Hildo Honório do
Couto
Universidade de
Brasília
1. Introdução
Na última semana
(estou escrevendo em 28/07/2018) apareceram mais algumas notícias sobre o
"índio do buraco" na imprensa brasileira. Trata-se de um homem da
Terra Indígena do Tanaru, no município de Corumbiara, Rondônia, que perambula
pela região inteiramente só. O fato tem sido noticiado por vários órgãos da
imprensa nacional e da internacional. Da internacional, poderíamos citar a BBC,
The Guardian, Washingon Post e Diário de Notícias (Lisboa),
entre muitos outros órgãos.
O fato de se
tratar de uma pessoa vivendo sozinha na floresta já aponta para algum tipo de
extinção de povos, extinção frequentemente causada por genocídio, por expulsão
de comunidades inteiras das próprias terras por invasores não índios, por
dizimação por doenças trazidas por esses invasores etc. Em julho/2018
completaram-se 22 anos que ele fora avistado pela primeira vez.
Como veremos mais
abaixo, ele nunca foi contatado, uma vez que ele próprio demonstrou que não o quer.
Por isso, não sabemos quase nada sobre ele. A tribo à qual deve ter pertencido
era conhecida por cavar buracos à volta do seu território, o que fez com que
recebesse o nome de "índio do buraco".
Eu decidi falar
sobre o assunto, da perspectiva da ecolinguística, porque essa situação é
intrigante para a teoria ecolinguística. Ela é interessante para se discutir o
que é língua, o que é língua viva e o que é língua morta. Enfim, é importante
para se discutir a dinâmica das línguas. Mas, o objetivo geral por trás de toda
a argumentação é chamar a atenção para o genocídio que os colonizadores
trouxeram para as terras que "civilizaram" e para a devastação que
estão causando no meio ambiente vital, derrubando florestas, provocando o
assoreamento de cursos d'água, poluindo a terra, as águas e o ar. Em suma, em
nome de criar condições de vida para as pessoas, estão cavando a cova para
todos a médio e longo prazos.
2. O que se
sabe
Índio do buraco é
o nome pelo qual ficou conhecido um indígena isolado que costuma cavar buracos,
com um metro de comprimento e três metros de profundidade, que sempre são
encontrados no interior das casas feitas de terra e palha nas palhoças onde
vive. São valas profundas, provavelmente armadilhas para caçar ou, então,
destinadas a se esconder quando alguém que temesse fosse visualizado. O curioso
é que ele também já abandonou algumas dessas palhoças, juntamente com
instrumentos de uso manual, como tochas de resina e flechas.
Como vimos, o
"índio do buraco" seria um solitário remanescente de um povo que deve
ter desaparecido devido a ataques genocidas de fazendeiros a sua comunidade no
período que vai de 1970 a 1980. O objetivo era devastar a floresta para vender
a madeira e ter terra para criação de gado e plantação de soja. Acredita-se que
a maioria dos membros da sua tribo tenha sido dizimada nesse período, após a
construção de uma estrada perto da área onde viviam, estrada que aumentou o
interesse por terras na região. Essa tribo deve ter existido no que veio a ser
chamado Terra Indígena Tanaru (TI Tanaru), localizada próximo a Corumbiara, em Rondônia. Para
resguardar direitos dos indígenas na área, foi criada a Frente de Proteção
Etnoambiental Guaporé (FPE Guaporé), unidade da Funai. Aqui está o mapa com sua
localização:
A TI Tanaru foi
delimitada em 2015, pela Portaria do Presidente da Funai 1040 de 16 de outubro,
que prorrogou a interdição da área por 10 anos. A área demarcada compreende
8.070 hectares. Não obstante, as primeiras interdições de área já haviam
ocorrido desde a década de 1990, logo após a confirmação da existência do índio
isolado da TI Tanaru. Esses 8.070 hectares de floresta protegida em que o homem
vive são inteiramente cercados por fazendas, cujos ocupantes acham que é
"muita terra para um único índio". Por isso, houve, e há, constantes
conflitos com grileiros, madeireiros e fazendeiros, o que forçou esse povo a se
mudar com muita frequência. Além disso, seus integrantes foram morrendo pouco a
pouco. Após um ataque em 1995, o grupo que já constava de apenas de umas seis
pessoas foi reduzido a apenas uma, o “índio do buraco”.
Com o ataque de
1995, o “índio do buraco” foi provavelmente o único a escapar. Ele foi avistado
pela primeira vez em 1997. A confirmação de sua existência provocou a criação
da TE Tanaru, em 1998. Em 2009, um acampamento temporário montado na região
pela Funai foi saqueado por um grupo armado. Dois cartuchos de armas foram
deixados para trás; foram destruídos equipamentos, sistema de radiofonia,
placas solares e partes da estrutura do posto.
A propósito dos
ataques dos fazendeiros, Algayer disse que no posto atacado foram danificados
paredes, placa solar e cabo de uma antena. "Eles deixaram claro que vão
atirar no índio se o encontrarem".
Por 10 anos a
Funai realizou 57 incursões de monitoramento da presença do indígena e cerca de
40 viagens para ações de vigilância e proteção da TI Tanaru. Ela tentou contato
já em 2005, mas ele não quis saber disso. Deste então, os servidores que o
acompanham deixam apenas algumas ferramentas e sementes para plantio em locais
pelos quais ele costuma passar. Vale dizer, toda "interação" com ele
tem consistido em fornecer alguns objetos que poderiam ser úteis para a sua
sobrevivência.
Apesar de o índio
do buraco já ter sido o foco de diversas pesquisas, reportagens em veículos de
comunicação brasileiros e estrangeiros e inclusive um livro (REEL, 2010a), até
onde se sabe ele nunca foi contatado por alguém de fora de sua tribo. Não
sabemos quase nada sobre ele: se realmente pertence a uma tribo extinta, se
sim, qual era ela, que língua falava, se ele tem contato pelo menos com povos
ameríndios vizinhos etc. Nunca houve comunicação com ele. Desde a primeira
tentativa, ele reagiu com flechadas. Por volta de 2012, a Funai registrou
algumas roças de milho, batata, cará, banana, mamão, o que aponta para o fato
de ele dever se alimentar desses produtos, além de da caça e de mel.
Ele foi filmado
cortando uma árvore com um machado. No vídeo ele aparece seminu, mas aparenta
uma excelente forma física. Estima-se que tenha cerca de 50 anos. Até há pouco
tempo, existia uma única foto borrada, tirada por um fotógrafo que acompanhava
a FUNAI em uma viagem de monitoramento, e exibida muito rapidamente em um
documentário brasileiro de 1998. Trata-se dos registros feitos pelo
cinegrafista Vincent Carelli, que deram origem ao premiado documentário
"Corumbiara", comentados por Oliveira (2009) e Saraiva (2009). Em
apenas uma oportunidade ele foi filmado, e o vídeo foi divulgado pela FUNAI.
Ele está disponível em
Para terminar essa apresentação e tentativa de
caracterização do "índio do buraco", gostaria de reproduzir alguns
argumentos de Altair Algayer, coordenador regional da FPE Guaporé, da FUNAI.
Estes depoimentos foram pinçados em diversas publicações, como as mencionadas
acima e as que se encontram nas Referências. Coloco-as entre aspas, pois, é
assim que as encontrei na imprensa.
- "A gente
sempre sabe mais ou menos em qual igarapé e em qual parte da terra indígena ele
se encontra. Monitoramos ele de longe".
- "Esse
homem, que a gente desconhece, mesmo perdendo tudo, como o seu povo e uma série
de práticas culturais, provou que, mesmo assim, sozinho no meio do mato, é
possível sobreviver e resistir a se aliar com a sociedade majoritária. Eu
acredito que ele esteja muito melhor do que se, lá atrás, tivesse feito
contato".
- "Ele está
muito bem, caça e mantém algumas plantações de mamão e milho" (sobrevive
caçando porcos selvagens, pássaros e macacos com um arco e flecha e também
monta armadilhas em buracos escondidos).
- "Eu entendo
a sua decisão [de viver só]. "É a sua forma de resistir, e um pouco de
repúdio e ódio, se conhecermos a sua história e aquilo por que passou".
- "O dono de
uma das fazendas nos cobra uma solução. Ele quer que o índio seja levado para
outra terra", "tentativa de intimidação".
3. Terras,
povos e línguas indígenas e a invasão dos europeus
Na opinião dos
fazendeiros dos arredores do lugar onde vive o índio do buraco, é um absurdo
manter tanta terra para um único índio. Essa terra poderia estar produzindo
soja, gado de corte e leiteiro, ou seja, produzindo alimento para muita gente.
Ouvindo assim, até parece que têm razão. Entretanto, isso é uma falácia, que
consiste em pegar uma pequena parte da questão e apresentá-la como se fosse o
todo. Isso é pior do que a mentira mais deslavada, pois, esta pode ser
facilmente desmascarada. A falácia pode enganar muita gente, por conter parte
da verdade. Comellas-Casanova (2009) tenta mostrar com argumentos e exemplos
como aqueles que têm o poder central tentam vender a ideia de que é bom para as
minorias (étnicas, linguísticas etc.) adaptarem-se ao poder central, ou seja,
abdicar de sua identidade. Em Couto (2014) eu mesmo tentei mostrar como os
invasores europeus dizimaram grande parte dos ameríndios; os que ainda
sobrevivem foram forçados a se tornar "minorias" no próprio
território. O que é mais, muitos desses grupos étnicos minoritários estão
parcial ou totalmente assimilados à cultura de origem europeia.
Para os invasores,
"não havia nada" nas Américas antes de sua chegada. A profusão de
espécies vegetais e animais, a exuberância da Mata Atlântica e da Floresta
Amazônica, para não dizer do cerrado do Planalto Central, tudo isso não era
nada. Só começou a "haver algo" com a chegada deles. Espécimes da
flora como jacarandás, aroeiras, perobas e pitangueiras; espécies da fauna como
emas, lobos-guarás, jaguatiricas, tucanos e jararacas não eram
"nada". Porém, o que é mais lamentável na visão desses invasores é
que, pelo menos aparentemente, "não havia ninguém" aqui. Só começou a
"haver alguém" com a chegada dos europeus e seus descendentes. Para
eles, "progresso", "desenvolvimento" implica a devastação
total da floresta amazônica para plantar soja, estabelecer fazendas de gado
leiteiro e de corte. É um "desperdício" deixar tanta terra apenas com
pequenos grupos étnicos, árvores e animais nativos.
Como tentei
mostrar em Couto (2007: 367-377), no capítulo intitulado
"Desenvolvimento", isso se dá até mesmo com "minorias" de
origem europeia já estabelecidas no Brasil, como os caboclos e os pobres do
Planalto Central em torno de Brasília. Para aqueles que acham que trouxeram o
"progresso" e o "desenvolvimento" para a região, antes
"não havia nada" nela. A rica fauna e flora do cerrado, as pequenas
propriedades de subsistência aí já existentes "não eram nada". Com a
chegada das bugigangas do consumismo capitalista é que começou a "haver
algo".
No referido
capítulo, tento discutir o que realmente ocorreu.
Na
visão dos planejadores, o "desenvolvimento" chegou ao Distrito
Federal, em especial, e ao cerrado do Planalto Central, em geral. O
Centro-Oeste passou a produzir 50% da soja do país (13% da do mundo inteiro). O
cerrado produz também 20% do milho nacional, 15% do arroz e 11% do feijão. A
produção agropecuária também se "modernizou" e cresceu
consideravelmente. Nos dias de hoje, a soja tem sido um dos principais
responsáveis pelos sucessivos superavits na balança comercial
brasileira. Infelizmente, porém, as divisas que entram não ajudam a melhorar a
vida dos milhões de miseráveis do país. Pelo contrário, elas vão para o bolso
de uma pequena minoria.
O capítulo
continua mostrando que
Uma
das consequências mais conspícuas do "desenvolvimento" que foi
trazido para Brasília é que cerca 60% do cerrado já foi devastado. Dos
restantes 40%, apenas 10% permanecem como no original. No DF, a área destruída
chega a 80%. Além disso, à medida que as cidades incham e a demanda por água
aumenta, a quantidade de água potável disponível diminui. Aliás, esse problema
é mundial. Como salienta Brown (2003), no mundo inteiro os rios estão secando,
entre eles o Jordão, o Colorado, o Rio Amarelo, o Índus, o Ganges e o Nilo. O
Mar de Aral recuou 12 metros desde 1960, por definhamento do Amu Darya que o
alimenta, por causa dos produtores de algodão da Turquia e do Uzbequistão. No
próprio momento em que estou escrevendo (outubro de 2005), está havendo a maior
seca dos últimos 60 anos na Amazônia.
Enfim,
Diante
de tudo que foi dito até aqui somos inevitavelmente levados à conclusão de que
o "desenvolvimento" que está se dando no Planalto Central tem piorado
a vida da grande maioria de seus habitantes. A vida "simples" e talvez
até bucólica que se levava antes do "desenvolvimento", no fundo no
fundo, era muito melhor do que a poluição, a ocupação de vias públicas por
desvalidos, o medo da violência. Hoje, a classe média é prisioneira nas
fortalezas em que se transformaram suas casas. Só que, nem assim conseguem
pôr-se a salvo da violência, que é apenas a ponta do iceberg.
4. Interpretação
linguístico-ecossistêmica
Como é amplamente
sabido, a vertente da ecolinguística que praticamos, a linguística
ecossistêmica, parte do ecossistema linguístico, também conhecido
como comunidade linguística. De acordo com ele, e de acordo com o leigo,
para haver uma língua (L) é preciso que exista um povo (P) em
determinado lugar, seu território (T), formando o seguinte tripé (COUTO,
2015):
P
/ \
L---T
Ecossistema
Linguístico
Comunidade
Linguística (CF e CL)
A comunidade linguística pode ser vista como
comunidade de língua ou comunidade de fala. Comunidade de língua é o
domínio do que chamamos laicamente língua. Assim, a comunidade de língua
portuguesa compreende Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde,
Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. A comunidade de língua pirahã
compreende o domínio do povo pirahã às margens do rio Maici em Humaitá e
Manicoré, no estado do Amazonas. Comunidade de fala é qualquer
agrupamento de qualquer comunidade de língua que o investigador delimite para
estudar. Pode ser só o Brasil, só o estado do Rio de Janeiro, só a cidade do
Rio de Janeiro, só o bairro do Flamengo, uma quadra desse bairro e até uma
família (pai, mãe e filhos). No caso de pequenos grupos étnicos, cada aldeia
pode ser encarada como comunidade de fala. Cada oca (casa) também.
Isso significa que
a teoria da linguística ecossistêmica tem, já no seu tripé inicial (ecossistema
linguístico), argumentos que favorecem a defesa dos povos minoritários e/ou
discriminados e/ou estigmatizados. Com efeito, ele mostra que para ser inteiro,
ter sua integridade, qualquer grupo étnico (P) precisa estar de posse de seu
meio de comunicação próprio (L) e conviver no próprio território (T). Quando
ele perde L, a integridade fica bastante fragilizada, mas pode subsistir se
ainda dispuser pelo menos do território. Muitos povos indígenas estão nessa
situação. Quando não, são bilíngues, em português e a língua étnica. Porém, se
perder também o T, os membros do grupo se dispersam pelo T do povo majoritário
circundante e, a médio e longo prazo, o grupo inteiro desaparece como tal.
O ecossistema
linguístico, a comunidade linguística, de que o índio do buraco certamente deve
ter feito parte se esboroou, como deve ter ficado claro acima. Ele era parte de
um P, composto de diversos px (indivíduos). Hoje, ele é apenas um py
(um indivíduo) como uma tíbia ou um maxilar de um dinossauro encontrado em
escavações arqueológicas. O organismo completo do dinossauro se foi. Do mesmo
modo, a comunidade linguística do índio, melhor, a comunidade de língua e sua
pequena comunidade de fala originais desapareceram. A pergunta que fica é se se
pode dizer que sua língua ainda pode ser considerada viva, se é que ele fale
uma língua diferente das demais existentes nas redondezas e até mesmo se ele
fala (se comunica com alguém), pois ele vive isolado. O fato é que ele com
certeza ainda deve se lembrar das regras interacionais e das regras sistêmicas
(COUTO, 2015) da língua do que foi seu povo, por ser aparentemente saudável. O
mesmo se pode dizer de sua cultura: será que ela ainda existe, se ele ainda
tiver na memória seus traços principais?
5. Comentários
Pode parecer estranho eu ter dito na seção
anterior que, a despeito de o solitário índio do buraco provavelmente ainda se
lembrar das regras interacionais e das regras sistêmicas de sua língua, ela não
existe mais, e que mesmo se lembrando de como era sua cultura tampouco ela
sobrevive. Vejamos a primeira questão: se a língua é interação, o simples fato
de algum indivíduo ter memória das regras não significa que essa língua esteja
viva. Para que isso aconteça é necessário que haja pelo menos dois indivíduos
sobreviventes da comunidade em questão; o que é mais é necessário que eles se
comuniquem de modo relativamente contínuo mediante essas regras interacionais e
sistêmicas. Isso é o pulsar de uma língua viva. Há muita gente pelo mundo afora
que conhece pelo menos as regras sistêmicas do latim. As regras interacionais,
porém, são de difícil recuperação, pois não sabemos como os romanos interagiam
comunicativamente. Por isso, o latim é uma língua morta; não há lugar nenhum no
mundo em que algum grupo de pessoas interaja de modo não efêmero mediante essas
regras. O que temos do latim hoje é um fóssil, ou algo empalhado, mumificado.
Isso é tudo menos uma língua viva. Como dizem Døør & Bang (2002: 216),
"a linguística é uma ciência da vida em geral, uma ciência da vida da e
para a comunicação linguística humana em particular", por isso ela
"deve ser desenvolvida em um diálogo com os melhores métodos e ideias mais
inspiradoras da biologia".
O mesmo se pode
dizer da cultura. Vimos que o índio do buraco certamente quando muito deve se
lembrar dos principais padrões da cultura de seu extinto grupo. No entanto,
assim como se dá com o fato de a memória das regras (interacionais, sistêmicas)
de uma língua em um único indivíduo não fazer dela uma língua viva, também a
cultura tem que fazer parte do metabolismo das interações sociais vigentes
entre os diversos membros do grupo. Tanto que o ecossistema cultural apresenta
a mesma configuração do ecossistema linguístico, como se pode ver na figura a
seguir:
P
/ / \
/ /
\
C--L----T
Ecossistema Cultural
(CPT)
Ecossistema Linguístico
(LPT)
Ecossistema
Linguístico-Cultural (C/LPT)
Como se vê, o
ecossistema linguístico (LPT) faz parte do ecossistema cultural (CPT), o que
implica que a língua é parte da cultura. O gráfico mostra também que a
população (P) e o território (T) associados a uma cultura são os mesmos do
respectivo ecossistema linguístico. Isso já nos leva a concluir que quando uma
língua morre, geralmente morre também a cultura de que ela faz parte. Disse
geralmente porque há uma parte da cultura que está fora do ecossistema
linguístico, que se encontra em CPL. É o caso dos ciganos, que perderam seu
território original na parte centro-norte da Índia, mas manteve pelo menos
parte da cultura original. Algo parecido aconteceu com os judeus após a
diáspora. De qualquer forma, nesses casos não temos culturas plenas, que
pressupõem toda uma série de componentes, como se pode ver em Couto
(2018).
Meramente existir
na memória de um, e até de mais de um indivíduo, é apenas uma parte, a parte
mental da língua e da cultura. Isso não faz delas algo vivo, pois, como a
linguística ecossistêmica tem mostrado, além do ecossistema mental a língua
compreende ainda o ecossistema natural e o social. A dimensão mental subsiste
pelo menos parcialmente no indivíduo conhecido como índio do buraco. Porém,
sabemos que uma andorinha só não faz verão, do mesmo modo que um único indivíduo
não faz uma comunidade. Linguístico-ecossistemicamente, teria que haver pelo
menos mais um outro indivíduo de seu ecossistema linguístico original, e
convivendo com ele, para que se pudesse dizer que sua língua e sua cultura
ainda existem. O núcleo da língua para essa disciplina é a interação
comunicativa, e só pode haver interação (de qualquer tipo) entre no mínimo duas
pessoas. Tanto que em Couto (2016) se pode ver que dois indivíduos em
interlocução constituem uma comunidade de fala mínima. Inclusive o
aspecto mental, a memória que esse índio ainda deve ter de sua língua/cultura
original já deve estar se esgarçando, por não serem praticadas. Além disso,
falta o aspecto mental dos demais indivíduos que compunham a comunidade. A
memória do ecossistema mental apenas do índio do buraco seria como um fóssil,
como as memórias geológicas de seres de priscas eras.
A língua está
morta, mas poderia ser ressuscitada se aparecesse um outro índio de sua etnia
com o qual pudesse trocar atos de interação comunicativa. Algo parecido
aconteceu com o hebraico. Ele já estava extinto como tal. O que subsistia eram
o iídiche, mistura de alemão com hebraico na Europa central, e o
judeo-espanhol, na Península Ibérica. Tratava-se de variedades do alemão e do
espanhol, respectivamente, não de hebraico. No entanto, quando se fundou o
estado de Israel na Palestina em 1947-1948, os filólogos que cultivavam o
hebraico religioso ensinaram-no às crianças, de modo que hoje ele é a língua
oficial do país, ao lado do árabe como língua oficial minoritária.
Voltemos ao caso
do índio do buraco. Sabemos que, além das pessoas monoglotas, existem
aquelas que são bilíngues e as plurilíngues, chamadas de poliglotas. O
índio em questão seria aglota, ou seja, ele não fala nenhuma
língua, uma vez que, pelo menos aparentemente, ele não tem contato com ninguém,
o que não significa que não mantenha a competência de sua língua original que
poderia ser revivida se houvesse as condições propícias: a presença de pelo
menos mais uma pessoa que pudesse interagir com ele. Para todos efeitos ele não
tem língua, não interage comunicativamente com ninguém, logo, é aglota. É uma
situação sui generis, como sui generis é o modo pelo qual ele
vive.
Certamente o mais
importante é a situação humana desse homem, bem como dos povos autóctones e das
minorias em geral. Porém, creio que tratar do assunto do ponto de vista
linguístico também é importante. Com efeito, a linguística ecossistêmica parte
justamente do tripé formado por povo (P), sua língua (L) e sua terra ou
território (T). Ela chama a atenção, já na porta de entrada, para a visão
ecológica de mundo, para o fato de que um povo (P) só terá sua integridade
e identidade plenas se seus membros estiverem convivendo na própria terra (T) e
interagindo cultural e linguisticamente pelo modo tradicional de interagir, sua
linguagem (L).
A linguística
ecossistêmica mostra que o linguista também é responsável, também ele precisa
se preocupar com o aniquilamento dos povos mediante invasão de suas terras e de
suas culturas e línguas. Os invasores criam uma situação em que os membros
desses povos não têm outra alternativa senão aderir à cultura do povo
majoritário invasor. Os autóctones se desaculturam
e aculturam ao mesmo tempo. No primeiro caso, sendo forçados a deixar a própria
cultura; no segundo, a se adequarem à cultura invasora a fim de sobreviver. Os
defensores dessa política asseveram que são os próprios povos minoritários que
querem deixar sua língua/cultura e se adequar à língua/cultura dominante a fim
de "ter trabalho", de "subir na vida". Ninguém lhes
perguntou se deixariam sua língua/cultura se tivessem a opção de "ter
trabalho" e "subir na vida" mantendo-as.
Na verdade, a
regra é a adaptação desses povos ser apenas parcial. Em geral vão viver na
periferia das cidades, em favelas. Dificilmente conseguem ter o padrão de vida
da classe média e, mais difícil ainda, da elite. Isso é tudo menos adaptação.
6. Observações
finais
Gostaria de
terminar este ensaio trazendo à baila mais algumas ideias expressas por quem
teve conhecimento de primeira mão com o caso do índio do buraco. Primeiro,
temos o que disse Fiona Waston, investigadora da ONG Survival International.
Ela afirma que esteve no local em 2005 (WATSON, 2005). Adverte que se alguém
chegasse muito perto dele, ele receberia essa pessoa a flechadas, como ocorreu
com Tunio, que trabalhava para a FUNAI. Diz que foram encontrados vários
instrumentos fabricados por ele. Literalmente, ela disse que "a FUNAI tem
o dever de mostrar que ele está bem vivo", pois "o fato de ele estar
ainda vivo nos dá esperança".
Reel (2010b) disse
que "a história nos oferece poucos exemplos de pessoas que podem
rivalizar-se com sua [do índio do buraco] solidão em termos de duração e de
grau. O que se aproxima mais é 'a mulher solitária de San Nicolas' — uma mulher
indígena localizada por um caçador de lontras em 1853 inteiramente sozinha em
uma ilha da costa da Califórnia. Padres católicos que enviaram um barco para
buscá-la disseram que ela tinha estado sozinha por no mínimo 18 anos, como
última sobrevivente de sua tribo. Mas, os detalhes de sua sobrevivência nunca
foram efetivamente contados. Ela morreu poucas semanas após ser
'resgatada'". O caso brasileiro do índio do buraco é realmente sui
generis. Não é para menos que tenha despertado tanta atenção da mídia
brasileira e da internacional. Não é para menos que seja um caso muito
interessante para os linguistas refletirem sobre o que é língua viva e língua
morta. É interessante para o próprio conceito de língua. Last, but not least, é interessante pois é um soco no nosso
estômago para mostrar uma espécie de penúltimo suspiro de povos autóctones
diante da invasão dos europeus: um homem aglota, devido à destruição de seu
ecossistema linguístico: povo, território, língua.
Referências
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Coordenador regional da agência indígena da Funai, estado de Rondônia
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"Corumbiara" (documentário), 1997.
COMELLAS-CASANOVA,
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NOTA: Hoje, 25/10/2022, vejo a notícia de que o Índio do Buraco morreu. Eis a notícia:
Enterro do ‘índio do buraco’, que viveu isolado por duas décadas, se transforma em impasse (msn.com)
https://www.msn.com/pt-br/noticias/brasil/enterro-do-%C3%ADndio-do-buraco-que-viveu-isolado-por-duas-d%C3%A9cadas-se-transforma-em-impasse/ar-AA13llA9?ocid=msedgdhp&pc=U531&cvid=5272fe2dfaa14e82a6b4bd038fef793a
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