto” e o português brasileiro real, mesmo culto.



Será que aprender “português correto” é tão difícil quanto aprender uma língua estrangeira como, por exemplo, o espanhol? Com efeito, construções como “Se vós não no-lo trouxerdes” soam tão estranhas ao ouvido do menino da região urucuiana de Minas Gerais, por exemplo, como “Yo no lo quiero”.



Na realidade, o que está havendo é uma série de distorções devidas a uma mentalidade elitista, centralizadora, típica de uma sociedade burguesa capitalista, especialmente subdesenvolvida, em que uma pequena minoria a serviço das classes dominantes se arvora em juiz do “português correto”. Em países como Alemanha, Inglaterra e França o problema não parece ser tão grave como no Brasil. Em suma, os formuladores da política do ensino no Brasil não percebem o óbvio, eles vêem a realidade ideologicamente distorcida. O fato óbvio é o seguinte: a língua de uma comunidade é a língua usada por esta comunidade.



Sabemos que uma língua só existe se há uma comunidade que a use e que um agrupamento de pessoas só constituirá uma comunidade se tiver uma linguagem comum que possibilite a orientação do comportamento em grupo. Do contrário não é possível o intercâmbio entre os membros da comunidade, nem a nível infra-estrutural nem a nível superestrutural, pois os indivíduos não saberiam o que não prejudica (e por que) e o que prejudica (e por que) o outro. Haveria atritos constantes.



E assim chegamos à conclusão de que a linguagem de uma comunidade não é só a verbal (a língua), mas é composta de uma série de outros meios de comunicação como, por exemplo, a mímica, a etiqueta, as relações sociais em geral, as instituições, etc., etc. De qualquer maneira, a língua é o tipo de linguagem mais importante. Portanto, vou me restringir a ela.



Aplicado ao caso brasileiro, o fato óbvio enunciado acima continua óbvio: a língua do povo brasileiro é a língua usada pelo povo brasileiro. Apesar de óbvio, esse fato é sistematicamente esquecido (ou não é levado em conta) pelos planejadores e executores do ensino de português no Brasil. E isso se deve, como já disse, ao fato de encararem a realidade a partir de uma ótica ideologicamente distorcida.



Qualquer pessoa com razoável nível de informação sabe que a língua efetivamente usada pelos brasileiros em sua totalidade não é um bloco homogêneo e compacto. Pelo contrário, todos sabemos que ela apresenta diversas diferenciações (ou variações, como dizem os sociolinguistas), as quais resultam do contato da língua com o ambiente. Se este for complexo, a língua também o será. Assim, do contato dela com o ambiente físico (o espaço geográfico em que é falada), resultam as diferenciações regionais, como é o caso do português lusitano, do brasileiro, do angolano, do moçambicano, do guineense, etc. No interior de cada país há também diferenciações regionais. No Brasil, temos o falar mineiro, o carioca, o paulista, o gaúcho, etc.



Do contato da língua com o ambiente social, resultam dois tipos de diferenciações. Sabemos

que o português dos trovadores medievais, o da época de Camões e o atual são consideravelmente diferentes entre si, apesar de se tratar da mesma língua. Trata-se das diferenciações históricas ou temporais. A linguagem de uma mesma cidade apresenta, simultaneamente, pelo menos três tipos de diferenciações. Com efeito, numa cidade como São Paulo, por exemplo, temos que distinguir a linguagem do operário analfabeto, a do favelado, por um lado, e a linguagem oficial, ensinada nas escolas, a que se usa nos livros, na imprensa, por outro lado. No meio das duas está a linguagem que poderíamos chamar de média. São as diferenciações de classe (lembremo-nos de que nossa sociedade é uma sociedade de classes). A linguagem rural pode ser classificada com a dos favelados e dos analfabetos urbanos em geral. Para facilidade vou me referir a ela através das letras A (culta), B (média) e C (dos favelados e do caboclo). Com o que se verifica que as diferenciações espaciais se entrecruzam com as sociais ou de classe.



Cada uma dessas diferenciações apresenta especificidades que a individualizam frente às demais. Assim, todos sabemos que a linguagem de um operário é diferente da de um alguém que trabalhe em emprego burocrático e da de um texto filosófico, por exemplo. Apesar disso ninguém diria que o operário ou o caboclo não fala português.



Quando o estudante de letras inicia seu curso, em geral, entra em contato com a literatura portuguesa medieval, ou seja, a lírica trovadoresca das cantigas de amigo, de amor, de escárnio, de maldizer, etc. Camões também faz parte integrante de seu curso. Pois bem, não obstante serem todos esses tipos de linguagem diferentes, todos nós os

aceitamos como modalidades da língua portuguesa.



O gaúcho tem consciência nítida de que fala diferente do baiano, do mineiro, do cearense e vice-versa. Todos eles em conjunto, ou seja, os brasileiros em sua totalidade sabem que falam bem diferente dos portugueses e dos angolanos, etc., embora saibam que se trata de língua portuguesa em todos esses casos.



Assim como não há comunidade sem linguagem nem linguagem sem comunidade, cada segmento, aspecto ou subcomunidade de uma comunidade tem sua peculiaridade linguística, sua sub-linguagem. Não reconhecer isso é falsear a realidade, o que pode acarretar danos incalculáveis. Não se pode ignorar as diferenciações espaciais, temporais e sociais que toda língua de sociedades complexas apresenta.



Como se vê, mesmo para o leigo o português brasileiro em sua totalidade é uma realidade muito complexa; ele está muito longe de ser aquela língua compacta que os juízes lingúísticos querem nos impingir como sendo “o português correto”. Pelo contrário, como toda realidade complexa, o português brasileiro (para não dizer o português em geral) é uma totalidade composta de diversas subtotalidades, cada uma delas com suas especificidades e partes componentes.



Como ficamos, então, diante do fato óbvio enunciado acima? Se a língua dos brasileiros é a língua usada pelos brasileiros em sua totalidade, o que é, afinal de contas, o português brasileiro? Obviamente, a língua dos brasileiros em sua totalidade é o complexo que. abrange todas essas modalidades, como veremos adiante.



Na verdade, o problema todo surgiu do fato de as classes dominantes, sempre ativas a fim de manter o controle sobre toda a população, tentarem impor apenas uma daquelas modalidades como se fosse “o português brasileiro”. Por outras palavras, sempre tentaram distorcer ideologicamente a realidade (que em si mesma é complexa) impondo um aspecto, uma parte apenas do português brasileiro como se fosse o todo, a norma geral.



Num passado não muito distante, tentaram impor a linguagem do Rio de Janeiro como a norma geral do Brasil todo. Nas gramáticas e nos dicionários se tenta impor como norma geral de nossa época a linguagem dos clássicos, isto é, de épocas passadas. No fundo, no fundo, tudo isso desemboca na constante tentativa de se impor a linguagem das elites (ou, pelo menos, a linguagem que elas acham que deve ser imposta) ao povo brasileiro como um todo.



Diante de tudo o que foi dito acima, constatamos que ao determinar o que deve ser “o português correto”, a norma lingúística do Brasil, as classes dominantes (através de seus prepostos, os gramáticos e ogos) perpetraram três tipos de distorções da realidade, todas elas geradoras de conflitos insolúveis:



1 — distorção espacial

2 — distorção tempo

3 — distorção social



A distorção espacial consiste na imposição da linguagem de uma região (ou de um país) a todo

o país (ou a outro país).



A distorção temporal, por seu turno, consiste em querer impor a linguagem de épocas passadas como sendo a norma geral atual.



A distorção social, finalmente, se patenteia na imposição da linguagem de uma classe (aquela que a elite dominante considera a melhor) a todas as outras. A consequência é que todas estas falariam “errado”, sua linguagem seria um “desvio” da “boa linguagem”. Poderíamos falar até em distorção grupal, que seria a imposição da linguagem de um grupo (o dos gramáticos) a toda a comunidade.



Vê-se, portanto, que se trata sempre de querer impingir uma parte como se fosse o todo. Trata-se sempre da tentativa de impor a linguagem de uma parte da comu ngua portuguesa como

se fosse a língua dos brasileiros em sua totalidade.



O leitor deve ter notado que falei em “tentativa” de impor e não em “imposição”. De fato, os planejadores e executores da política educacional nunca tiveram êxito. Pelo contrário, o que vemos todo dia é um sentimento de frustração, por parte deles, e de revolta, por parte dos estudantes, diante do conflito entre o que querem impor como “a boa linguagem” e a linguagem real. Aqueles se sentem frustrados por verem que suas tentativas de impor, de “ensinar a boa linguagem” são infrutíferas. Estes se revoltam não corres- pondendo ao “ensino” daqueles, o que já transparece nas frases que citei logo no início deste capítulo. As consegiiências são as mais danosas possíveis, como veremos mais adiante. E tudo isso se deve ao fato de ignorarem o óbvio.



De um modo geral, podemos dizer que o problema todo se resume numa questão: o que é a norma geral do português brasileiro? Ou não há norma geral? Isso estaria em contradição com a idéia de “português brasileiro” como uma totalidade.



O que se quer é que se respeite o óbvio, que se respeite o fato de que a língua dos brasileiros

como um todo é a língua usada pelos brasileiros como um todo, Por mais complexa e cheia de

diferenciações, de subpartes que ela seja, sempre se poderá falar em português brasileiro como uma totalidade. Esse português brasileiro não se identifica com nenhuma das modalidades, subtotalidades ou partes expostas acima. Por conseguinte, examinarei detalhadamente cada uma das distorções oriundas dos deslocamentos de ótica praticados pela ideologia dominante (e a ideologia dominante sempre foi a das classes dominantes). Em seguida examinarei a questão da norma e, finalmente, mostrarei algumas consequências dessa deformação ideológica para o ensino de português no Brasil, sobretudo o da redação.



Como você poderá verificar, caro leitor, minha intenção ao escrever este livro não foi acumular

dados históricos, bibliografias, etc. Não passou pela minha cabeça fazer uma obra de erudição.

Isso pode ser encontrado na já vasta literatura sobre o assunto (veja as “Indicações para Leitura”'!).



Meu objetivo é bem mais modesto. O que pretendo fazer é sugerir uma ótica mais adequada

para encararmos o fenômeno linguagem, sobretudo a língua portuguesa do Brasil. Por ótica mais adequada entendo uma perspectiva sem distorções ideológicas (temporal, espacial e social). Uma boa metodologia é aquela que não manipula os fatos para fazer com que se encaixem em moldes pré-fabricados. Do ponto de vista científico, às vezes é mais importante estudar um domínio restrito da realidade com um bom aparato teórico do que estudar vastos domínios da mesma realidade com uma teoria e metodologia capengas ou distorcidas.



A miopia científica e também o comprometimento com os eventuais detentores do poder por parte dos planejadores e executores da política de ensino do idioma não lhes permitem perceber que uma mudança radical de atitude se faz necessária. Enquanto persistirem em não perceber isso o que veremos será sempre palavrório oco, balelas, em congressos e encontros nacionais e internacionais que discutem o sexo dos anjos, mas que nada mudam na realidade concreta, pelo simples fato de a ignorarem. Com efeito, distorcer uma realidade é o mesmo que não reconhecê-la.



É preciso descobrir a ferida que os donos do poder teimam em manter coberta. Sem sabermos

que ela existe não há a menor possibilidade de cura.




DISTORÇÃO TEMPORAL



Toda língua apresenta fases históricas bem definidas, cada uma delas adequada ao modo de produção de que faz parte. Ou seja, cada fase histórica da língua é ao mesmo tempo instrumento e produto do trabalho lingúístico, da intercomunicação humana. Instrumento porque é através dela que se processa a cooperação, a interação no trabalho e no lazer. Produto porque a língua usada por uma geração lhe foi legada pelas gerações que a precederam.



“Sabemos que a língua portuguesa apresenta três fases históricas: o português dos trovadores

medievais, o da época dos grandes descobrimentos (época de Camões) e o atual. Ora, não é necessário muito esforço intelectual para se perceber que a modalidade de português mais apropriada para a poesia trovadoresca de D. Dinis, de Martim Codax e outros é a que a sociedade galaico-portuguesa da época criou. Ou melhor, é a fase da língua portuguesa que resultou das relações sociais medievais e servia como instrumento de comunicação naquela sociedade. O mesmo tipo de argumento vale para as duas fases posteriores supra-mencionadas.



Em síntese, cada fase histórica do desenvolvimento da sociedade que resultou na brasileira atual tem a sua modalidade de língua portuguesa que melhor lhe convém. E isso é mais uma faceta do fato óbvio já mencionado. A sociedade portuguesa da época de Camões não é a mesma que a medieval, e ambas diferem da atual, bem como da brasileira tanto de épocas passadas como da atual. Como a sociedade, na qual é produto e instru- mento, a língua é dinâmica, evolui. Para cada produto novo surge nova expressão lingúística, a cada inovação no modo de produção e distribuição dos bens de que a sociedade necessita, corresponde uma inovação na língua. Por outro lado, a cada padrão comportamental e/ou sócio-econômico que se torna antiquado corresponde a arcaização e até o desaparecimento da expressão lingúística

que a ele se refere.



O português brasileiro atual é uma língua latina (juntamente com o espanhol, o francês, o italiano e o rumeno). Ao ser levado para a Península Ibérica, ou mais especificamente, para a Lusitânia (antigo nome de Portugal), ele sofreu uma série de adaptações ao meio local. Houve as invasões germânicas e árabes, além da influência de povos vizinhos. Consequentemente, o português medieval já diferia muito do latim, do qual tinha provindo, embora continuasse sendo uma língua de pastores, de um pequeno reino do fim da Europa.



Na época de Camões, ele se enriqueceu muito com as experiências adquiridas nas aventuras

marítimas e com o progresso sócio-econé mico em geral.



Esse português foi trazido para o Brasil. Aqui ele sofreu não só a influência do meio físico mas

também a dos povos indígenas, africanos e de outros que, como imigrantes, vieram fazer parte de nossa sociedade posteriormente. A língua portuguesa do Brasil atual é, consegiuentemente, o resultado de tudo isso. Além do mais, temos que levar em consideração a melhoria dos meios de comunicação que trouxe consigo uma maior rapidez e eficiência na divulgação de informações. Hoje, até o analfabeto fica sabendo imediatamente do que se passa do outro lado do mundo através do rádio e da televisão.



Diante de tudo isso, ficam desatualizados, defasados, antiguados mesmo, aqueles que pensam

que a língua não evolui. Ou então, admitem uma evolução tão lenta que não acompanha o ritmo do progresso sócio-econômico.



Na verdade, o reacionarismo sempre se volta, em todos os tempos e lugares, para o passado. Ele não aceita o fato de que tanto o modo de produção e distribuição da riqueza quanto as relações de produção (inclusive a língua) que lhes são inerentesevoluem com a experiência adquirida no decorrerdo tempo e devido às inevitáveis contradiçõesinternas de qualquer processo histórico. Como osdocumentos do passado que constituem o acervocultural de determinada sociedade estão semprnas mãos das elites dominantes, compreende-se

porque normalmente padrões comportamentais

passados são considerados pelos reacionários como

melhores do que os contemporâneos.



O sistema lingúístico que permite a intercomunicação entre nós no Brasil atual é realmente um

produto histórico, ele resultou da experiência acumulada pelas gerações que nos precederam.

Assim como evoluiu de geração para geração até hoje, ele continua evoluindo, não se estagnou. Sendo um produto da ação do homem, pode ser modificado pelo próprio homem. Ele não é imutável, eterno. Como qualquer fato de cultura (e até da natureza), a língua se transforma.



Infelizmente, os prepostos dos donos do poder, ou seja, os planejadores e executores da política de ensino da língua nacional (gramáticos, professores de português, autores de livros didáticos, organizadores de concursos públicos, etc.) não aceitam isso. Para eles a língua é uma realidade estática, feita para todo o sempre. E feita em passado bem remoto, por uma pequena minoria da população, ou seja, a elite sócio-econômica. A grande massa dos trabalhadores, dos desempregados, dos favelados, dos nordestinos famintos não teve, segundo esta elite, nenhum papel na elaboração histórica da língua.



Eu sei que o leitor deve estar achando estranho tudo isso, portanto, a partir deste momento vou

comprovar com fatos tudo que afirmei até agora.



A todo instante vemos manifestações da mentalidade reacionária, voltada para o passado. Em primeiro lugar, pode-se aduzir as abonações de regras nas gramáticas. Sempre que pretendem

ilustrar determinado uso que prescrevem, tiram os exemplos de autores portugueses. Assim, Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco e Camões são tidos como autoridades inapeláveis em termos de “correção” linguística. Alguns deles são do século passado. Outros são de séculos anteriores, como Camões, e alguns até mesmo de fins da Idade Média, como Fernão Lopes.



Os autores brasileiros também são citados. Mas de preferência os mais antigos. Machado de Assis, José de Alencar e outros são frequentadores constantes das gramáticas. Em suma, a preocupação constante é com citar autores “clássicos”, na suposição de que só eles “conhecem bem” a língua. Ou seja, os olhos dos gramáticos estão sempre voltados para o passado. Até mesmo gramáticas de autores com razoável informação linguística incorrem nesse erro, nessa distorção. É o caso da Gramática do Português Contemporâneo de Celso Cunha.



Intimamente associado a isso está a concepção implícita de que os portugueses sabem mais português do que nós, de que falam “melhor do que nós”. Isso está implícito e até explícito não só no que os portugueses pensam e dizem a respeito de nosso uso linguístico. Os próprios brasileiros têm uma espécie de sentimento de culpa, para não dizer complexo de inferioridade, pois acham que falam “tudo errado”. Se quiserem falar bem têm que falar como os portugueses falam. Mas, frise-se bem, o povo não tem culpa por pensar assim. Ele sempre foi oprimido pela minoria dominante. Como consegiência, esse sentimento é imposto por ela a fim de ter mais um recurso de domínio.



Grande parte dos autores que tratam da questão do português brasileiro de uma perspectiva teórica (Celso Cunha, Serafim da Silva Neto, por exemplo) falam em servilismo linguístico. Relatam em diversas oportunidades a preferência que as escolas brasileiras davam aos professores oriundos de Portugal para ensinar o vernáculo.



Aliás, não é necessário ir tão longe. Recentemente eu passei um artigo meu para um colega lusitano que queria usá-lo em suas aulas. Porém, antes de passá-lo aos seus alunos ele teve o cuidado de “corrigir” o “português”. Ou seja, para ele meu trabalho estava eivado de erros, precisava ser purificado, lusitanizado. O conteúdo era bom, tanto que ia usá-lo com seus alunos. Porém, a linguagem precisava de correções, pois “português correto” é aquele que aprendeu lá em Coimbra. Tudo que destoa do português conimbricense será erro, logo deve ser corrigido.



O mesmo sentimento existe no homem do povo, tanto de lá quanto de cá. Certa feita fui objeto de risos por parte de uma balconista de uma loja do Porto porque disse a uma pessoa que me acompanhava: “Pega ela!” (uma criança). Por outro lado, é comum ouvirmos, aqui no Brasil, que os portugueses sabem conjugar os verbos e colocar os pronomes oblíquos “melhor” do que nós.



No âmbito dos pronomes a coisa dá pano para mangas. Praticamente todas as gramáticas dizem que não se pode iniciar períodos com pronome oblíquo, desrespeitando por completo o fato de que qualquer pessoa diz “Me dá um cópo d'água”, “Me faça o favor”, etc. Expressões como “Vende-se casas”, que encontramos a todo momento em qualquer cidade brasileira, são tidas pelos gramáticos como erradas. Por quê? Em geral, como bons prescrevedores de regras eles não se dão ao trabalho de justificar a existência de uma “regra” como esta, que na realidade é uma interdição. No caso, porém, podemos, apesar de tudo, descobrir que “razões” estão por trás da proibição de se dizer “Vende-se casas”.



No latim, o pronome “'se” não tinha forma para o sujeito, ou seja, não tinha o nominativo. Ora, pensam os gramáticos, se em latim ele não podia ser sujeito, em português também não pode sê-lo! Se antigamente não podia, hoje também não pode, mesmo que todo mundo o use. Pois bem, já que o “'se” não é o sujeito (pelo fato de não o ter sido em latim), o que pode exercer esta função é “casas”. Como “casas” está no plural, não concor- daria com “vende-se”, que está no singular. Conclusão: o “certo” é “Vendem-se casas”, para que haja concordância entre sujeito e verbo.



Aparentemente, a argumentação está perfeita. Ocorre, porém, que o fato de que o “se” não

funcionava como sujeito em latim nada tem a ver com a possibilidade de que possa fazê-lo no português atual. A língua evolui. O “se” pode ser sujeito sintático de um verbo como qualquer outro pronome. A expressão “Vende-se casas” é perfeitamente admissível até mesmo no nível culto, pelo simples fato de que é o que o povo brasileiro usa. E se é o que o povo brasileiro usa é parte do português brasileiro, como vimos ao comentar o fato óbvio de que partimos.



Para justificar a expressão “Vendem-se casas” os gramáticos às vezes dizem que se trata de uma construção passiva sintética, cujo equivalente analítico seria “Casas são vendidas”. Mas isso é uma invencionice gramatiqueira sem o menor fundamento na estrutura da língua. É um casuísmo inventado por alguém de mentalidade ideologicamente distorcida e repetido em seguida por sequazes que não se dão ao trabalho de indagar sobre o por que das coisas.



Argumentos semelhantes são apresentados para justificar o “erro” de “Pega ela”. Uma vez que no português lusitano não se admite o pronome tônico (do caso reto) como objeto, no Brasil também não se pode admiti-lo. Mesmo que ele seja usado até por pessoas cultas e que um filólogo como Antenor Nascentes não o considerasse errado. Se antigamente era errado, hoje também tem que ser errado. Para os gramáticos, a língua atual tem que ser a de antigamente, pois só aquela era “a boa linguagem”, “a linguagem castiça”, “a linguagem dos bons escritores” (leia-se “antigos”).



Algumas gramáticas chegam ao absurdo de considerar “você” como um pronome de terceira

pessoa. Isso porque com ele o verbo se flexiona como na terceira pessoa como, por exemplo, em “você pega ela”. Ora, a mesma gramática que assim procede define os pronomes da seguinte maneira:



1a pessoa: aquele que fala;

2a pessoa: com quem se fala;

3a pessoa: de que(m) se fala.



Quem consideraria “você” como “pessoa de quem se fala”? Só pode dizer um tal disparate quem tem os olhos voltados para o passado e, por conseguinte, não vê o presente, ou então, quem não é capaz de perceber uma contradição lógica.



Tempos atrás havia verdadeiros caçadores de erros de linguagem. Um bom exemplo é a famosa polêmica entre o ranzinza Rui Barbosa e Ernesto Carneiro Ribeiro. Aliás, até hoje podemos encontrar espécimes deles nas fortalezas filológico-gramaticais. Uma área em que eles se manifestam com relativa frequência é a dos neologismos e a dos arcaísmos.



Como se pode deduzir do que foi dito acima, os retrógrados apreciam muito os arcaísmos. Para eles as expressões antiquadas são mais legítimas, mais fortes, melhores mesmo do que as que não o são. O conhecimento de expressões arcaicas é símbolo de cultura, de erudição, em suma, é índice de domínio da “boa linguagem”. Todo retrógrado usa muitos provérbios, palavras em desuso na linguagem corrente, construções e pronúncias ultrapassadas. Quem não procede assim é, para ele, um desconhecedor do vernáculo.



Um setor em que isto se manifesta em grande escala é o da regência verbal. Se abrirmos uma

gramática no capítulo que trata deste assunto e o observarmos criticamente, verificaremos que mais de 60% das regências ali apresentadas são antiquadas, ou seja, não são mais usadas na linguagem viva. Dentre elas, pode-se citar “visar a” (ter por objetivo), “aspirar a” (desejar), “Assistir a” (presenciar). Assim, o certo seria:



a) Estudo visando a subir na vida;

b) Aspiro a um futuro tranquilo;

c) Assisti a um bom filme ontem



em vez de:



a) Estudo visando subir na vida;

b) Aspiro um futuro tranquilo;

c) Assisti um bom filme ontem



como todo mundo diz. Para aumentar a lista de regências verbais desconhecidas do falante brasileiro, pode-se consultar o Dicionário de Verbos e Regimes de Francisco Fernandes.



No que se refere aos neologismos, a coisa muda de figura. Há uma relutância muito grande em

aceitá-los, tanto no caso dos de origem giríaca, como no dos de origem estrangeira. A gíria, como se sabe, reflete o lado dinâmico da língua, ela reflete sua adaptação constante às necessidades comunicacionais do momento. Tanto que podem desaparecer logo em seguida ao seu surgimento, se bem que algumas ficam e se incorporam ao inventário lexical da língua. Por serem dinâmicas, novas, “sem tradição”, elas são execradas pelos policiais da “boa linguagem”, não importando se preenchem uma lacuna lexical ou não, como é o caso de “dica”.

No caso dos neologismos de origem estrangeira, isto é, dos estrangeirismos, a fúria purista se manifesta talvez até com mais vigor. Segundo a fonte, os estrangeirismos são classificados como galicismos (do francês), anglicismos (do inglês), italianismos, etc. Houve época em que se encontrava verdadeiros exércitos de caçadores de galicismos. O gramático Napoleão Mendes de Almeida, por exemplo, apresenta longas listas de galicismos. Para ele o “se” de “vende-se casas” é um galicismo; tem função semelhante à do “on” francês. Já imaginaram o quanto isto é absurdo!? Modernamente, os anglicismos, ou melhor, americanismos, proliferam na língua portuguesa (aliás, em todas as outras línguas de sociedades complexas, como a

francesa, a italiana, a russa, a chinesa, etc.).

            Curiosamente, a questão principal, a causa de tanto estrangeirismo em nossa língua nunca foi atacada. Os puristas xenófobos (nome bonitinho para indicar aquele que não gosta do que é estrangeiro) se preocupam só com o efeito, ou seja, a existência dos estrangeirismos. Se lutassem para acabar com nossa dependência econômica em relação aos Estados Unidos (e à Europa), se lutassem para acabar com o subdesenvolvimento em que estamos atolados, se tentassem acabar com as injustiças cometidas na distribuição desigual da riqueza pelas classes antagônicas que constituem a população do Brasil, em síntese, se lutassem para solucionar os problemas brasileiros com soluções brasileiras, acabariam com a dependência científica, tecnológica, política e cultural em que estamos em relação aos países altamente industrializados, sobretudo os Estados Unidos. Com isso, desapareceria também a dependência linguística. Em vez de importadores, passaríamos a ser exportadores de tecnologia, de cultura e de expressões lingúísticas. Atacar os efeitos por decreto, policialescamente, nunca funcionou em época nenhuma e em lugar nenhum. Enquanto vivermos preocupados com adquirir a última novidade tecnológica inventada pelos estadunidenses, pelos europeus ou pelos japoneses, estaremos marginalizando a esmagadora

maioria dos brasileiros em benefício de uma minoria americanizada e americanizante, em todos

os setores da cultura, inclusive a língua.



Para falarmos em termos atuais, o modelo de desenvolvimento posto em prática pelo grupo que em 1964 derrubou o governo, democrática e legitimamente eleito, e vem entregando tudo que produzimos aos estrangeiros por causa de uma dívida contraída à revelia da vontade do povo só faz descaracterizar nosso país, inclusive a língua. O afluxo de estrangeirismos é efeito, não causa. A americanofilia (gosto pelo que é norte-americano) da camarilha que está entregando o país para o FMI é tão grande que um dentre eles disse certa vez: “Isso é negligível”. Ou seja, ele não sabia que “negligible” do inglês se traduz é por “desprezível”, não por “negligível”. Seus olhos estão tão voltados para lá que até as palavras portuguesas para ele são, em primeiro lugar, tradução das palavras inglesas.

É claro que os puristas não gostam de barbarismos como “negligível”, pois é uma inovação,

desnecessária no caso. No entanto, como o status quo é intocável, as leis e os governantes que eventualmente estejam no poder aí estão para ser cegamente obedecidos, o que os puristas reacionários conseguem é, no final das contas, apoiar barbaridades como a supra-mencionada, ainda que indiretamente, mediados pela intocabilidade do sistema. A contragosto acabam apoiando coisas que execram.



A lição que devemos tirar é que nada é eterno, imutável, no plano da cultura. Os meios de pro-

dução se transformam, evoluem, constantemente. E o desenvolvimento dos meios de produção e distribuição da riqueza acarretam mudanças comportamentais. A cada estágio de desenvolvimento correspondem novos padrões comportamentais. As comunicações via Embratel, por satélite e por outros meios tiveram consequências sociais significativas. Elas acarretam a transformação do mundo em uma “aldeia global”.



Devemos participar desse intercâmbio de informações a nível mundial, não passivamente, mas

ativamente, tentando impor novidades por nós criadas. Só assim poderemos participar da comunicação mundial em nível de igualdade, adotando conscientemente o que nos é necessário e recusando o supérfluo que queiram nos impingir. Só assim evitaremos a invasão incontrolada de americanismos, admitindo apenas os termos e expressões que preencham lacunas reais. Afinal, nenhum país do mundo é totalmente autônomo. Pelo contrário, há uma interação constante entre eles. A direção da influência é determinada pelo potencial sócio-econômico de cada um. O mais forte sempre impõe a cultura (material, espiritual e, portanto, também a língua) que considera melhor. Roma impunha uma cultura que não era a sua, ou

seja, a grega, que de qualquer maneira era a que as classes dominantes da época consideravam digna de ser imitada.



O inglês estadunidense é a língua que atualmente mais envia empréstimos para todas as outras línguas do mundo. No entanto, é uma das línguas que menos preconceitos tem contra empréstimos. Se um norte-americano sente necessidade de estrangeirismos usa-os sem o menor pejo, conscientemente, sem com isso descaracterizar sua língua porque o inglês só precisa de termos importados quando se fala de coisas exóticas. É o caso de "junta” (militar) e “guerrilha” que, para vergonha dos latinos, foram tirados de suas línguas. Trata-se

de assuntos alheios à cultura estadunidense. No entanto, quando se trata de ciência, tecnologia e novos padrões comportamentais, quem exporta novidades são eles.

Em síntese, pode-se dizer que a língua evolui, mas esta evolução tem muito a ver com a evolução sócio-econômica. Neste sentido ela não pode ser controlada nem policiada; ela é inexorável, independente do indivíduo, mesmo que ele seja um gramático, um professor de português ou um ditadorzinho de uma republiqueta sul-americana. A pressão policialesca por eles exercida só funciona (se funciona) em sua presença. Nas ruas e em casa o povo continua se comunicando como sempre se comunicou, isto é, através do português vivo, dinâmico, que resultou das vicissitudes históricas por que passou e está passando. Veja-se o exemplo do Paraguai, onde os tiranetes do passado proibiram o guarani nas escolas. Não adiantou nada, pois no pátio, nos cantos, na volta para casa os alunos sempre falavam em sua verdadeira língua, que era o guarani.



A evolução lingúística não se faz por decreto. Ela está sujeita a leis históricas inexoráveis. Se as forças de produção e as relações de produção apresentam um ritmo acelerado ou lento de desenvolvimento, o mesmo sucederá com o desenvolvimento lingúístico. Se elas forem escassas e precárias, a cultura será fraca e bastante vulnerável às importações, tanto tecnológicas quanto culturais e lingúísticas.



Esta é a situação do português atual. Ele não é mais aquele que os trovadores medievais empregaram em suas cantigas de amor, de amigo, de escárnio e de maldizer. Tampouco é o de Camões. Por fim, ele não é o mesmo que se fala em Portuga hoje.

É um português cheio de americanismos? Sim, porque somos altamente dependentes dos Estados Unidos economicamente. Até para aferir o valor de nossa moeda é o dólar que serve de padrão. (Por que não usar o padrão ouro?) É claro que isso acarreta dependência. Por isso nos enviam artefatos tecnológicos e modismos comportamentais e lingúísticos. Estes são consequências daqueles.



É um português cheio de francesismos e de italianismos? Sim, porque a literatura e a moda francesa sempre foram tidas como dignas de ser imitadas. Cheia de italianismos porque recebemos um grande contingente de imigrantes italianos, os quais passaram a fazer parte das forças e das relações de produção brasileiras. Logo, nada mais natural que contribuam também linguisticamente.



É um português acaboclado? Sim, porque a esmagadora maioria dos brasileiros vive à margem do processo produtivo. Somos um país não só eminentemente rural mas também favelizado em alto grau. As maravilhas tecnológicas importadas e às vezes até mesmo montadas aqui (flipperamas, vídeo-cassetes, minicomputadores, tanques e aviões de guerra) não enganam ninguém. Elas giram em torno de uma minoria insignificantíssima da população brasileira.

Diante de tudo isso, como é que podemos aceitar que os porta-vozes da minoria detentora

do poder (econômico, político e militar) venham impor à maioria a linguagem que consideram boa? Trata-se simplesmente de mais um recurso de que dispõem para manter a maioria subjugada. Se esta quiser falar “o bom português”, deve pedir aos serviçais dos donos do poder a chave, pois só eles a possuem. A porta que leva a este português está sempre voltada para trás, leva ao passado, ao como os antigos (leia-se, os escritores clássicos) falavam e escreviam.






DISTORÇÃO ESPACIAL





Antes de mais nada, devo repetir que a distorção espacial consiste em querer impor a linguagem de uma região a todo um país, a toda a nação ou a todo um domínio lingúístico. Como já vimos, isto representa uma violência, um desrespeito aos direitos dos habitantes das demais regiões desse domínio lingúístico.



A distorção espacial não se desvincula inteiramente da distorção temporal. Com efeito, já

mencionei o sentimento de que os portugueses “falam melhor do que os brasileiros”. Isto é

também uma distorção espacial, pois colocamos o centro detentor de português correto em outro país que não o nosso, embora este país represente, ao mesmo tempo, o nosso passado. Ora, para qualquer pessoa dotada de senso crítico isto é o cúmulo do absurdo, demonstra ausência completa de visão histórica.



A crença na superioridade linguística de Portugal em relação ao Brasil era muito forte no passado. Podemos mesmo afirmar que até certa época o português brasileiro era visto como um desvio, uma deformação do português puro de Portugal. Os motivos imediatos para esta opinião são as diferenças fonético-fonológicas, morfológicas, sintáticas, semânticas e lexicais entre as duas modalidades de português.



No plano morfológico as coisas saltam mais à vista. O sistema pronominal do português brasileiro, por exemplo, é bem diferente do lusitano e inclusive varia de região para região. Assim, na região Centro-Sul (São Paulo, Minas, etc.) ele é mais ou menos o seguinte:



Caso               Caso oblíquo,

reto                      objeto                   Possessivo

sujeito            Átono | Tônico

eu                    me         mim               meu

você                te           você              seu

ele                   (o)         ele                 dele, (seu)

nós                  nos        nós                nosso

vocês              (os)       vocês            de vocês

eles                 (os)       eles               deles



Toda essa diferença no sistema pronominal acarreta uma reorganização completa no sistema linguístico. Por exemplo, a substituição de “tu” por “você” acarretá mudança na conjugação verbal, que não mais teria a forma com — s (amas, vendes,

etc.).



No âmbito dos possessivos houve uma reestruturação considerável. Em Portugal, “seu” significa “dele” e “deles”. Como no Brasil passou a significar “de você”, as significações que ele tinha lá passaram a ser expressas por “dele” e “deles” mesmo cá. Expressões como “O presidente e seus (dele) ministros” e “Os ministros e seu (deles) presidente” não são apreciadas pelo povo brasileiro. É claro que em linguagem culta “seu” continua sendo usado no sentido de “dele” o que, aliás, provoca muitas ambigúidades. Por exemplo, quando vemos uma frase como “João e seu amigo” não sabemos se o amigo é de João ou de você.



No plano sintático poderia ainda exemplificar com os pronomes. No Brasil há uma clara tendên-

cia para se colocar os pronomes oblíquos antes do verbo. É o caso de “eu te amo”, “me dá um copo d'água”, etc. Em Portugal, por outro lado, a tendência é no sentido de colocar o pronome após o verbo, ou no meio dele, em alguns casos. Veja-se, por exemplo, “Ele deu-nos um presente”, “o ódio espreita-nos”, “dar-te-ei um presente”, etc., todos tirados de gramáticas editadas em Portugal.

A construção brasileira “me dá um copo d'água” deixa um professor português empertigadinho de cabelos arrepiados. Em primeiro lugar, em Portugal não se inicia frase com pronome oblíquo (me dá...). Em segundo lugar, já que o pronome de tratamento no Brasil é “você”, o verbo deveria ficar na forma “dê”. Conclusão, na visão dos portugueses e até de muitos brasileiros serviçais das classes dominantes, a frase em questão está duplamente errada, pois infringe duas regras do português lusitano. Se o brasileiro fala diferentemente, deve se corrigir, pois está “errado”. O certo é como eles falam, pois é lá que está a norma.



É interessante notar que os que condenam expressões como essas nunca justificaram por que

assim o fazem. Para os reacionários, o que não está na gramática e no dicionário oficiais (cópias dos similares lusitanos) não existe. Aliás, eu nunca entendi tão esdrúxulo critério de existência. Ele não resiste à menor crítica.



As raras vezes em que tentam alguma justificação para não se usar formas como essas, alegam que elas são muito populares. Se formos adotar formas populares a todo instante, cairíamos na desordem total (pavor dos reacionários) e não haveria mais a possibilidade de intercomunicação. Isso teria “cheiro de povo” em demasia, sendo que os donos do poder preferem “cheiro de cavalo”, como disse o Figueiredo.



Eu afirmo justamente o contrário. Se admitissem a linguagem do povo brasileiro como ela realmente é, haveria muito menos problemas de intercomunicação. É justamente a não admissão dessas formas, que estão aí quer queiramos quer não, que provoca a incomunicação, ou, pelo menos, atrapalha a comunicação, criando ambiguidades. Dizer que “o presidente e os ministros dele” é errado, é criar uma duplicidade de formas que perturba a comunicação. Fiquem sossegados todos aqueles que têm medo da incomunicação. A língua existe justamente para isso. No momento em que deixar de representar este papel, ela desaparecerá. É o que está ocorrendo com o português dos gramáticos reacionários.



Há também causas mediatas para a crença na superioridade lingúística lusitana. São as sócio-

econômicas, infra-estrutura que subjaz a toda a superestrutura sócio-cultural, na qual se insere a língua. As forças de produção e as relações de produção têm um papel determinante.



Desde a época do Brasil-Colônia, estivemos sempre com os olhos voltados para a Europa.

Se percorrermos a literatura brasileira verificaremos que o desejo de todo intelectual tem sido

ir se aperfeiçoar na Europa. Começando pelos bacharéis que iam para Coimbra, passando pelo

período francês, chega-se à atualidade em que o ideal é pós-graduar-se na Europa e nos Estados Unidos. Aliás, hoje estes substituíram aquela. Mas, o fato principal é que continuamos ávidos por saber o que é que os europeus, os japoneses e os estadunidenses, hoje mais estes que aqueles, estão fazendo, em todos os sentidos. Qualquer produto feito nos Estados Unidos, no Japão ou na Europa, é melhor que os brasileiros, é mais cobiçado.



Se no plano sócio-econômico este é o estado de coisas, que dizer do sócio-cultural, em geral, e do linguístico, em particular? É claro que a linguagem do europeu (dos portugueses, no caso) é melhor do que a nossa. O que surge aqui é cafonice, é caboclismo, é provincianismo.

A bem da verdade temos de reconhecer que está começando a haver uma reversão do processo no que se refere a Portugal, devido ao grande sucesso das telenovelas brasileiras junto ao público português. Eu mesmo vi com quanto interesse Os portugueses de uma pequena cidade do interior de Portugal (Beja) seguiam a novela Gabriela, em 1977. Todas as atividades rotineiras paravam enquanto ela estava no vídeo. Não se podia nem conversar, pois atrapalhava.



A consequência natural do fato de os portu- gueses verem constantemente programas brasi-

leiros é a intromissão de expressões, de gírias, torneios sintáticos e talvez até de pronúncias

típicas do Brasil no português lusitano. Creio que ainda não há nada escrito a respeito do assunto, mas o testemunho de diversas pessoas que passam temporadas em Portugal dá conta de que já ocorrem expressões brasileiras nas ruas.



No entanto, é bom frisar que isso só começou a ocorrer bem recentemente e só entre as pessoas comuns, o homem da rua e os jovens. A minoria presunçosa e reacionária que zela pelos interesses dos detentores do poder continua achando que o português lusitano é melhor do que o brasileiro. E aqui se verifica mais uma vez como o aspecto espacial e o temporal se imbricam com o social. Com efeito, a superioridade econômica portuguesa de há muito está superada. No entanto, como as classes dominantes nunca aceitam de bom grado as mudanças, continuam apegadas a relações sociais baseadas em modos de produção de épocas passadas. Este refluxo da influência lingúística também tem por base fatos sócio-econômicos. O Brasil tem hoje uma infraestrutura econômica muito superior à portuguesa, tanto quantitativa quanto qualitativamente. Mais especificamente, temos a Rede Globo de Televisão, que se tornou uma das maiores do mundo no gênero, exportando programas para o mundo inteiro. Assim, em futuro talvez não muito remoto, a influência do português brasileiro, que é ainda incipiente e apenas quantitativa, dê um salto qualitativo. Se isso ocorrer, é o português brasileiro que passará a ser modelo, os portu- gueses é que quererão imitar o modo de falar brasileiro e, o que é mais importante, os escritores portugueses é que procurarão imitar os brasileiros. Gostaria de deixar bem claro que aqui não se trata da questão da “língua brasileira” ou do “brasileiro”, como se disse no passado. Portugal e Brasil falam a mesma língua, só que cada um tem sua modalidade específica de português, em consonância com suas forças e relações de produção específicas. Mas, a distorção que consiste em deslocar o centro de português correto para Portugal não é a única distorção espacial.



Uma outra distorção espacial muito arraigada é a crença na superioridade da linguagem da cidade em relação à do campo ou, como nós dizemos, da roça. Se entendemos por superioridade - maior complexidade, intensidade maior de comunicação, cosmopolitismo, é claro que a linguagem urbana é superior à rural. No entanto, este conceito de superioridade leva necessariamente a outro, o de correção e, ao fim e ao cabo, é este que prevalece na prática. Ora, sabemos que a língua existe como veículo do pensamento e da comunicação. Exploremos este aspecto.



Vejamos a frase do português culto “Todas as meninas pequenas chegaram atrasadas”, e comparemo-la com a equivalente na maioria dos falares caboclos, ou seja, “As menina pequena “chegô tudo atrasado”. Para o gramático lusitanizante, elitista, a frase cabocla está inteiramente deformada, perdeu uma série de desinências que a equivalente culta tem. Em suma, O português caboclo seria uma transformação para pior, uma corruptela do português culto.



Nada está mais longe da verdade. O português caboclo é realmente o resultado de uma evolução histórica. No entanto, ele evoluiu não do português culto, mas daquele que foi levado para as zonas rurais em grande parte contemporaneamente à chegada do português culto às cidades. Assim sendo, o português caboclo tem uma história que se imbrica com a do culto, mas está longe de ser originário dele. E se não é originário do português culto, como é que podemos considerá-lo uma deformação dele?



Na sociedade rural, o português caboclo funciona tão bem quanto o culto nos meios cultos, como o francês na sociedade francesa e assim por diante. A frase há pouco citada é, do ponto de vista da informação a ser transmitida, perfeita. Analisemo-la mais detidamente.



A frase culta informa seis vezes (em todas as palavras) que se trata de mais de um (plural), como se vê no sublinhado duplo. A informação de que se trata de ser do sexo feminino, está representada cinco vezes, como se vê no sublinhado simples. Apesar disso, quem ousaria dizer que a frase cabocla não informa tudo que a culta informa, em seus respectivos contextos?



Para dirimir qualquer dúvida, comparemos estas frases com a equivalente na língua mais cobiçada do mundo, o inglês. Nesta língua, teríamos aproximadamente “All the young little girls arrived late”. Aqui só se informa que se trata de ser do sexo feminino no próprio substantivo “girl”. A informacão de que se trata de mais de um só se indica no s que se combina com ele, “girls”. Conclusão, o português caboclo se aproximaria mais da língua mais “chic” do mundo do

que do português culto. Como é que podemos considerá-lo uma deformação, um aleijão? O argumento não se sustenta de forma nenhuma. E isto mostra mais uma vez que O conceito de

“bom”, “correto”, “superior” e outros semelhantes não são absolutos, mas relativos a contextos sócio-econômicos e sócio-culturais.



Diante de tudo isso, podemos perguntar qual é a função da escola que tem como clientela os favelados e o caboclo. Para a ideologia dominante, que é sempre a das classes dominantes, a função da escola, sobretudo da escola rural, é urbanizar, é melhorar, é “endireitar” a linguagem deste segmento da população do país. O termo “endireitar”” foi usado por uma aluna do primeiro semestre de letras da UnB, portanto, de uma futura professora de português. Por trás desta postura ideológica está uma série de conseguências.



Uma delas é que o substantivo “urbanidade” quer dizer “civilidade” (este também ligado a cidade), “cortesia”, “afabilidade”, “delicadeza”, etc. Segundo esta concepção distorcida, entre os caboclos, os operários e os favelados não há gentileza, cortesia, delicadeza. Aliás, esta deformação ideológica vem de longa data. Já na Idade Média o habitante das vilas era “grosseiro”, “rude”, “perigoso”, em suma, “vilão”.



Se a futura professora de português, que por sinal é bastante aberta, liberal, acha que o papel do professor de português é endireitar a linguagem das crianças da roça e da periferia dos centros urbanos, é porque essa linguagem está torta, pois só se endireita o que está torto. Mas, a culpa não é da aluna em questão. Ela é mais uma vítima de um ensino deformado e deformante, pois não parte da realidade como ela é, mas do como os serviçais dos donos do poder pensam que deveria ser. Há distorção maior do que essa?



Discutimos até agora dois tipos de distorção espacial, isto é, a que considera o português lusitano melhor que o brasileiro e a que considera a linguagem urbana mais correta do que a rural. Passemos agora para um outro tipo de distorção espacial que, aliás, ocorre em quase todos os países do mundo.



Devido ao fato de o Rio de Janeiro ter sido a sede da corte e, posteriormente, da capital federal

houve até recentemente uma crença na superioridade do português carioca sobre o das demais regiões do Brasil. O Rio de Janeiro era o lugar onde se falaria o melhor português, o português carioca seria a norma para todo o Brasil.



Hoje em dia pode parecer estranha esta afirmação. Entretanto, há até bem pouco tempo havia

praticamente um consenso em torno do assunto. Tanto que isto ficou formalmente estabelecido

em dois congressos. O primeiro foi sobre a língua cantada, cujos anais saíram em São Paulo em 1938 sob o título de Anais do Primeiro Congresso da Língua Nacional Cantada. O segundo, realizado em Salvador, foi publicado com o nome de Anais do Primeiro Congresso Brasileiro de L íngua Falada no Teatro, no Rio de Janeiro, em 1958. Ora, presumivelmente comparecem a congressos como estes os maiores especialistas no assunto.



Na verdade, até mesmo alguns lingúistas de épocas mais recentes compartilham tal opinião. E para não serem acusados de carioquismo, alegam que até o paulistaníssimo Mário de Andrade concordava com essa idéia. No entanto, ao que eu saiba, este autor era um escritor. Se era um modernista, iconoclasta, se anunciou uma “gramatiquinha” do português brasileiro, nada disso faz dele um linguista acabado. E o próprio bom senso nos diz que em matéria de língua a palavra pertence, por definição, aos linguistas.



Estou me referindo não ao uso da língua, que é outra questão. Aí os escritores, os grandes estilistas estão com a palavra. Refiro-me antes à descrição, à análise, ao estabelecimento de uma política linguística. Enfim, refiro-me à questão do estabelecimento da norma linguística, questão que examinarei detalhadamente em seção própria. Na esteira dessas “autoridades”, muitos professores de português, muitos gramáticos, muitos planejadores de ensino têm incorrido no erro de considerar o português carioca como a norma, o modelo para o resto do país. Esta opinião é insustentável por vários motivos.



Primeiro, porque é uma distorção intolerável. Faz tábua rasa do fato óbvio enunciado desde o início: a língua de um povo é a língua usada por esse povo. Ora, qualquer pessoa que pense percebe que o povo brasileiro não é só o povo carioca. Temos também mineiros, paulistas, gaúchos, cearenses, baianos e assim por diante. Se aceitarmos o português carioca como sendo o do Brasil em geral estamos simplesmente dizendo que as outras regiões do país não contribuíram em nada para a criação e evolução do português brasileiro. O que uma concepção como essa consegue é criar um clima de antagonismo entre o Rio de Janeiro e as outras regiões do país, pois estaria havendo um imperialismo lingúísticocarioca.



Segundo, porque há outras regiões que reivindicam o privilégio de ser o centro de “português correto”. Já houve quem dissesse que Belo Horizonte seria esse lugar. Os habitantes das outras cidades, dos outros estados concordariam com isso? Claro que não.



Uma opinião que se ouve fregientemente no seio do povo é a de que o lugar do Brasil onde melhor se fala. o português” é em São Luís, Maranhão. Alguns até acrescentam uma justificativa. Seria porque lá se fala mais de acordo com o português lusitano. Observem que aí a distorção temporal aparece subrepticiamente. Em outros termos, em São Luís se fala “bom português”” porque a linguagem de lá é mais parecida com a de Portugal, a qual foi levada para lá no passado. E tudo que é passado é melhor, segundo a concepção dos donos do poder e de seus prepostos.

Terceiro, porque se formos falar cientificamente, o português carioca é um dos mais marcados regionalmente, pelo menos na pronúncia. A fricativização do t e do d antes de ; (como em “txia”), bem como a palatização do s final de sílaba (como em “noix”') é uma das características mais marcantes do português carioca. Ser marcado regionalmente é o mesmo que dizer “tender para o provincianismo”. Esta característica regional do português carioca é tão marcante que um nome como “Castilho” às vezes soa como “'Caxilho”. Uma região de colonização relativamente recente, como o norte do Paraná, nem é levada em consideração quando se fala em “bom português”. Um professor universitário de São Paulo me disse enfaticamente que regiões como essas podem e devem ser ignoradas quando se fala em norma linguística porque “não têm tradição”. Observem " mais uma vez a atenção voltada para o passado! Transposto para outro nível, o jurídico e o político por exemplo, isso equivale a dizer que os jovens não devem ser levados em consideração na elaboração das leis e na escolha dos dirigentes do país. Eles não têm experiência, não conhecem

os hábitos, os costumes passados. Em suma, não podem participar porque “não têm experiência”. É claro que aqui se entende por experiência vivência com o passado, ter como válidos só os valores antigos.



É justamente o contrário que é verdadeiro. O jovem tem muito mais vínculos com o presente, com a práxis humana concreta, com a vida real. Ele tem muito mais sensibilidade para as reais necessidades do homem concreto do que os mais velhos. Tanto assim que em geral é mais liberal que os velhos, normalmente conservadores e às vezes até mesmo claramente reacionários, o que não impede que haja jovens reacionários e velhos liberais. Pois bem, por que excluir do processo político justamente aqueles que têm mais sensibilidade para perceber as reais necessidades do povo?



Do mesmo modo podemos perguntar: por que não se inclui as regiões de colonização mais recente ao se estabelecer a norma linguística geral? Pelo fato de serem centros de convergência de pessoas de diversas regiões, talvez espelhem melhor que qualquer outra mais tradicional as reais tendências da língua. É nelas que se verificam de maneira palpável o embate de diversas tendências em conflito. Quem sabe é justamente aí que se encontrará a síntese dos contrários (as diversas variedades regionais da língua) que compõem a totalidade do português brasileiro?



Considerada como um todo, a língua dos brasileiros, assim como qualquer outra língua do mundo, envolve sempre duas tendências conflitantes. A primeira é centrípeta, unificadora. Resulta da necessidade de comunicação a nível nacional e até internacional, inciuindo Portugal, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, etc. A segunda é centrífuga, diversificadora. Resulta da necessidade de expressão das especificidades regionais, grupais e até individuais.



Na solução para este conflito entre a necessidade de comunicação geral e a de expressão individual se revela a ideologia dominante (das classes dominantes). Se se tratar de uma fase histórica em que predominam as forças conservadoras, se optará pela comunicação geral, pela unificação. Mas será uma unificação forçada de cima para baixo, que tentará impor a linguagem do passado (que tem “tradição”), da região que “melhor fala” ou pura e simplesmente a linguagem que a elite dominante considera a melhor, como veremos no próximo capítulo.



Se, por outro lado, as forças dominantes forem inovadoras, liberais, será enfatizada a expressão individual. Com isso não se quer dizer que a comunicação geral não importa. Pelo contrário, ela sairá fortalecida porque estará estribada em bases reais, ou seja, na expressão individual e regional. Afinal de contas, o geral só existe em função do particular e o particular só existe em função do geral. Ningueín melhor do que o jovem para perceber isso.



As forças reacionárias sempre se justificam acenando com o perigo da desordem geral, do caos. Ou seja, se liberarmos as forças populares, todos os valores tradicionais cairão por terra, não haverá mais uma língua comum a todos os brasileiros, cada região terá seu dialeto e cada indivíduo sua linguagem especial. Não haverá mais comunicação.



Já que essas forças reacionárias não se dão ao trabalho de produzir (algo novo), mas se limitam a reproduzir (o velho), lembremos-lhes que a comuna antiga e a maioria das tribos indígenas atuais não têm instrumentos coercitivos à atividade individual. No entanto, os antropólogos sabem que elas são muito mais coesas do que as sociedades que se encontram sob o jugo de ideologias reacionárias. A comunicação é muito mais eficaz lá do que cá, uma vez que se estabelece diretamente, sem intermediários, sem “extensões” como telefones, rádios, televisão, etc.



A norma geral não se estabelece, como se vê, por decreto. Assim, a necessidade de comunicação geral é satisfeita por outros meios, à revelia dos donos do poder que tentam distorcer a realidade apresentando uma das facetas da língua como se fosse o todo. Às vezes se toma a linguagem de uma região como se fosse a de toda a nação, às vezes se toma a de épocas passadas como se fosse a atual (como vimos no capítulo anterior) e às vezes se toma a de uma classe social como se fosse a de todas as classes que compõem uma nacionalidade.

Mas, ainda não é o momento de discutir a questão da norma. Antes temos que falar sobre

a distorção social.








DISTORÇÃO SOCIAL



Como ficou dito em capítulos anteriores, entende-se por “distorção social” o deslocamento de ótica que consiste em tomar a linguagem de uma classe como se fosse a de toda a nação. Isto só pode ocorrer em sociedades divididas em classes antagônicas. Eu sei que os donos do poder não aceitam afirmações como esta. Para eles não há antagonismo de classes no Brasil. Mas, então eu pergunto: por que a classe média e as elites vivem eternamente com medo de roubos, de assaltos, de assassinatos? Por que existem os trombadinhas, os tomadores-de-conta de carros nos estacionamentos (mesmo privados) que tanto nos incomodam? Trata-se de uma pequena manifestação, de um forçar-a-barra por parte da classe marginalizada

e oprimida.



Por outro lado temos a elite dominante que oprime os trabalhadores com ameaças constantes

de demissão, de prisão, entre outras. Lá no meio está a classe média, sustentáculo imediato do poder dominante. Tanto tudo isso é verdade que sempre que alguém denuncia algum tipo de injustiça social é tido como comunista, deve ser punido. Então, há classes antagônicas ou não?



Já que a sociedade brasileira está dividida em classes, o português brasileiro apresenta, necessariamente, o reflexo dessa divisão, pelo simples fato de a língua ser um produto e um instrumento da sociedade, além de ser seu ingrediente mais importante. É por isso que vimos que até mesmo o português de uma cidade (como Belo Horizonte, Rio, S. Paulo, etc.) apresenta diferenças de nível de formalidade. Aí temos uma /inguagem culta (literária, erudita), empregada por uma pequena minoria, uma /inguagem média e uma linguagem popular.



Estatisticamente, a composição das classes correspondentes é mais ou menos como se vê na

seguinte pirâmide:

A = elite dominante



classe média



o

H



C = trabalhadores,

roceiros, favelados,



marginalizados, etc.

----------------------------

Apesar disso, é a linguagem da elite dominante que é considerada a norma oficial. E quando analisamos o modo pelo qual isso se verifica, constatamos que a distorção social é praticamente um resumo da espacial e da temporal. Com efeito, aquilo que a elite dominante (via gramáticos, professores, escola, etc.) considera a norma geral é tirado do acervo acumulado pelas elites dominantes do passado. Ou a grande massa de nordestinos famintos, de favelados, de desempregados, de analfabetos e de marginalizados contribuiu de alguma forma para aquilo que está nas bibliotecas? As classes dominantes sempre se concentraram nos grandes centros urbanos. Daí o fato de o modus communicandi destes centros ser a base para o estabelecimento da norma geral.



O famigerado Projeto NURC (Norma Urbana Culta) é altamente elitista. Só inclui a linguagem

dos grandes centros, e mesmo assim. só dos tradicionais. A linguagem de uma cidade como Londrina ou Goiânia não tem vez, pois se trata de cidades “sem tradição”. Até mesmo Belo Horizonte só foi incluída recentemente. Ainda bem que tal projeto nunca vai ser concluído, a julgar pela lentidão com que está sendo desenvolvido. Voltarei a ele no próximo capítulo.



A distorção social, ou seja, o considerar a linguagem das elites como sendo a de toda a sociedade, tem uma série de consegiências. Dentre elas eu gostaria de discutir as “reformas” ortográficas por que o português brasileiro tem passado. Mais especificamente, vou falar sobre a última reforma da acentuação gráfica de 1971.



Como as classes dominantes, ou melhor, os eventuais detentores do poder normalmente não têm o menor compromisso com a comunidade, sua preocupação maior é com a manutenção do próprio poder. Assim sendo, não se consulta as bases, o povo, a fim de saber de seus anseios. Tudo se faz em acordos de cúpula, em panelinhas. E foi assim que se escolheu a comissão de “especialistas” encarregada de mudar a acentuação gráfica no português brasileiro. Qual foi o resultado?



Eu costumo dizer que tiraram o acento (ou o trema) de onde não precisava, de onde não podia e de onde não existia. Assim, antigamente, o acento agudo virava grave e o circunflexo permanecia nas palavras que sofriam o acréscimo do sufixo -mente ou de outro iniciado por -z-(zinho, zada, etc.). Exemplos: só+zinho = sózinho, só+mente = sômente, amigável+mente = amigàvelmente, avôtzinho = avôzinho, etc. Pois bem, neste caso o acento caiu. Mas, desnecessariamente. Aliás, ele mem devia virar grave. Tais palavras deveriam ser escritas “sózinho, sómente, amigávelmente, avôzinho”, etc., como ocorre no espanhol e como aconselha o bom senso e a ciência. No case do acento diferenciado, ele não podia ter sido suprimido. É o caso, por exemplo, de “fôrma” por oposição a “forma”, de “êle” por oposição a “ele” (nome da letra), de “pôde” (passado), por oposição a “pode” (presente). Em oposições como estas o acento tinha base científica. Ele distinguia as vogais abertas (é, ó) das fechadas (ê, ô) que são fonemas distintos. O acento era usado para marcar uma oposição fonológica, portanto, justificada pela ciência da linguagem, a lingúística.

Finalmente, “suprimiu-se” o trema de palavras como “saiidade”, “vaidade”, etc, Você sabia que elas tinham trema? Eu também não. Pois bem, apesar de elas sempre terem sido escritas sem

trema, a referida reforma o tirou delas.



Para deixar bem clara a inconsistência da reforma, deixaram uma exceção no caso do acento diferencial, ou seja, “pôde”. No caso de “pára” (v. parar), “pólo”, pélo”, “pélas” e “péla” (v. pelar) permaneceu o acento gráfico, apesar de o motivo ser outro, ou seja, Oporem-se às átonas “para” (prep.), “polo” (contr. de por+lo), pelo (contr. de per+lo), pelas (contr. de per+las), pela (contr. de per + la), respectivamente, Já viram absurdo maior que este? É simplesmente uma afronta à inteligência do povo brasileiro.



Fatos como esses só são possíveis em republiquem acento nas palavras X, y e 21”. E nós colocamos. Depois, um outro chefete, que desalojou o primeiro, nos ordena: “Tirem o acento das palavras x, y e Z!”. E nós obedecemos, se quisermos escrever “certo”. Em suma, não se trata de matéria de ciência, mas de lei, ou melhor, de decreto-lei (ou simplesmente de decreto). O mesmo vale para a ortografia em geral (x/ch, s/z, g/j, etc.). Somos verdadeiros joguetes nas mãos dos tiranetes (vale a rima).



No fundo, no fundo, tudo se resume na questão econômica. Ou melhor ainda, no poder econômico. Há outros dois tipos de poder, o político e o militar. Mas estes existem em função daquele. Com efeito, o que os manda-chuvas fazem ao mandar que ponhamos ou tiremos o acento das palavras x, y e Z é exercer seu poder político. Quando isto não é suficiente, aí está o militar (ou policial-militar) para garantir seu cumprimento. E em que casos tal decreto tem que ser obedecido? Quando fazemos concurso para emprego público, por exemplo. Se não o obedecermos, não somos aprovados e não temos nossa vida econômica garantida. Nos países de governos autoritários, centralizados, a maior fonte de empregos são as instituições governamentais. Toda a estrutura está montada com a única fina-

lidade de perpetuar os privilégios.



O exemplo da estudante de letras comentado anteriormente vale a pena ser lembrado de novo. Apesar de ela ser uma garota moderna e bastante liberal, disse que a linguagem. dos analfabetos é torta, ou seja, defeituosa, feia, portanto, precisa ser endireitada. Quando ela disse isso não o estava fazendo por conta própria. Era a sociedade de classes, ou melhor ainda, era a classe dominante que estava falando através dela. Ela era um mero porta-voz da ideologia dominante. O que a escola tem feito é justamente incutir em nós um complexo de culpa por falarmos “tudo errado”.



As regrinhas gramaticais são tão alheias à nossa realidade e tão sutis e cheias de exceções que qualquer pessoa dotada de algum senso crítico se insurge contra elas. Dizem que Monteiro Lobato não observava várias delas. Pode ser que não o façamos conscientemente. Inconscientemente, no entanto, todos nós desrespeitamos tais “regras”. E por quê? Simplesmente porque não respeitam o óbvio, ou seja, que a língua do povo brasileiro é a língua usada pelo povo brasileiro.



Ora, a grande maioria do povo brasileiro está marginalizada do processo sócio-econômico. E a

língua, como é natural, reflete este estado de coisas. Não adianta a escola, os professores de português, os testes de seleção para empregos, para o vestibular, etc. A maioria do povo não tem acesso a tais privilégios. Ele simplesmente continua falando como sempre falou. Sua fala evolui, mas sempre no ritmo da evolução sócio-econômica. Não adianta policiá-la. Já vimos que em matéria lingúística nada se faz por decreto, malgrado os chefetes latino-americanos.



Sabemos que do ponto de vista do nível social podemos detectar pelo menos três estratos na

língua, como já salientei no início do presente capítulo. Assim, equivalente à classe “alta”, temos o nível de linguagem culta (literária, erudita, alta, A); paralelamente à classe “média”, temos a linguagem média (B); paralelamente à classe “baixa”, temos a linguagem “popular”, “cabocla” (C). Não sei se infeliz ou felizmente, mas esta é a realidade brasileira concreta.



A linguagem A é aquela tida como ideal pela comunidade (não pelos gramáticos) como um todo. É altamente formal e praticamente não varia de região para região. Sendo o ideal, pode até nem ser usada por este ou aquele indivíduo. No entanto, ele terá sempre a consciência de que se quiser falar ou escrever bem tem que ser “daquela forma”. Trata-se, portanto, de um tipo de linguagem que ocorre mais na escrita. O nível C é o extremo oposto. É aquela linguagem que a comunidade como um todo procura evitar por ser denotadora de condição social “inferior”. Embora eu não concorde com a ideologia que está por trás disso tudo, tenho que usar essas expressões para me fazer entender. O nível B, finalmente, é intermediário. É o tipo de linguagem que não compromete nem por excesso de formalidade (como ocorre com A) nem por excesso de “vulgaridade” (como ocorre com C). É uma linguagem neutra, como qualquer meio-termo.



Para ilustrar, vou mostrar como seria formulada uma mesma mensagem em cada um desses três níveis. Distinguindo entre + e - para, respectivamente, “máximo de formalidade” e “mínimo de formalidade” (pois cada nível pode ser formal ou informal), teríamos o seguinte quadro:





A + Amanhã nós trabalharemos

    - Amanhã nós vamos trabalhar

B + Amanhã nóis vamos trabalhar

    - Amanhã nóis vamo trabalhá

C + Amanhã nóis vamo trabaiá

    - Amanhã nóis vai trabaiá



Vê-se que o típico de A formal é o futuro sintético (trabalharemos) e o de C “informal” é a presença de “-iá'”" em vez de “lha”. Em B até a ausência do “r”' de infinitivo é admissível, embora ele possa ocorrer também.



Tendo em mente o fato óbvio de que a língua do povo brasileiro é a língua usada pelo povo brasileiro, quem ousaria afirmar que a expressão C- não pertence ao português brasileiro? Se não é português, então de que língua seria, uma vez que ela ocorre mais frequentemente do que se poderia pensar? Aí alguém poderia retrucar, como várias  pessoas já me responderam: “Isso ocorre em português, mas é errado!”. Então devolvo a bola e pergunto: “O que é erro? É aquilo que foge da norma?” Admitindo isso, posso continuar perguntando: “quem estabeleceu essa norma? Quem o fez recebeu procuração dos usuários da língua para isso?” A esta altura dos acontecimentos o contestador não tem mais argumentos. Nesse caso, em geral acena com argumentos de autoridade: “Se você não obedecer tais normas você não será admitido no serviço público, etc., etc.”.



O fato é que não existe linguagem sem uma comunidade que a use nem comunidade que não

tenha uma linguagem que lhe seja específica. Ambas se pressupõem mutuamente. E se a sociedade é complexa, apresenta desníveis sociais, a linguagem fatalmente refletirá essa realidade. Não adianta querermos que o caboclo do interior do Piauí, por exemplo, deixe de dizer “Amanhã nóis vai trabaiá” e passe a dizer “Amanhã traba- lharemos”. A causa da distância entre sua linguagem e a de Machado de Assis é econômica. Se alguém quiser que ele passe a falar de modo mais próximo de A, digamos B+, temos que atacar, em primeiro lugar, a causa. A mudança de linguagem viria a reboque da mudança sócio-econômica.



Uma experiência interessante, no âmbito linguístico, seria pegar uma comunidade de subnutridos do sertão nordestino e ensinar a todos os seus membros o “português correto” (A+), como desejam aqueles que discordam das ideias aqui apresentadas. Admitindo que todo mundo passasse a falar de acordo com a gramática, a vida deles mudaria em alguma coisa? Um caboclo barrigudo pela verminose, doente, desdentado, envelhecido precocemente, nanico, queimado pelo sol, sujo e maltrapilho veria alguma melhora em sua vida, sem que nada mais acontecesse no nível econômico? Aqui fica o desafio.



Há cinco séculos se vem tentando diminuir a distância entre C e A. Falando de outro modo, há cinco séculos se vem tentando extirpar aquilo que chamei de linguagem C em favor da A. Mas

as tentativas têm sido sempre vãs, pois se tem atacado só o efeito, que é a própria existência

da linguagem C. Ora, se determinado modo de proceder se mostra falho o bom senso aconselha tentar-se outro. Infelizmente os detentores do poder não vêem, ou melhor, não querem ver isso. Afinal de contas, um povo de barriga cheia e bem informado é muito exigente.

Na verdade interessa aos detentores do poder autoeleitos manter a grande massa do povo analfabeta e desinformada. Assim ela assimila com muito mais facilidade as propostas demagógicas, populistas e o ufanismo meramente retórico. O analfabeto desinformado não vai cobrar dos governantes as promessas, as declarações feitas de público de que tudo mudaria quando fossem eleitos. Além disso, ele não vai conferir se tudo anda efetivamente bem quando um governante ou seu preposto o afirma, apesar de ele (o analfabeto) estar na pior. Ele não percebe que declarações de que o país está “em paz”, trabalha “em ordem” são ocas. Ele chega a acreditar que isso é verdade. Política é coisa para os outros, os “dotô”, não para ele. Seu negócio é o seu trabalho, sua roça, se a tiver.



Para as classes dominantes (e para os gramáticos, seus servidores) a língua é como as leis. Se existe uma norma é para ser obedecida. Não se pode pô-la em questão, discutir sua validade, sua legitimidade. Pelo menos os “outros” têm que obedecê-la. Quanto a nós (os donos do poder), bem... somos nós que fizemos as leis, portanto cabe a nós interpretá-las e aplicá-las. Quem discordar está indo “contra a lei”, logo, deve ser punido. Quem não escrever de acordo com as normas prescritas pelos servidores dos donos do poder (os gramáticos) estará infringindo as regras da “boa linguagem”, portanto não é aprovado no exame de seleção que pretende fazer.



Verifica-se, por conseguinte, que as elites dominantes não tentam ajudar as classes menos favorecidas a se elevarem sócio-economicamente e, ao mesmo tempo, as espezinha, caçoa delas, tanto no que se refere à linguagem quanto no que tange ao comportamento em geral. Assim, o modo de falar do caboclo, do operário urbano, do favelado, do marginalizado- e do analfabeto em geral é “feio”, “torto”, “rude”, conseguentemente deve ser “embelezado”, “endireitado”. Entretanto, querem fazer isso sem tocar no econômico, que para as forças reacionárias dominantes é outro assunto que nada tem a ver com a'linguagem. Elas são incapazes de perceber que a cultura de um povo é uma totalidade na qual tudo está relacionado direta ou indiretamente. Pelo contrário, elas isolam um aspecto (a língua, por exemplo) e o consideram como se fosse uma ilha. Daí as três distorções, entre outras.



Um argumento frequentemente apresentado pelos detentores do poder em favor das “normas”,

das“regras” pré-estabelecidas é a “ordem”. Segundo esta concepção, sem obediência a normas vem o caos, a baderna. Concordo inteiramente com eles no que se refere à necessidade de normas para orientar 'o comportamento em sociedade. Só discordo do modo de estabelecê-las.



No fundo, o conceito de ordem a que se referem os mandatários tem a ver com estrutura, com

sistema. Existem dois modos de estruturação ou de relacionamento de elementos de um todo.

Um deles é a relação de coordenação, o outro a relação de subordinação. Estes dois tipos de

estruturação ou relacionamento existem em qualquer fenômeno social. No caso da língua, temos a relação de coordenação entre as palavras que formam a frase. Nesta, os elementos são solidários, complementam-se mutuamente para formar o todo da frase. Fora da frase, as palavras estão classificadas hierarquicamente em áreas de significação. É o caso, por exemplo, de “homem”, “mulher”, “rapaz” e “moça” que estão subordinados a “humano”. Na própria gramática tradicional fala-se em “período composto por coordenação” e “período composto por subordinação”. No primeiro caso, as orações estão em condição de igualdade, como mostra, por exemplo, o período “O menino pula e a menina grita”. No segundo caso, uma das orações se subordina à outra, depende dela sintaticamente, como ocorre com “A menina grita se o menino pular”. A segunda oração (se o menino pular) só tem existência sintática se vier subordinada à primeira.



No nível político temos exatamente os mesmos tipos de estruturação ou relacionamento. Num regime democrático de verdade a estrutura de poder resulta da coordenação da vontade dos diversos segmentos da sociedade. A ordem se estabelece de baixo para cima, como somatória

ou média da vontade da maioria. Num regime autoritário, por outro lado, a “ordem” é imposta de cima para baixo. A estrutura de poder resulta da subordinação da vontade da maioria mais fraca à de uma minoria que detém o poder econômico, político e militar nas mãos.



É claro que a ordem que resulta da coordenação harmoniosa da vontade da maioria tem mais força, é mais eficaz. No entanto, os donos do poder só vêem a “ordem” por subordinação. Assim sendo, para eles, à massa ignorante só cabe obedecer sem contestação as “normas do bom falar” que, naturalmente, foram estabelecidas por seus prepostos,

os gramáticos.



Concretamente o que acontece é que as classes dominantes cometem dois erros. O primeiro deles consiste em manter a maioria da população marginalizada do processo sócio-econômico-político. E a finalidade disso é, como vimos, facilitar seu controle sobre ela, sua perpetuação no poder, é ter um público garantido para o ufanismo retórico e barato e, finalmente, para a demagogia anti-comunista. O segundo deles 'consiste em estigmatizar os comportamentos, a linguagem destas classes marginalizadas. Assim, quem diz “Amanhã nóis vai trabaiá” está irremediavelmente marcado como gente “sem berço”, “grossa”, “roceira”, “chucra”, etc.



“Boa linguagem” é aquela que as classes dominantes e seus lacaios gramaticais consideram boa. No entanto, afirmam, todo mundo tem liberdade de subir na vida, de “melhorar” sua linguagem. Na verdade, trata-se de uma liberdade teórica, já que em geral ninguém das classes marginalizadas tem chances reais de e exercer. Por exemplo, que possibilidades tem uma família que dorme debaixo da ponte na cidade grande de “melhorar sua linguagem para subir na vida?”. Só quem tivesse capacidade para ouvir apenas um tipo de argumento (o das classes dominantes) acreditaria numa balela dessas.



Devo acrescentar, no entanto, que ao proceder assim as classes dominantes não estão agindo com um propósito deliberado de conspirar contra as classes marginalizadas. Não há, pelo menos quero crer que não, má-fé, um propósito deliberado de agir com perversidade. Devido à cegueira, à unilateralidade provocada pela distorção ideológica, elas podem até estar piamente convictas de que estão agindo certo, “em nome da liberdade democrática”, “da linguagem correta”, etc. A cegueira e a unilateralidade são provocadas, em primeiro lugar, pelo desejo de assegurar os privilégios, ainda que inconscientemente. Em segundo lugar, elas se devem ao eterno pavor ao comunismo, à “baderna” (palavra de ordem da direita), à “desordem”. E a ordem que interessa é a ordem por subordinação.



Como não poderia deixar de ser, tudo isso se reflete na linguagem. Havendo uma “linguagem correta”, “boa”, praticamente inacessível aos favelados, aos roceiros e aos analfabetos em geral, fica muito mais fácil para os filhos dos burguesões conseguir as poucas vagas na universidade, passar nos concursos, ganhar as bolsas para estudar no exterior. Só eles podem se dar ao luxo de fazer o ensino médio numa “boa escola” (se possível a americana), “estudar inglês”, enfim, ter mais experiência cosmopolita. Além do mais, são mais bem alimentados, têm uma compleicão física “melhor”, são mais “bonitos”. Enfim, são super-homens frente aos analfabetos nanicos e subnutridos. A conseguência natural de tudo isso é que os filhos dos donos do poder “sabem mais português”, escrevem “melhor”, são mais “inteligentes”, pois a melhor referência para se julgar a “inteligência” de alguém é a linguagem.




A QUESTÃO DA NORMA



Sabe-se que todo país precisa de uma norma linguística oficial, geral, sem a qual seria impensável o próprio Estado. Sabe-se também que a língua é um dos componentes da cultura de um povo, e o mais importante dentre eles. Assim como a cultura em geral é produzida por esse povo, assim também o é a língua. Em suma, a língua de um povo é a língua usada por esse povo, como salienta nosso fato óbvio.



A coisa se complica quando se verifica que a língua usada pelo povo brasileiro não é um bloco

compacto. A complicação aumenta ainda mais quando incluímos Portugal, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e outras regiões do mundo colonizadas por Portugal. Diante dessa heterogeneidade dialetal, faz-se necessária uma norma oficial geral a fim de assegurar a intercomunicação entre as diversas regiões e os diversos segmentos da comunidade de língua portuguesa.



Aqui vamos nos ater ao português brasileiro, deixando de lado a espinhosa questão das diferenças lingúísticas entre os diversos países de língua portuguesa. No entanto, mesmo o português brasileiro é bastante heterogêneo. Temos no seu interior diferenciações espaciais, temporais e de classe. Assim sendo, o que é a norma lingúrística brasileira?



Há no mínimo dois conceitos de norma linguística. Segundo um deles, norma é o “como se diz”.

De acordo com o outro, norma é o “como se deveria dizer”. Como não poderia deixar de ser, a

norma que o sistema de ensino (gramáticos, professores, escola, etc.) tenta impor é a segunda, pelo simples fato de o povo (mesmo o culto) não falar nem escrever de acordo com o que ela prescreve. As gramáticas escolares são frequentemente chamadas de “gramáticas normativas”. É claro que para nós só interessa o primeiro conceito de norma, ou seja, aquela que se baseia no “como se diz”. Em outros termos, o conceito de norma que seguirei aqui consiste na explicitação das regras subjacentes aos usos lingúísticos dos brasileiros.



Se levarmos em conta as diversas facetas da língua portuguesa do Brasil, verificaremos que, na realidade, existem tantas normas quantas forem as modalidades lingúísticas usadas pelos brasileiros. Assim, teríamos as normas temporais (medieval, seiscentista e atual), as normas espaciais (mineira, gaúcha, cearense, carioca, paulista, etc.) e asnormas sociais (culta ou A, média ou B e popular ou C). Todas elas equivalem ao como se diz em determinadas circunstâncias.

Como o que interessa é a norma geral, O problema continua não solucionado. Com efeito, se

considerarmos apenas uma delas como sendo a norma geral, estaremos cometendo um erro, uma distorção inaceitável, pois estaremos tomando uma parte como se fosse o todo. Sabe-se que o todo só existe nas partes e as partes só existem no todo.



Já mencionei os dois princípios que podem nortear o estabelecimento da ordem, ou seja, da

estrutura, do sistema, da norma. Trata-se do princípio da coordenação e da subordinação.

 A imposição de qualquer uma das normas parciais como se fosse a norma geral poderia ser uma possibilidade. Efetivamente, as classes dominantes sempre têm tentado impor a norma lusitana (das gramáticas) como se fosse a norma (ordem) geral brasileira. Portanto, têm tentado instaurar uma norma por subordinação. Como o descalabro no ensino do vernáculo tem mostrado (ver o último capítulo), essa norma não “pega”.



O princípio articulador de uma norma geral efetiva só pode se basear na coordenação da

tendência geral. Esta leva em conta o fato óbvio de que partimos e, no plano político (que está intimamente ligado ao lingúístico), o preceito legal segundo o qual todo poder emana do povo e em seu nome é exercido. Assim sendo, ao se estabelecer a norma lingúística geral do Brasil deve-se levar em conta a linguagem de todo o país, e não privilegiar determinada região, época ou classe social.



O chamado projeto NURC (Norma Urbana Culta), de inspiração hispano-americana (surgiu

originariamente no México), encerra uma forte dose de arbitrariedade, uma vez que seleciona a

linguagem de apenas algumas das grandes e tradicionais cidades brasileiras. É um projeto que

costumo chamar de natimorto. Dada a lentidão com que está sendo implementado, quando for terminado já estará defasado, morto. É uma norma estabelecida eminentemente por subordinação de algumas regiões desprestigiadas às privilegiadas, logicamente escolhidas pelos executores do projeto obedecendo à risca todas as distorções comentadas  em capítulos anteriores.



No estágio atual de desenvolvimento das relações e das forças de produção brasileiras, o caminho mais viável para se estabelecer a norma geral tendo como diretriz o princípio da coordenação seria levar em conta a linguagem usada pelas pessoas cultas do país inteiro. Com isso teríamos uma norma brasileira geral que se aproximaria muito da das gramáticas (lusitanizante). No entanto, não seria idêntica.a ela por vários motivos.



Em primeiro lugar, a norma erudita (lusitanizante) é a que está nas gramáticas e nos dicionários

oficiais. Como já tivemos oportunidade de ver, no que se refere à linguagem do povo brasileiro este tipo de linguagem resulta de um deslocamento de ótica intolerável. Quando muito poderia ser considerada como a norma do português em geral (de todos os países). A língua concreta do povo brasileiro, mesmo de seu segmento mais culto, difere de modo considerável do que tentam nos impingir os gramáticos. Isso pode ser percebido na morfologia, na síntese, no léxico e em alguns casos até na fonética.



Em segundo lugar, sendo a norma erudita altamente elitista, estabelecida por subordinação, não leva em conta as outras normas. Ora, a norma brasileira geral aqui proposta já é em certo grau elitista, faz concessões à divisão (injusta) da socie- dade em classes. Ou seja, ela toma como ponto de partida a linguagem das pessoas cultas. O que a difere da erudita, que é Iusitanizante, é justamente o fato de levar em conta a linguagem das pessoas cultas do Brasil, e não necessariamente a das gramáticas.



Alguém poderia argumentar que tomar a linguagem só das pessoas cultas como base para se

estabelecer a norma brasileira geral também é uma violência, uma imposição de uma parte como se fosse o todo. Seria também uma distorção inadmissível. O argumento não deixa de ter suas razões. No entanto, comc o próprio Estado já é uma violência contra a grande massa do povo, não temos outra saída enquanto ele existir. Além do mais, temos que levar em consideração que as coisas têm que ser feitas como o permitem as circunstâncias históricas. A deixar que os gramáticos continuem nos impingindo uma norma que nada tem a ver com a realidade linguística concreta do Brasil é melhor estabelecer uma norma mais democrática, com base na linguagem culta dos brasileiros. Afinal, esta surgiu dentro do próprio Brasil. Vários fatores a legitimam.



Em primeiro lugar, apesar de ainda elitista até certo ponto, ela se baseia na linguagem de brasileiros. Ela surgiu, de qualquer maneira, no contexto das vicissitudes históricas por que passou a sociedade brasileira. Por conseguinte, sofre influência, de uma forma ou de outra, das outras normas do português brasileiro. Relembremos a questão da colocação pronominal, em que a linguagem mesmo das pessoas cultas difere consideravelmente da de Portugal.



Em segundo lugar, temos que considerar que o Brasil está inserido num contexto mais amplo, ele tem intercâmbio de diversos tipos com o mundo inteiro. A linguagem culta é mais adequada para esse intercâmbio. Com efeito, ela é mais cosmopolita, aquela em que a comunicação é mais intensa em níveis mais abstratos, portanto, mais internacional. É a única em que é possível a veiculação de informações mais sofisticadas, isto é, no contexto da moderna tecnologia.



Em terceiro lugar, pelo fato de a veiculação de informações ser mais intensa justamente nela, é

nela também que está guardado todo o repositório cultural do povo brasileiro. Todo o acervo histórico está arquivado na linguagem culta. Portanto, para que não haja uma transição brusca, é ela que deve ser tomada como norma geral brasileira.



Em quarto lugar, ela tem mais experiência histórica do que as outras pelo fato de permitir

um maior distanciamento em relação ao contexto em que é usada. As outras normas são muito ligadas diretamente a um contexto determinado e só são eficazes nesse contexto. Se quisermos manter uma certa unidade do país, ela é a única que o permite. Ela representa uma força unificadora, padronizadora, enquanto que as outras normas são sempre mais particularizadoras, individualizadoras.



Em quinto lugar, devo repetir que no estágio atual de desenvolvimento das relações de produção e das forças produtivas no Brasil, que são altamente discriminadoras e elitistas, não há outra possibilidade. Se quisermos uma norma geral para o Brasil a única alternativa que nos resta, no momento, é estabelecê-la com base na linguagem das pessoas cultas do Brasil. É a única viável, pois o que as classes dominantes na verdade querem é a norma erudita das gramáticas (lusitanizante). A linguagem das pessoas cultas é a que mais se aproxima da das gramáticas. A diferença entre elas está em que ela abre espaço para a contribuição brasileira para o acervo da língua portuguesa como um todo. Reconhece que em contextos diferentes a linguagem sempre é diferente.



Para se ter uma idéia de quanto a linguagem brasileira pode divergir da das gramáticas (lusitanizante), gostaria de apresentar brevemente o resultado de uma pesquisa que um grupo de professores da Universidade de Brasília fez, sob minha orientação, sobre a colocação pronominal. Investigando a linguagem de professores universitários em aula, de juízes em julgamento e de parlamentares em discursos públicos, chegamos aos seguintes resultados (40 horas gravadas em que ocorreram 1.520 pronomes oblíquos):



próclise (pronome antes do verbo):              69,8%

ênclise (pronome após o verbo):                  30,0%

mesóclise (pronome.no meio do verbo):        0,2%



Contrariamente ao que tentam impor as gramáticas (norma culta lusitana) a preferência no Brasil, mesmo na linguagem culta, é pela próclise. São fatos como esse que têm que ser respeitados ao se estabelecer a norma geral brasileira.



Uma norma que levasse em conta a realidade lingúística brasileira teria a adesão natural de todos, pois se estabeleceria por coordenação, ou seja, cooperativamente, pelo menos até certo

 ponto. Questões incômodas como a do “certo” e do “errado” desapareceriam como que por encanto. Ela seria a linguagem que todo brasileiro desejaria dominar a fim de “vencer na vida”. O ensino do vernáculo para os caboclos e os favelados deixaria de ser “endireitar a linguagem deles”.



Sumariando, temos então uma norma lingúística geral da língua portuguesa, que chamei de erudita. Dentro de cada país há normas especiais. Assim, no Brasil temos as normas espaciais gaúcha, mineira, carioca, etc.; as normas temporais colonial, imperial, atual, etc.; as normas “sociais” (de nível, de classe) culta, média e popular (A, Be C, respectivamente). A norma popular seria a do caboclo, do favelado urbano e dos analfabetos em geral. A média seria aquela que a classe média usa. Por mais cultos que sejamos, sempre usamos uma linguagem desse tipo em casa, com os amigos e em diversas outras circunstâncias. A norma culta, que ainda está por ser definida, seria aquela que as pessoas cultas usam em circunstâncias formais. É o caso já citado de professores em aula, de juízes no tribunal, de deputados e senadores no parlamento e, finalmente, a linguagem em que todos eles escrevem, embora na escrita assumam amiúde uma postura extremamente formal e empreguem uma linguagem lusitanizante (erudita, gramatiqueira), devido ao que lhes disse a escola.



Estou convencido de que o importante é o reconhecimento dessas diversas normas e de que

cada uma delas é válida no ambiente em que surgiu. Assim, a norma mais adequada à sociedade cabocla é a norma popular cabocla. A norma mais adequada em ambientes formais é a culta, por mais generalizante. Exigir a norma de um contexto em outro é provocar uma distorção inaceitável. Afinal de contas, uma linguagem só existe em função de uma comunidade e esta só sobrevive se tiver uma linguagem que lhe seja específica.



Se quisermos que todos os segmentos da sociedade brasileira dominem a linguagem culta, temos que atacar as causas. Temos que acabar com as injustiças na distribuição da renda, temos que acabar com a miséria do povo. A língua é o reflexo da sociedade em que é usada. Se esta for rica, economicamente forte, a língua será necessaria- mente complexa e sofisticada. Se for pobre, de desnutridos e subnutridos, a língua será simples, sem grandes pretensões à universalidade, embora isso não signifique que ela seja deformada, feia, torta e que, portanto, deva ser endireitada. Não, ela será simplesmente um meio de comunicação de uma sociedade em determinado estágio de seu desenvolvimento. Não será nem feia nem bela,

mas simplesmente a sua linguagem. O ser humano é antes de tudo corpo físico, natureza. Como tal precisa, em primeiro lugar, se alimentar. Só depois do estômago cheio é que ele pode pensar em cultura. Uma comunidade de famintos nordestinos do sertão falando um portu- guês escorreito, de acordo com o que preceituam as gramáticas seria altamente curioso. Ou melhor dizendo, seria ridículo, simplesmente por ir contra tudo que se sabe sobre as relações entre comunidade e linguagem.



Para as classes dominantes, que estão numa boa, falar nesses termos é subversão. Realmente, se falar a verdade for subversão, se não aceitar tapar o sol com a peneira for subversão, então prefiro ser subversivo. Desejo ver subvertida a “ordem” em que milhões de brasileiros estão à margem do processo produtivo. Desejo que todos tenham casa, comida e emprego. Desejo que ninguém viva com medo dos serviços “de segurança” (da elite), dos órgãos de informação e repressão. Em suma, que todos possam viver com dignidade e não numa situação neurotizante. Assim, todos teriam acesso à linguagem culta, todos leriam jornais, se informariam e a norma culta viria de lambuja. A ordem se estabeleceria por coordenação geral de esforços. Sei que isto é um sonho, mas como disse John

Lennon, prefiro continuar sonhando.



Intimamente ligada a tudo isso está a questão da “correção” (do certo e do errado). Já fiz referência a ela em várias oportunidades. Aqui eu gostaria de desenvolvê-la com mais pormenor.



Antes de mais nada o que é “ser certo” e “ser errado”? É aquilo que desvia de um padrão estabelecido? Mas aí surge de novo a questão da norma. Quem estabelece a norma? No caso da língua, os gramáticos ou os usuários?



Já mostrei em parágrafos anteriores e, praticamente, em todo o livro, que quem estabelece a norma, o padrão são os usuários. Assim ela se estabeleceria democraticamente, como coordenação dos interesses comuns. Se aceitarmos a idéia de que em matéria de língua a palavra está com o gramático, estaremos admitindo o estabelecimento de uma norma de cima para baixo, pela subordinação do interesse geral aos caprichos do gramático, que é um instrumento do sistema dominante (da elite).



Verifica-se, portanto, que num caso como o nosso é injusto, é ilegítimo, é uma distorção mesmo considerar determinada construção como errada mesmo que todo mundo a empregue. Se os gramáticos dizem que ela está errada, pior para eles.



Um professor universitário de língua portuguesa chegou ao cúmulo de me dizer que a construção “Ela quer me ver” é errada. O certo, disse ele, é “Ela quer ver-me”. Pois bem, na pesquisa sobre a colocação pronominal a que já me referi, de 232 casos, 145 (62%) foram de próclise ao segundo verbo (Ela quer me ver), contra 65 (28%) de próclise ao primeiro verbo (Ela me quer ver) e apenas 22 (10%) de ênclise ao segundo verbo (Ela quer ver-me). Isso apesar de, como vimos, tratar-se da linguagem de pessoas cultas. Então, que legitimidade existe no julgamento do referido professor? É só o argumento de autoridade.



Para salientar o quanto são relativos os conceitos de norma (certo) e desvio (errado), basta lembrarmos alguns fatos sobejamente conhecidos dos antropólogos. Sabe-se que a fidelidade conjugal é obrigatória em nossa cultura, sendo o adultério punível. Pois bem, em outras culturas, o anfitrião oferece a esposa para dormir com o hóspede. Se este recusar estará ofendendo-o. Portanto, em contextos como esses, a norma (certo) é aquilo que para nós seria um desvio. Os exemplos abundam em diversas partes do mundo.



Na língua, que é também um fenômeno sócio-cultural, as coisas não são diferentes. Já que a comunidade brasileira (para deixar de lado a lusitana, a angolana, etc.) apresenta diversas facetas, a língua falada por ela reflete necessaria- mente essa diversidade. Assim, não se pode dizer que o caboclo fala errado, em sua comunidade. Ele fala diferente porque seu contexto sócio-econômico é diferente. Sua linguagem resultou de uma evolução natural de determinado segmento da comunidade sociolinguística brasileira.



É verdade que não podemos aceitar uma frase como “Amanhã nóis vai trabaiá” num ofício nem num discurso parlamentar (se bem que o deputado Mário Juruna fale quase assim; no entanto deve-se observar que da perspectiva da língua ele é exatamente como qualquer estrangeiro). A recíproca também é verdadeira. O caboclo não pode aceitar que um gramático reacionário e pedante chegue a ele em sua própria comunidade e lhe diga: “Você está falando tudo errado! Mude sua linguagem! O certo é 'Amanhã nós trabalharemos!”. Se alguém se atrever a fazer isso cairá no ridículo. Em conso- nância com o óbvio, a linguagem mais adequada à comunidade do caboclo é a linguagem criada e usada por ele. Pretender o contrário é querer nadar contra a corrente.



A língua de uma comunidade é um código que serve como veículo para o envio e a recepção de informações entre seus membros. Este código contém em si subcódigos (semântico, sintático, morfológico e fonológico). Partindo daí ouso afirmar que o caboclo não erra. Ele fala sempre de acordo com o código de sua comunidade. Quem erra são os eruditos, contrariamente ao que sempre martelaram em nossos ouvidos. Vejamos dois exemplos.



Na tradução de um livro de um filósofo checo, usa-se o substantivo abstrato “concreticidade”. Ora, o sufixo “icidade” só pode combinar com adjetivos terminados em “ico”, como “elétrico/eletricidade”. Portanto, ao usar o termo “concreticidade” os tradutores (presumivelmente cultos) cometeram um erro, desrespeitaram o subcódigo morfológico português.



Mas, o exemplo que mais me chamou a atenção foi o praticado por um humanista, figurão entre os helenistas e latinistas. No título de um livro publicado por ele (pela editora de uma das maiores universidades brasileiras) aparece o termo “comple- mentariedade”. Pois bem, a terminação “iedade” só se acrescenta a adjetivos terminados em “ário” (contrário/contrariedade). Logo, a forma prevista pelo subcódigo morfológico português é “complementaridade””, como ocorre com “singular/singularidade”. O que o referido figurão fez foi um erro, uma infração contra a morfologia do português. Eu sei que alguém contra-argumentaria dizendo que o dicionário (o Aurélio) registra “complementário”. Mas isso não me interessa. O que me interessa é o que é usado, mesmo que pelas pessoas cultas.



Assim, chegamos a uma situação paradoxal. O caboclo analfabeto não infringe seu código de comunicação. Quem erra são as pessoas cultas, para escândalo dos gramáticos e até do leitor, com quase toda certeza. Por quê? Simplesmente porque seus modelos são as línguas estrangeiras, O latim, o grego, a linguagem do passado, enfim, seus modelos estão sempre fora da realidade lingúística brasileira. Hoje é muito comum vermos termos do inglês “traduzidos” literalmente para o português. Para essas pessoas o português existe para traduzir o inglês e não para servir de meio de comunicação entre os brasileiros.



Quando se fala em norma, logo surgem os juízes para nos dizer que “assim é errado” e que “o certo é assado”. Em seguida vêm os policiais para zelar pelo cumprimento do “certo”, prendendo quem pratica algum “erro”. Ou seja, vêm os aplicadores de testes de seleção que excluem quem não escreve “certo” como candidato a um emprego, à universidade, etc.



A esta altura dos acontecimentos eu gostaria de dizer com toda a franqueza e sinceridade que me sinto muito inseguro sobre o que é “certo” e o que é “errado”. Só os policiais da linguagem têm certeza absoluta sobre a “correção”, sobre a “boa linguagem”. Assim sendo, minha intenção não é apresentar um receituário infalível de “como se deve escrever”. Pelo contrário, o princípio que norteia toda a minha argumentação é uma preocupação constante com a realidade concreta. Mas, como todo mundo que labuta nesta área, também eu estou entre dois fogos. De um lado está a “norma” imposta pelas classes dominantes, por subordinação do interesse geral à vontade de seus prepostos gramaticais. De outro, a realidade concreta, a linguagem real do povo brasileiro, inevitável.



Diante dessas duas normas, a oficial, subordinadora, e a real, coordenadora, gostaria de dizer que não sei exatamente como tem que ser. Eu só sei como não deve ser, por ser irrealista, alienado da realidade e por não vir surtindo efeito há já quinhentos anos. Afinal, todos nós sabemos disso. Portanto, minha intenção foi apenas a de apresentar algumas reflexões sobre esta questão, que é tão importante que dela dependem mais de 130 milhões de brasileiros.






A QUESTÃO DO ENSINO



Já salientei em capítulos anteriores o fato de as bibliotecas, os jornais e os textos escritos em geral estarem vazados numa linguagem culta. É nesta linguagem que se processa todo o ensino do vernáculo. É ela que é cobrada de todo candidato a uma vaga na universidade, a um emprego público e até em algumas grandes empresas particulares.



Diante desse quadro não há como negar que no atual estágio de desenvolvimento da sociedade brasileira a norma que se deve ensinar na escola é a culta. Ela é a linguagem mais próxima das classes dominantes. Assim sendo, não levá-la ao aluno é não lhe dar as armas para lutar contra elas. Ele fica diminuído, impotente diante das elites por não dispor dos mesmos recursos de expressão e comunicação que elas. No entanto, nunca se deve esquecer que em primeiro lugar vem o estômago. Uma criança faminta não tem o menor desejo (nem forças) para aprender uma linguagem culta.



A questão fundamental é: Como levar a norma culta brasileira (pressupondo-se que ela já esteja definida, o que ainda não é o caso) ao aluno? Alguns (a maioria) têm tentado impingir a norma lusitanizante na marra desde os primeiros estágios do aprendizado. Outros têm assumido uma postura de demagogia barata e considerado que o importante é se comunicar (“Quem não se comunica se trumbica”, disse o Chacrinha). E aqui temos levantadas duas questões básicas para todo o ensino/aprendizagem da língua nacional.



A segunda atitude está evidentemente equivocada. Com efeito, já a refutei no segundo parágrafo (e em outros também) do presente capítulo. Em outras palavras, quem não leva a linguagem culta aos aprendizes está fazendo o jogo dos dominadores. Quem assim procede deixa o povo na ignorância de um dos recursos de que eles dispõem para oprimi-lo e discriminá-lo. Assim, chegamos à conclusão de que este caminho deve ser evitado a todo custo. Só que, como já sugeri, não devemos fazer do aprendizado da norma culta uma neurose. Há caminhos mais tortuosos e caminhos menos tortuosos para se chegar ao mesmo lugar.

Quando se leva a norma culta a qualquer custo desde os primeiros estágios do aprendizado o que acontece é que os filhos das classes oprimidas, desfavorecidas economicamente, fracassam. Logo, conclui-se, eles são menos inteligentes do que os outros, são burros, não têm criatividade. Assim, o maniqueísmo está estabelecido: os filhos dos ricos são “gênios” e os dos pobres são “burros”.



Sabemos que há dois tipos de “gênios”, ou seja, os produtivos e os reprodutivos. Produtivos são aqueles que “criam” novidades, enquanto que “gênios” reprodutivos são aqueles que assimilam bem idéias de outros e as transmitem fielmente. Pois bem, nem este tipo menor de “gênio”, que é o reprodutivo, os filhos dos favelados e dos roceiros conseguem ser. Vê-se, portanto, que a linguagem é um instrumento de dominação. Assim sendo, o que vou mostrar doravante é que os filhos dos dominantes não são tão inteligentes e criativos como se pensa nem as crianças oriundas das classes marginalizadas são burras.



É claro que existe a questão do QI, se bem que os testes de avaliação do quociente de inteligência podem ser postos em causa. Além do mais, devemos levar em consideração também que se o cérebro fica danificado na primeira infância por falta de alimentação ou por alimentação insuficiente temos um problema irremediável. Mas mesmo neste caso o aprendizado lingúístico pode ser feito até certo ponto. Em suma, a inteligência, a criatividade é uma questão relativa.



Eu costumo dizer aos meus alunos que detesto gênios e figurões, que prefiro lidar com pessoas comuns. É claro que se trata de frases de efeito. No fundo, não obstante, não deixam de revelar minha posição em relação à questão da inteligência, da capacidade, da criatividade e da fama. Alguém disse que a criação tem 80% de transpiração e 20% de inspiração. Eu elevaria a transpiração a 90%, deixando apenas 10% para a inspiração. Em suma, estou convicto de que a criatividade não é algo nebuloso, sobrenatural, só acessível a uns poucos eleitos.



A criatividade a que me refiro está no plano terreno, não tem nada de sobrenatural. Portanto, qualquer pessoa que não tenha o cérebro danificado, e talvez até mesmo estas, pode chegar a fazer redações razoavelmente boas.



Vou começar citando quatro fatos que servirão de ilustração para tudo que vier posteriormente. O primeiro se passou numa escola da Ceilândia (cidade-satélite de Brasília). A secretária de educação do Distrito Federal iria visitar a escola. Então, um grupo de professores da área de comunicação e expressão preparou com os alunos alguns cartazes que ficariam expostos nos corredores da escola por onde a autoridade passaria. Os cartazes eram engenhosíssimos, com figuras dialogando (as falas em balões), como nas revistas em quadrinhos. Ao ver os cartazes expostos, a diretora exclamou: “Pelo amor de Deus, tirem isso daí, está tudo eivado de erros de português! O que é que a secretária não vai pensar do nível de nossa escola!?”.



Em segundo lugar, gostaria de relatar o caso de uma professora de inglês do Paraná. Ela terminou todos os créditos necessários para o mestrado em língua inglesa. Quando chegou a hora de redigir a dissertação ela entrou em pânico, pois sabia que era incapaz de escrever três linhas consecutivas com um certo encadeamento lógico. No entanto, deve-se observar que oralmente ela discutia sobre o tema escolhido, salientando pontos complexos, controversos, enfim, argumentava, contra-argumentava e encadeava os argumentos numa lógica a toda prova. A conclusão necessária que tiramos desse caso é que ela estava (e ainda está) bloqueada para o desempenho escrito. Quem sabe se com uma terapia adequada ela pudesse vir a escrever relativamente bem!



O terceiro caso é o meu próprio. Quando estava no segundo ou terceiro ano ginasial, ouvira da professora de história que Catão fora um homem austero, que na Roma decadente lutava para reviver os antigos hábitos. Por isso, disse ela, surgiu o adjetivo “catônico”, significando justamente austero, vitoriano, diríamos hoje. Pois bem, na primeira redação que tive que fazer para a professora de português eu empreguei o advérbio “'catonicamente”, inteiramente possível diante da existência do adjetivo. Qual não foi minha surpresa ao ouvir da professora na entrega das redações: “Quer dizer que o senhor Hildo agora é um criador de palavras novas! Não bastam Alencar, Camões e Eça de Queirós!”. Eu me enrubesci todo e me encolhi no meu canto. No fundo, porém, alguma coisa me dizia que eu não estava errado. A certeza veio só mais tarde, quando cheguei à universidade e obtive mais informações. Aí eu me insurgi e dei o grito de liberdade.



O quarto caso refere-se a um colega de turma, que compartilhava comigo a timidez na interiorana Patos de Minas de fins dos anos cinquenta. Devido em parte à mesma professora, ele se considerava burro, incapaz de aprender seja lá o que fosse. A coisa chegou ao ponto de, num teste de seleção para trabalhar em um banco em Belo Horizonte, ele tomar calmantes, pois “precisava daquele emprego”. Acabou ficando sonolento, chegando mesmo a dormir durante a prova. Pôde apenas ouvir do aplicador da prova que “filhinhos de papai que passam a noite na farra vêm aqui tomar o tempo da gente”. Para o meu amigo foi a prova cabal e irrefutável de que era burro mesmo. Alguns anos depois, recebi uma carta sua, de Berlim, dizendo que passara em três exames vestibulares, e ainda ganhara uma bolsa para estudar eletrônica na Alemanha. Tirou o primeiro lugar ao final do curso na universidade berlinense e foi convidado para trabalhar na Siemens em Munique. Depois trabalhou na ITA (São José dos Campos), montou sistemas de telecomunicações que se mostraram altamente eficazes na prática. Hoje ele abandonou tudo e está lidando com uma fazenda perto de Goiânia e outra no Xingu, numa atitude inesperada, típica de “gênios”. Também ele conseguiu dar seu grito do Ipiranga.



Pode parecer que carreguei demais nos pormeno-

res. No entanto, eles mostram o que não se deve

fazer em termos de ensino ou, então, que nem todo

mundo que consideramos burro realmente o é.



O exemplo da diretora de escola da Ceilândia ilustra à postura da escola brasileira e dos administradores em geral. Eles levam até as últimas conse- quências o fato de que o sistema precede o indivíduo. Ou seja, eles se preocupam apenas com a forma, com a aparência. A preocupação da nossa diretora eram os “erros” de ortografia, os s trocados por z, os x trocados por ch e vice-versa. A mensagem real, dramática ali contida não importava. O conteúdo, a essência não era o mais relevante. É bem verdade que não há forma sem conteúdo

nem conteúdo sem forma. Entretanto, geneticamente o conteúdo precede a forma, ele está mais próximo da matéria. E a forma é apenas uma idéia depreendida a partir da matéria, não o contrário. Em suma, nossa diretora estava preocupada com a aparência, não com a essência. Esta pode ser extremamente desagradável em um sistema autoritário e injusto.



Deve-se acrescentar que o sistema no caso é imposto de cima para baixo, por subordinação a

partir de uma central geradora de “português correto”. Mais especificamente falando, trata-se de uma norma elitizante, do como se deve falar e nãe do como se fala. Português correto é aquele que 08 servidores das classes dominantes assim consideram. Em geral ele é determinado em função do português lusitano. A língua dos brasileiros não é, segundo essa concepção, a usada pelos brasileiros, mas a que eles deveriam usar. Ou então, a de talvez 0,5% dos brasileiros.



Ora, como o pobre aluno pode redigir bem se querem que escreva numa linguagem que não é à sua? Aí está uma das grandes (se não a maior) causas do descalabro em que se encontra a redação escolar.



Redigir é uma das habilidades linguísticas. A ordem é ouvir, falar, ler e escrever. No caso da professora de inglês do Paraná, quase todas elas estavam desenvolvidas plenamente. Só a última, que é derivada da segunda, estava bloqueada. Ou seja, ela não redige bem não por falta de inteligência, por ser burra, mas porque alguém criou um trauma nela durante a sua aprendizagem, Esse trauma foi causado por mentalidades como a da nossa diretora de escola da Ceilândia.



O ser humano é eminentemente social. A função da escola é continuar a sua socialização, iniciada no lar. Portanto, formar alguém é fazer sua cabeça, é lhe dar formas, como a própria palavra já o diz, Mas, isso deve ser feito sem distorções. Não se pode esquecer que se o conteúdo só existe em função da forma, esta só existe em função daquele.

 Educar é adaptar o indivíduo a padrões pré-existentes. No entanto, o indivíduo pode agir sobre os padrões. Estes não são eternos, imutáveis. Só pensam assim aqueles que querem impor um

padrão ilegítimo, porque nascido de uma minoria, como padrão geral. Tanto não é legítimo este

tipo de padrão que o indivíduo vê certas colocações pronominais, certas regências e concordâncias como algo estranho e hostil que querem lhe impor. Não fazem parte de sua linguagem.



A língua é produto do trabalho humano como outro qualquer. Sempre que as relações de produção se transformam, transformam-se também a língua e todos os outros códigos sociais e culturais. Exigir do aluno formas que só existem em Portugal é dar mostras de um reacionarismo sem tamanho, além de ser mais um obstáculo formal que se lhe antepõe na produção de textos. Expressar-se bem é pôr para fora, na medida em que isso é possível,mexatamente o que se quer pôr.



Aqui vem à baila outra questão de interesse. Nos últimos tempos tem-se dado ênfase à comunicação (cf. a frase de Chacrinha citada acima!), não à expressão. Ora, como o próprio termo já mostra, comunicar-se é tornar-se comum, é igualar-se, é massificar-se. Ou seja, é justamente o que interessa aos ditadores e chefetes de que a América Latina

está repleta.

Produzir textos é como produzir qualquer outra mercadoria. Pressupõe o conhecimento das técnicas e dos instrumentos de produção. No entanto, os instrumentos e as técnicas de produção de textos, ou seja, Os signos, as palavras e as regras para o seu uso, são interiores, não exteriores ao homem, como acontece com os instrumentos de produção de mercadorias. Segue-se que produzir textos é exteriorizar conteúdos.



Sabe-se que só se exterioriza o que já foi interiorizado. De onde nada existe nada sai. Portanto, só se pode pedir ao aluno que escreva sobre um assunto que ele conheça. Quando o professor

entra na sala de aula e diz: “Hoje vocês vão fazer uma redação sobre a liberdade”, o resultado é fatalmente catastrófico. O aluno pode nunca ter pensado conscientemente e racionalmente sobre o assunto. É claro que todos nós temos uma vaga noção do que seja estar livre e estar acorrentado ou trancafiado no xadrez. Mas daí a sermos capazes de dissertar sobre a liberdade abstratamente vai uma grande diferença. Agir assim é transformar uma atividade que poderia ser agradável em algo extremamente penoso e chato.



Aqui seria interessante falar um pouco sobre o conhecimento. Sabe-se que ele é uma relação entre um sujeito que conhece e um objeto conhecido. Este se reflete no cérebro humano através dos órgãos dos sentidos. Nessa fase tem-se o conhecimento sensorial. Quando, porém, o contato do sujeito com o objeto começa a se repetir, ocorre um salto qualitativo e o conhecimento se transforma em conhecimento racional. Essa é a primeira etapa do processo de conhecimento e é ainda eminentemente individual, embora se deva lembrar que o indivíduo é um produto social. Numa segunda etapa, aplica-se o conhecimento adquirido à práxis social a fim de testá-lo quanto à sua validade. Ou seja, o processo de conhecimento é necessariamente dialético. Primeiro há uma passagem do objeto ao sujeito via sentidos e, em seguida, uma volta do sujeito (consciente) ao objeto, momento em que o social se adequa ao individual e o individual ao social.



Pois bem, se o aluno não domina nem o primeiro momento da primeira etapa ainda (conhecimento sensorial), isto é, se nunca experimentou o objeto em questão, como é que pode falar sobre o mesmo? Qualquer pessoa só será capaz de produzir um texto coerente sobre um assunto que domine não só sensorial e racionalmente, mas também se já o tiver testado ela própria, pois só assim estará em condições de encará-lo criticamente. Quando o professor chega à sala de aula e solicita uma reda- ção só porque não preparou a aula do dia está cometendo um crime contra o ensino.



Mesmo que o aluno já tenha o conteúdo interiorizado, ainda não temos garantia de um bom texto. Com efeito, o conteúdo concebido é pluridimensional, atemporal e inespacial. Para transformá-lo em algo transmissível (texto) é necessário unidimensionalizá-lo, linearizá-lo (cf. as linhas da escrita!). E aí está toda a luta pela expressão. Se até os maiores estilistas da língua têm suas angústias expressionais, que dizer do iniciante! Não criemos traumas nele. Devemos lhe dar conteúdos, informações diversas e, depois, treiná-lo para expressar esses conteúdos, ou seja, para unidimensionalizá-los.



Esse treinamento é como qualquer outro. Assim como só podemos ser bons datilógrafos observando alguém datilografando e depois fazendo-o nós mesmos, do mesmo modo só aprendemos a produzir bons textos lendo quem já escreveu antes de nós e tentando escrever nós mesmos, pressupondo-se, obviamente, que conheçamos o assunto. Manuais de redação, técnicas de redação, como redigir bem e quejandos são sempre inócuos, ineficazes. Partir deles é simplesmente inverter o processo natural, pois com isso se dá precedência à forma, e não ao conteúdo. Coloca-se o carro diante dos bois. Transforma-se algo que devia ser agradável em uma chatice, já que a forma, o sistema, o formalismo sempre coíbe a liberdade individual. Em vez de o aluno dominar o texto, é este que domina o aluno. Por fim, não se pode esquecer que alguém só pode produzir intelectualmente se se sente à vontade. Num ambiente constrangedor, humilhante, como o que eu e meu colega tivemos em Patos de Minas ninguém conseguirá produzir um bom texto. Por conseguinte, será considerado por si mesmo e pelos outros como burro,



O sentir-se à vontade funciona até no caso de línguas estrangeiras. Pessoas de diversas nacionalidades me confessaram na Alemanha que só conseguiam falar bem o alemão quando se sentiam à vontade diante do interlocutor. Se este lhes era simpático, elas falavam fluentemente; se não era, as palavras não saíam, gaguejavam, etc.



Desde a época em que eu trabalhava no ensino médio tenho notado que alunos que fazem redações “péssimas” na aula de português redigem relativamente bem no jornalzinho dos estudantes. As vezes escrevem até poesias e contos. Mas, o que mais me chamou a atenção foi um professor universitário que nunca tinha escrito nada na vida. Quando se viu alçado na posição de reitor de uma universidade do interior, produziu textos muito interessantes para a revista local. Isso só foi possível porque ele se sentiu a cavaleiro da situação.



Diante de tudo isso podemos perguntar: Como é que um aluno tímido, às vezes com fome, preocu- pado com os problemas domésticos, com as brigas dos pais, com o professor que irá corrigir s, Z, x e ch e, quem sabe, até criticá-lo ironicamente, ridicularizando-o, poderá produzir um bom texto sobre a liberdade? É humanamente impossível. Toda sua energia e toda sua atenção estão voltadas para outros problemas que não o texto que lhe foi pedido, além de, possivelmente, não ter pensado no assunto criticamente. Mas, como ele não tem consciência disso, passará a se considerar incapaz de fazer redação, de escrever bem, e o português será uma matéria chata, Ponto final!



Para mim, não é necessário ser gênio para ser capaz de produzir bons textos. Pelo contrário,

qualquer pessoa capaz de justificar que não é culpada de um fato qualquer dando causas, razões, pode chegar a redigir razoavelmente bem. Assim sendo, passo a dar algumas sugestões e a relatar uma experiência por mim vivida.



O fato é que alguém só pode produzir um texto se tiver um conteúdo a transmitir. O grande pro-

blema em muitas redações sobre a liberdade é que o aluno nunca refletiu a respeito dela, como já vimos. Mesmo que já o tenha feito, fê-lo assistematicamente. Como a redação tem que ter uma seguência lógica, ele não consegue fazê-la bem. Estou certo de que todo professor de português já ouviu de alunos que vão entregar suas redações as seguintes perguntas: “Até aqui tá bom?”, “Se o senhor quiser eu escrevo mais algumas linhas”, “Quantas linhas o senhor quer?”, “Uma página basta?”, Em outros termos, dados os vícios que o sistema escolar impingiu neles, a preocupação não é se já expressaram tudo que tinham que expressar, se já deram seu recado. Sua atenção está voltada é para a forma.



Forma no caso é um tipo de metalinguagem, isto é, a linguagem que se usa para falar da própria linguagem. Ora, sabe-se que o objetivo no aprendi- zado de qualquer língua, não só da materna, é aprender a usá-la, a falá-la, não a falar sobre ela. A metalinguagem deve ser preocupação do professor, não do aluno.



Para evitar distorções como as mencionadas, sugiro que se comece com historinhas. Estas o

aluno já tem completas na cabeça, com início, meio e fim. Assim, uma preocupação já fica posta de lado, ou seja, ele não precisa se concentrar na forma (“introdução”, “desenvolvimento” e “conclusão”). Na historinha, conteúdo e forma fazem parte da mesma realidade, são faces da mesma moeda. Se ele fica aliviado de uma preocupação (com a forma), já temos um passo andado na direção de uma eficiência na produção de textos. Após dominar a redação de historinhas, pode-se passar para outras modalidades de textos. Um exemplo para a etapa seguinte seria a descrição de cenas presenciadas por ele. Trata-se de um tipo de texto bem mais difícil. Porém, ainda está ligado à realidade concreta, e assim ainda é menos difícil do que a etapa seguinte.



Em seguida, pode-se passar para a produção de textos dissertativos, inclusive sobre a liberdade. Entretanto, nunca se esquecendo de que primeiro se deve verificar se o aluno tem conhecimento não só sensorial e racional do assunto. Deve estar em condições de voltar-se criticamente sobre ele, com o fito de dissecá-lo e expô-lo coerentemente, sem

distorcer os fatos.



Nunca se deve corrigir “os erros de português”, pelo menos nos estágios iniciais. Se o aluno sabe que não vai ser “corrigido”, ele se sentirá mais à vontade, e com isso sua atenção se concentrará no conteúdo. A forma virá, como já disse, de lambujem. De resto, para que perder o professor um tempo preciosíssimo à cata de s, Z, x e ch bem como de algumas concordâncias e regências, se O aluno chega em casa e joga a redação corrigida" no cesto de lixo? É um trabalho inútil. Este tempo pode ser: aproveitado para bolar atividades mais eficientes e que tornem o ensino menos penoso.



Quando era professor de português para quintas séries eu costumava solicitar uma redação para casa “todos os dias. Em geral o tema ficava a critério do aluno. Em classe eu pedia a uns três ou quatro que lessem seu texto para a turma. Todos o faziam de bom grado. Eu não corrigia absolutamente nada. Apenas anotava quem não trouxera a tarefa. A fim de que não ficassem de todo sem escrever o português das gramáticas, eu pedia, também todo dia, que copiassem em casa uma meia página de caderno de um texto escrito qualquer: romances, livros de ciências, enciclopédias, artigos assinados de jornal, livros de outras disciplinas, etc. E a coisa funcionava. Todos gostavam da disciplina língua portuguesa. Todos participavam com muito entusiasmo, chegando até mesmo a haver uma rivalidade interna, mas uma rivalidade construtiva. Cada um queria fazer um texto melhor do que o outro. Afinal, não é isso que todo professor de português gostaria de ver em seus alunos?



Até a gramática pode se tornar menos árida. Após uma aula sobre o grau dos substantivos,

solicitei uma redação com o título de “No mundo do pequenininho e do grandalhão”, acrescentando que nesse mundo tudo era pequeno demais ou grande demais. Pois bem, surgiram histórias engraçadíssimas e engenhosíssimas. Isso porque já estavam altamente motivados. Escreviam com prazer e procuravam fazê-lo bem a fim de mostrar para a turma a sua capacidade.



A tarefa do professor não é fácil. No entanto, com um pouco de imaginação, uma orientação teórica segura e muita transpiração, pode-se conseguir resultados altamente 'compensadores. E imaginação só pode ter quem não perde horas e horas a fio riscando de vermelho centenas de redações cujo destino é o cesto de lixo. Imaginação também pode ser treinada. Mas, para isso é necessário ter-se tempo.



Uma orientação teórica segura também requer tempo. Ninguém consegue encontrar uma postura filosófica em relação à educação, em geral, e ao ensino de redação, em particular, se é um caçador de “erros de português”. Deixemos que o aluno descubra por contá própria a ortografia “correta” através das cópias, indevidamente consideradas ultrapassadas hoje em dia. A postura filosófica é indispensável. Porém, o que é uma orientação teórica segura? É aquela que não falseia a realidade, aquela que parte dos dados para em seguida voltar a eles enriquecida pela teoria. É aquela que não resulta de distorções como as que discutimos nos capítulos anteriores. Afinal de contas, a solução dos problemas práticos está na teoria e a solução dos problemas teóricos está na prática. E isso não pode ser atingido com uma teoria que encara omprocesso de aprendizagem de maneira unidirecionale, consegientemente, distorcido.



Para terminar, gostaria de frisar mais uma vez que grande parte dos problemas comentados (bem como dos milhares de outros que nem mencionei) desapareceria se já tivéssemos definido a norma culta brasileira como sugerido no capítulo anterior. Se ela já estivesse definida tais problemas inexistiriam, pelo menos para a pequena minoria que consegue terminar os estudos. Isto porque uma norma culta estabelecida naqueles termos, ou seja, por coordenação das tendências gerais da língua brasileira, seria muito mais próxima da linguagem coloquial das classes dominantes. Portanto, para seus filhos o aprendizado lingúístico consistiria mais na sistematização e alargamento de algo que já dominam.



No caso das crianças oriundas da roça, das favelas, em suma, das crianças vindas das classes

marginalizadas, os problemas continuariam existindo. No entanto, eles seriam em número e em grau muito menores do que os que existem atualmente, uma vez que tentamos impingir uma norma lusitanizante, alienada da sua realidade concreta.












INDICAÇÕES PARA LEITURA



Hoje em dia já existe uma literatura considerável sobre o assunto, inclusive no âmbito da sociolinguística (ramo da lingúística que estuda a língua no contexto social). Mas, da perspectiva que abordei o assunto, creio que ainda não existe nada publicado em forma de livro.



A polêmica em torno de questões lingúísticas no Brasil sempre existiu. Poderia mencionar a famosa questão da “língua brasileira”, travada entre José de Alencar e diversos autores, tanto brasileiros quanto portugueses. A propósito, pode-se consultar o livro de Gladstone Chaves de Melo, Alencar e a “Língua Brasileira" (Conselho Federal de Cultura, 1972). Temos também a polêmica entre Rui Barbosa e seu ex-mestre Ernesto Carneiro Ribeiro sobre a linguagem do Código Civil (cf. a Réplica, de Rui Barbosa e a Tréplica, de Carneiro Ribeiro).



De uma perspectiva mais científica, e mais próxima de nós (se bem que ainda bastante conservadoras), temos várias publicações de Serafim da Silva Neto, sobretudo o livro Introdução ao Estudo da Língua Portuguesa no Brasil (Rio, Presença Edições, 42 ed., 1977). Um pouco mais atualizado é o livro de Celso Cunha, Língua Portuguesa e Realidade Brasileira (Rio, Tempo Brasileiro, 1977). Do mesmo autor temos Uma política do Idioma e Língua, Nação, Alienação que, apesar dos nomes, não acrescentam muita coisa ao primeiro citado. Aliás, o autor não aplica em sua Gramática do Português Contemporâneo os princípios que ele próprio defende em seus livros doutrinários. De "qualquer maneira, esses livros trazem uma grande quantidade de informação bibliográfica cujo conhecimento é indispensável para quem trabalha na área.



Para o chamado projeto NURC (Norma Urbana Culta), pode-se consultar o artigo de Albino Bem Veiga “Projeto de estudo da norma lingúística culta de algumas das principais capitais do Brasil” (revista Littera nº 3, 1971) e o de Ataliba T. Castilho “O estudo da norma culta do português do Brasil”, publicado na Revista de Cultura Vozes nº 8, 1973.



Do ponto de vista doutrinário, vale a pena ler o livro de Roberto Lyra Filho O Que é Direito, da coleção Primeiros Passos, nº 62 e o de Marilena Chauí O Que É Ideologia, da mesma coleção, nº 13.



Para uma visão semiótica global da cultura, pode-se consultar o meu Uma Introdução à Semiótica (Rio, Presença Ed., 1983).



Como o tempo decorrido entre a redação e a publicação deste livro foi muito grande, surgiram

várias obras que tratam de problemas correlatos que, não obstante, não pude levar em consideração. Eu apenas as enumero a fim de informar o leitor de sua existência. São: 1. Celso Pedro Luft. Língua e Liberdade; 2. Mário A. Perini. Para uma Nova Gramática do Português; 3. Evanildo Bechara. Ensino da Gramática: Opressão ou Liberdade?; 4. Magda Soares. Linguagem. e Escola — Uma Perspectiva Social; 5. Rodolfo llari. A Linguística e o Ensino da Língua Portuguesa; 6. Maurizio Gnerre. Linguagem, Escrita e Poder.



Caro leitor:



As opiniões expressas neste livro são as do autor, podem não ser as suas. Caso você ache que vale a pena escrever um outro livro sobre o mesmo tema, nós estamos dispostos a estudar sua publicação com o mesmo titulo como “segunda visão”.








Biografia



Nasci em Patos de Minas, MG, onde terminei o ginásio. Fiz o antigo clássico em Belo Horizonte e a graduação em letras vernáculas na USP. Nesta mesma universidade fiz o mestrado em lingiiística. Em 1978 terminei o doutorado em lingiistica na universidade de Colônia, Alemanha, com uma tese sobre o guarani paraguaio, intitulada Das Konsonantensystem des Guarani. Publiquei os livros Ensaios de Lingiística Aplicada ao Português (como organizador e autor de um dos ensaios) em 1981 e Linguística e Semiótica Relacional (1982), ambos pela Thesaurus de Brasília. Finalmente, publiquei o livro Uma Introdução à Semiótica, pela Presença Edições do Rio, em 1983. Tenho também vários artigos em revistas especializadas tanto nacionais quanto internacionais.



Já fui comerciário, bancário, professor de português e de inglês no ensino médio (S. Paulo), de linguística, língua portuguesa e de semiótica (semiologia) na Universidade Estadual de Londrina. Atualmente, trabalho com linguística na graduação e pós-graduação na Universidade de Brasília.







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