0. Observações preliminares
À primeira vista parece que não há
nada de comum entre ecologia e linguagem. No entanto, quando relacionamos o
domínio do público com o do privado, verificamos que têm mais a ver um com o
outro do que suspeitávamos. Assim sendo, o que pretendo fazer neste capítulo
inicial é tentar mostrar que é na privada (=banheiro público) que podemos
verificar o nível de desenvolvimento, de harmonia entre o público e o privado.
Tentarei mostrar que o tratamento que se dá à privada revela o grau de
consciência, de coesão e de harmonia social de uma coletividade. Coesão e
harmonia são, ao fim e ao cabo, uma espécie de contrato social tácito, um
conjunto de regras mínimas de convivência que permitem a interação não
antagônica entre os indivíduos que a compõem. Em resumo, elas são a linguagem
que permite a comunicação entre esses indivíduos. Toda a argumentação terá por
base a sociedade brasileira, embora o que disser se aplique também a outros
povos, como os latinos em geral, os africanos e outros. Obedecerei a seguinte
ordem na exposição: primeiro apresento alguns fatos que têm a ver com o assunto
em questão, com algumas de suas conseqüências; em seguida sugiro três tipos de
explicação para tais fatos para, finalmente, tirar algumas conclusões.
1. Os fatos
Começo com o caso dos chamados
farofeiros de São Paulo na Praia Grande, muito bem descrito por Leirner (1990).
Trata-se da população pobre de São Paulo e adjacências que desce em massa a
serra em seus carrinhos velhos levando frango com farofa (daí o nome), latas de
refrigerantes e às vezes frutas. Como só ficam na praia um único fim de semana
ou até mesmo um único dia, praticam um turismo predatório, deixando atrás de si
apenas a sujeira. Não contribuem em nada para a economia local. É claro que
isso ocorre em todo o litoral brasileiro, mas os farofeiros paulistas
sobrepujam numericamente qualquer similar no país e talvez até mesmo no mundo
inteiro.
Um outro exemplo, que vivenciei
pessoalmente, foi o dos campistas de Rio Quente, próximo a Caldas Novas, Goiás.
Eles partem de Brasília, Goiânia e outras cidades das redondezas e enchem toda
a margem do Rio Quente. Até aí não há nada de extraordinário. Acontece que não
só jogam todo o lixo ao lado da barraca como também praticam atos
inacreditáveis para um europeu ou um japonês. Na mesma água em que tomam banho,
lavam pratos e panelas com restos de comida, jogam cascas de frutas, lavam o
cocô do neném e toda a roupa suja. E por banho não se deve entender apenas
mergulhar na água, mas banho mesmo, ou seja, eles se ensaboam, passam
"shampoo" nos cabelos e tomam seu banho completo. Saem
"limpinhos", "cheirosos", com odor de sabonete e
"shampoo". Quanto se interpela um deles sobre o fato, explicam que a
água é corrente, leva tudo embora. Esquecem-se (esquecem-se?) apenas de que lá
mais embaixo há outros acampamentos, outras pessoas querendo banhar-se na água.
Só pensam (pensam?) no que querem fazer, isto é, divertir-se. Por outras
palavras, jogam os dejetos não só no acampamento e adjacências mas também na
própria água, que é o motivo de estarem ali.
Nos ônibus interurbanos em geral
lia-se o seguinte aviso: "É proibido aos passageiros fumar charuto,
cachimbo ou cigarro de palha bem como utilizar aparelho sonoro". A ironia
dessa restrição está no fato de os passageiros de ônibus via de regra não
fumarem nem cachimbo nem charuto e de o cigarro de palha já estar praticamente
extinto. No entanto, cigarro é
permitido fumar. Assim, quando o veículo estaciona num posto de serviço à beira
da estrada, vemos "damas" e "cavalheiros" irem ao bar,
tomar seu cafezinho e voltarem para dentro do carro, com todas as janelas
fechadas, a fim de dar umas belas tragadas. Que prazer! Quando o veículo está
em movimento nem se diz. Sempre haverá alguém fumando, com todas as janelas
fechadas por causa do vento frio. São os fumantes ativos, alguns poucos
passageiros, que obrigam a maioria a ser fumantes passivos. Caso
contrário, os incomodados que se retirem. O mundo é dos que não têm educação.
Eles pensam (pensam?) que podem fazer tudo que quiserem, em qualquer lugar e
hora. Quem ousar reclamar é que será tido como chato, inconveniente, fora da
ordem.
Outra ironia é que nos ônibus urbanos,
circulares, já era terminantemente interditado fumar. E aqui tanto o motorista
quanto o cobrador zelavam pela obediência à interdição. Acontece que nesses
ônibus o passageiro permanece, no máximo, uns 40 a 60 minutos, enquanto que nos
ônibus interurbanos se fica às vezes até mais de 72 horas. Além do mais, os
urbanos são muito mais arejados. Enfim, tudo isso demonstra uma inconsciência
tanto dos passageiros quanto das autoridades que deveriam zelar pelo bem comum,
aí incluído o direito à saúde dos pulmões dos não fumantes (os fumantes não se
preocupam nem com os próprios pulmões nem com os dos outros).
Se alguém pensa que isso ocorre só em
ônibus, onde via de regra só viaja o povão, está redondamente enganado. São
incontáveis as vezes em que eu estava viajando de avião na área reservada aos
não fumantes. De repente sentia fedor de fumaça no ar. Olhava para os lados e
via um "cavalheiro" muito bem vestido, com pasta de executivo, de
terno e gravata, todo escovadinho, fumando tranqüilamente o seu cigarrinho. Às
vezes eu pedia à aeromoça para tomar providências. Em pelo menos numa dessas
ocasiões que ela lembrou ao poluidor, com a maior educação, que ali era a área
reservada aos não fumantes, o indigitado "cavalheiro" fez de conta
que não ouviu nada. Quem sabe ele era um homem "importante"! Para que
deixar de ter o seu prazer só porque uma mera aeromoça lho pedia!? "Você
sabe com quem está falando?". E lá continuou o "chaminé
ambulante" -- vulgo chambu -- como veremos abaixo, poluindo os
pulmões dos outros passageiros.
Poderia enumerar outros casos
indefinidamente. Por exemplo, temos o caso do parlamentar que não queria
afivelar o cinto, atrasando o avião, causando um constrangimento geral e
atrasando a decolagem da aeronave. Ou então o do ministro da sinistra ditadura
militar que obrigou um avião de carreira dos EUA para o Rio de Janeiro a
desviar sua rota a fim de deixá-lo em Brasília. Em outros contextos isso não
seria considerado seqüestro? Não podemos esquecer também o caso dos fumantes
que não só poluem os recintos fechados (bares, restaurantes, etc.) mas até
mesmo elevadores, como verifiquei diversas vezes em um conjunto residencial de
classe média alta em Brasília. Um amigo me disse que essas pessoas têm
consciência de ameba.
Um outro caso que não poderia deixar
de lado é a questão do som. Muita gente hoje em dia gosta de sons com vários
decibéis, para arrebentar os tímpanos. E o que é pior, obrigando os vizinhos ou
seja lá quem for que tenha o azar de
estar por perto ouvir os mesmos ruídos. Freqüentemente esse tipo de
gente estaciona seu carro próximo a um aglomerado de pessoas, levanta a tampa
do porta-malas para liberar os alto-falantes (alguém disse que têm um trio
elétrico no carro) e começam a poluir os ouvidos de todo mundo, de quem gosta e
de quem não gosta. Não se dão ao trabalho de verificar se o lugar é adequado
para tal tipo de poluição ou não. Simplesmente querem curtir o seu sonzinho
(som?).
O homem rural, por ignorância, faz
queimadas, desmata todo o ambiente, destruindo fauna e flora a fim de atingir
seus objetivos o mais rápido possível (diga-se, entre parênteses, que ele não
conhece outra alternativa). O homem urbano picha todas as paredes e indicações
de logradouros, depreda orelhões, caixas de correio e tudo que estiver nas vias
públicas. As indústrias, a fim de obter lucros mais rápida e facilmente,
despejam seus dejetos nos rios, nos lagos, na terra e no ar sem nenhuma medida
de prevenção. Em geral são multinacionais que em seus países de origem adotam
medidas rígidas de controle da poluição devido às severas sanções legais. Desse
modo, a Alemanha dispõe de córregos, que passam dentro de cidades, com águas
inteiramente cristalinas. No rio Reno hoje já vivem alguns peixes. Isso apesar
de a Alemanha inteira ser mais ou menos do tamanho de Minas Gerais e ter uma
população quase igual à brasileira e um número de indústrias muito superior ao
nosso. O rio Tietê e o Pinheiros, em São Paulo, ou o Arrudas, em Belo
Horizonte, são verdadeiras cloacas.
Por fim, temos fatos sociais e
sócio-econômicos que se alinham na mesma ordem dos até aqui apresentados. Entre
outros, poderia citar a corrupção administrativa, os crimes de colarinho
branco, estreitamente associados à impunidade. Aliás, corrupção e impunidade
estão tão associados entre si que até poderíamos sugerir a expressão
abreviadora corruptunidade. Freqüentemente isso ocorre sob o manto
protetor do autoritarismo, de modo que poderíamos sugerir a abreviação autorrupto,
ou seja, o híbrido de autoritário + corrupto. É o que prevaleceu durante a ditadura
militar, como todos nós sabemos. No entanto, recentemente tivemos o caso do
larápio-mor, Paulo César Farias -- o PC --, e seus receptadores, dentre eles o
próprio presidente da república de então, Fernando Collor de Mello e
família/quadrilha. Felizmente o poder legislativo e o judicário deram um
"basta" nisso, pela primeira vez na história do Brasil.
Poderíamos citar também o caso do
ASPONE, com seu supersalário, ao lado do salário de fome do trabalhador
humilde. As gordas verbas de representação que enchem de dólares as burras de
burocratas desnecessários. Para não me alongar em demasia, cito, por último, as
super-aposentadorias duplas, triplas, quádruplas, todas com dinheido do
contribuinte, é claro, e a "máfia do orçamento" que sob o comando do
ex-deputado espertalhão João Alves desviou milhões de dólares para as contas
particulares do próprio e dos amigos. Felizmente o Congresso Nacional alijou
alguns deles, deixando outros impunes por razões inteiramente políticas. Nenhum
deles está na cadeia. Tudo isso é depredação do bem público. Ou seja, os
maiores depredadores são os membros da elite.
Por fim, para mostrar o grau
paroxístico a que chegou o espírito predatório no Brasil gostaria de falar de
uma delinqüência relativamente recente. Trata-se do ato de riscar a pintura de
carros estacionados em vias públicas. Quanto mais novo o carro, mais atrativo
fica para ser riscado. Pois bem, qual é o sentido disso? Quando alguém rouba
algo que lhe é útil de alguma forma dá para entender, embora não para justificar.
Riscar gratuitamente a pintura de um veículo não traz nenhuma vantagem ao
delinqüente. Só demonstra que a sociedade brasileira está doente. Que os
indivíduos que perpetram tais atos estão doentes. Pessoas sãs física e
mentalmente (mens sana in corpore sano) não prejudicariam outrem pelo
simples prazer de prejudicar. Isso apenas mostra que esses vândalos precisam de
um tratamento psicanalítico, para não dizer psiquiátrico (ou será que de
cadeia!).
Tudo que vimos até agora tem suas
causas e conseqüências. As causas serão discutidas em 2.0 a 2.3. O que vou
fazer agora é mostrar algumas conseqüências imediatas de tais comportamentos e
atos. Em primeiro lugar, como sabemos que ninguém respeita a sinalização de
trânsito, mesmo que não esteja pichada, colocamos quebra-molas na rua em
vez de placas indicadoras da velocidade conveniente. O quebra-molas é, assim, a
placa indicadora de baixa velocidade para irresponsáveis e para quem quer
sempre levar vantagem (ver abaixo!). A sua presença nos leva à conclusão de que
o brasileiro só obedece às leis da física.
Seria interessante abrir um parêntese
para dizer que "quebra-molas" é o nome popular, o que existe no
paralelo. A nível oficial, ele é chamado de "lombada",
"saliência" e até mesmo de "redutor de velocidade".
Trata-se de nomes cultos para um fenômeno que deveria envergonhar qualquer
pessoa consciente e civilizada.
Devido à vigência de fatos como os
acima apresentados (e há vários outros do mesmo jaez) no Brasil os indivíduos
são compelidos a procurar soluções individuais para tudo, inclusive para
sobreviver. Na economia, por exemplo, são obrigados a se virarem como podem,
transformando-se em camelôs, em sacoleiros, em barraqueiros de beira de
estrada, etc. São obrigados a construir barracos nos terrenos baldios do centro
e dos arredores das cidades. Com isso as ruas ficam intransitáveis,
literalmente infestadas de barracas de vendedores. Ainda nas ruas temos os
tomadores de conta de carros que, segundo uma amiga, "lotearam a
cidade". Eles são seus donos, pois não podemos estacionar nossos carros na
rua sem sua autorização. Isso para não falar nos mendigos que se apresentam aos
montes junto a qualquer sinal de trânsito para solicitar alguns trocados aos
motoristas. A nível da instituição jurídica, surgem legalidades paralelas.
Assim, os traficantes já tomaram conta do Rio de Janeiro, o poder público é
impotente diante de seu domínio. Nas favelas eles são o poder judiciário,
legislativo e executivo (pois executam quem incomoda) e policial.
Como sabemos que ninguém respeita as
leis -- freqüentemente feitas por autoridades biônicas e corruptas --, criamos
leis e, mais freqüentemente decretos, em profusão, às vezes até em excesso, nas
quais se incluem leis que revogam leis e/ou que modificam parcial ou totalmente
outras leis. Mudamos as regras do jogo a todo instante, criando um verdadeiro
cipoal ou labirinto que impede o acesso das pessoas humildes à lei. Raramente o
brasileiro médio faz valer seus direitos diante do arbítrio. Se alguém lhe diz
"Não pode!", ele se conforma e vai cabisbaixo para casa. Os ricos
podem dar um jeitinho, pois em geral têm em seu círculo de amizades
alguém com QI (=quem indica) -- em geral com baixo QI (=quociente de
inteligência) -- que pode quebrar o galho para eles. Afinal, temos o
lema segundo o qual para os amigos tudo, para os indiferentes a lei e para
os inimigos cadeia.
O que se constata diante do estado de
coisas sumariado acima é que nos encontramos num estado de desagregação social
generalizado, em que vale o lema cada um para si e Deus para todos. Em
outros termos, é o individualismo elevado a um grau paroxístico que
freqüentemente confundimos com liberdade individual, com solidariedade e até
cordialidade (cf. HOLANDA 1979). Não passa pela nossa cabeça que onde cada
indivíduo faz o que bem entende prevalece a lei do mais forte, como na
natureza e entre os animais. Daí a única lei posta em prática ser a lei de
Gérson (=levar vantagem) e as únicas leis respeitadas serem as leis da
física.
Se não me engano foi Otto Lara
Resende quem disse que o mineiro só é solidário no câncer. Pois eu diria
que o brasileiro só é solidário no futebol, no carnaval, na cerveja e na
família. Freqüentemente os quatro estão juntos numa mesma entidade, a intimidade.
Certa feita um holandês que andava comigo pelas ruas de Florianópolis, e que
acabara de ser agredido verbalmente por um motorista, notou que no Brasil as
pessoas conhecidas e amigas são como membros da família. Os transeuntes na rua,
no entanto, são como adversários, inimigos. Os pedestres não respeitam os
lugares para atravessar a rua (as faixas para pedestres) e os motoristas
aceleram seus carros para que aqueles corram ao atravessá-las. Temos a
impressão de que os motoristas querem assassinar os pedestres e de que estes se
jogam na frente dos carros como que querendo se suicidar, embora isto esteja
começando a mudar, como se vê nas faixas de pedestre começaram em Brasília.
O caos em que se transformou a
sociedade brasileira parece aquela casa que não tem pão, em que todos gritam
ninguém tem razão. Parece que estamos no período pós-queda da Torre de
Babel. Cada um fala sua linguagem própria, procede como bem entende, sem levar
em conta que seu direito termina onde começa o direito do outro. As pessoas não
são o próximo, como manda o cristianismo, mas o adversário, o
antagonista, o concorrente que precisa ser deixado para trás e, às vezes, até
mesmo eliminado. Cada um diz o que quer e como quer -- desrespeitando os
princípios sine qua non da teoria da comunicação. O principal deses
princípios afirma que para que uma mensagem enviada por um emissor a um
receptor seja decodificada é necessário que estaja formulada em um código
comportilhado por ambos. Trocado em miúdos, isso simplesmente quer dizer que
para que alguém entenda o que eu digo é necessário que eu o diga numa linguagem
que ele conheça. Se falar em chinês a um roceiro brasileiro que só conhece a
variedade rural do português, ele não me entenderá. Mas isso está ocorrendo
porque todos querem falar e ninguém quer ouvir.
Chegamos ao um ponto em que parece
que quem não incomoda ninguém e não quer ser incomodado é que está fora de
contexto. Sempre que alguém reclama do barulho vindo do apartamento vizinho
(som excessivamente alto, arrastar móveis de madrugada, gritaria nos
corredores, etc.) é considerado um chato. Como cada um pode fazer o que bem
entende, parece que a norma é a ausência de normas.
Sumariando, pode-se dizer que
chegamos a um grau de desagregação social em que cada indivíduo só quer falar
mas não ouvir. Mesmo quando ele finge que está ouvindo, não entende o outro,
mesmo porque não têm uma linguagem comum. A forma externa da linguagem pode até
ser a mesma, porém a forma interna, a significação das palavras, não é a mesma
para todos. Cada um atribui um valor (aquele que lhe é favorável) às palavras.
Com isso eles não se comunicam. Quando muito falante e ouvinte fingem que estão
se entendendo, sobretudo quando não se tratar de interesses pessoais muito
grandes. Em tais circunstâncias teríamos diálogo, mas de surdos.
2. Explicações
Todos os distúrbios, perturbações e
ruídos (no sentido da teoria da comunicação) acima vistos são exemplos de poluição.
Portanto, faz-se necessário defini-la e tipificá-la antes de entrarmos nas
explicações propriamente ditas. Como salienta Médici (1983), remetendo a Marx,
a poluição surge da relação do homem com a natureza, da sua intervenção nela.
Ela é, portanto, um fenômeno social, não natural. Não tem sentido afirmar-se
que um corpo celeste inabitado e intocado pela mão do homem ou de qualquer
outro ser vivo esteja poluído. Este caráter de social já justifica sua
associação com a linguagem.
O homem primitivo, bem como os
animais irracionais, retirava seu sustento diretamente da natureza. Como havia
ainda pouca gente em muito espaço, os estragos eram logo assimilados por ela.
Com o aumento da população e o refinamento nos meios de produção dos bens de
consumo, os estragos na natureza passaram a atingir níveis intoleráveis em
termos de habitabilidade, de qualidade de vida. Em suma, a poluição está sempre
associada à idéia de produção e progresso (cf. Buarque 1983). Para que haja luxo haverá
também lixo, para usar a antinomia de Denner, o falecido especialista em
alta costura. Enfim, temos aí alguns argumentos preliminares para associar
ecologia e linguagem: ambas são produzidas pelo homem em sua luta pela
subsistência, logo ambas são de natureza social.
Partindo da idéia de que quem faz a
história é o homem na sua práxis social de produção dos meios de subsistência,
verificamos que ele produz não só artefatos, mas também linguagem (Rossi-Landi
1985). Assim, temos o lixo como subproduto no caso dos primeiros e as
ambigüidades, os deslizes, os "erros" no caso da segunda (Couto
1987b). Diante disso, defino poluição como o lado ruim e quase inevitável de
qualquer coisa ou atividade. É uma definição que não se encontra no
Aurélio, em que pese o respeito que tenho por ele, como seria de esperar por parte daqueles que pensam que
quem faz a língua são alguns "mestres" iluminados e não a
coletividade em sua luta para produzir os meios de subsistência (cf. A
Ideologia Alemã, de Marx/Engels!). Segundo essa opinião, toda expressão
nova só pode ser usada se tiver a chancela de um desses "mestres"
(Houaiss, Aurélio, Napoleão Mendes, etc.) que chamei de "coronéis da
língua" alhures, numa fase de lutas acirradas contra o arbítrio no Brasil
e na UnB (Couto 1987a).
Segundo a concepção de poluição
proposta acima, temos diversos tipos de poluição. O primeiro deles é a poluição
ambiental, pelo que se entende o ambiente natural (terra, ar, água). É a
poluição propriamente dita. Apesar de se tratar de maus tratos à natureza ela
é, como concepção, social, como já vimos acima. Os outros tipos de poluição
(poluição não-ambiental) são de cunho exclusivamente social. Daí sua ligação
mais íntima com a linguagem, índice por excelência de socialidade. Podemos
falar em poluição econômica (inflação, etc.), poluição corporal
(doenças, etc.), poluição mental (neuroses, psicopatias, etc.), poluição
sexual (doenças venéreas, AIDS, etc.), poluição administrativa
(corrupção, mordomias, etc.), poluição militar (golpes, etc.), poluição
de poder (autoritarismo, arbítrio, desmandos, etc.; cf. o "entulho
autoritário" da política brasileira da passagem da ditadura militar para o
regime democrático!), poluição sócio-econômica (miséria, fome, etc.), poluição
de trânsito (congestionamentos, etc.), poluição de convivência (lei
de Gérson, etc.), poluição na linguagem (ambigüidades, mal-entendidos,
etc.) e inúmeras outras.
Dos diversos tipos elencados no
parágrafo anterior, a poluição lingüística parece ser a mais difícil de se
entender à primeira vista. Por isso, gostaria de qualificá-la um pouco mais.
Assim temos, por um lado, a comunidade de falantes, que é a coletividade
brasileira como um todo. Ela produz não só objetos de consumo mas também
linguagem, como vimos com Rossi-Landi (1985). Por outro lado, temos os
"coronéis da língua" (gramáticos, filólogos, escritores clássicos e
outros) que tentam nos impingir a idéia de que eles é que podem determinar o
que é "certo" e o que é "errado". Do entrechoque das duas
tendências resulta uma ambigüidade, uma bivocidade e até uma multivocidade na
linguagem que interfere na (polui a) comunicação. Para dar só um exemplo, os
coronéis da língua decretaram que temos que distinguir entre "ir a"
(ir provisoriamente) e "ir para" (ir definitivamente). Como nenhum
falante faz essa distinção, eles tacham sua linguagem de "errada",
embora todo brasileiro diga "Eu vou para São Paulo" no sentido de
"ir para passear e voltar logo em seguida". Segundo esses coronéis, a
poluição lingüística seria o erro, que para eles é sempre cometido pelos
falantes não cultos. Em COUTO (1985) demonstrei que, pelo contrário, são as
pessoas presumivelmente cultas que cometem erros de linguagem. Assim
procedendo, os donos da língua criam dificuldades para vender facilidades.
2.1. Explicação psicanalítica
Eu não sou especialista em
psicanálise, mas a pouca leitura que fiz em seu domínio me levou à conclusão de
que ela oferece uma alternativa de interpretação para os fatos apresentados
acima e outros semelhantes. Segundo a teoria psicanalítica, o desenvolvimento
da sexualidade apresenta três fases: a oral, a anal e a fálica. Cada uma delas
apresenta subfases. O que interessa aqui é a segunda fase, a fase anal.
Ela "é o momento da evolução infantil onde cobra importância o dar, o
expulsar, reter. Fezes são de início muito mais do que uma sujeira a ser
escrupulosamente escondida. São presentes ou são instrumentos agressivos,
projéteis perigosos". Mas, como disse, ela apresenta duas subfases.
"A primeira fase anal, onde o prazer expulsivo domina, leva a um caráter
especialmente violento, que despreza o outro, que tende a expulsar de si todos
os aborrecimentos, intolerantes a frustrações e limites. A marca da fase anal
retentiva, a segunda, é ao contrário uma espécie de cautela excessiva, timidez,
respeitoso temor por ordens e hierarquia, meticulosidade exagerada"
(Hermann 1983: 62-64). Nas pessoas ditas normais, todas as três fases, com suas
subfases, teriam sido superadas. Elas chegariam à fase fálica, a última,
num processo evolutivo regular (cf. também Freud 1978 e Reich 1983).
De acordo com o ponto de vista
psicanalítico, os farofeiros da Praia Grande, os campistas de fim de semana de
Rio Quente, os depredadores, os vândalos, os corruptos, enfim, todos aqueles
que agridem o meio ambiente (tanto o natural quanto o social) não superaram a
primeira subfase da fase anal de desenvolvimento, ou seja, a fase anal
sádica, segundo Freud (1978: 205). Segundo essa concepção, os poluidores,
os aproveitadores, os oportunistas, os aplicadores da lei de Gérson, enfim, os
poluidores em geral, literalmente defecam e urinam no meio ambiente e nos
outros. Com efeito, eles jogam todo tipo de dejetos sem olhar para onde, tal
qual o gorila do jardim zoológico que fica enfezado com as pessoas que mexem
com ele lá em sua jaula. Os freqüentadores do Rio Quente, os farofeiros e todos
aqueles que jogam sujeira pela janela para limpar a própria casa estariam,
segundo esta concepção, procedendo como o bebê que ainda se encontra na fase
anal sádica, ou anal-expulsiva, segundo Hermann (1983: 63-64). Dito de outro
modo, os brasileiros em geral estariam apenas a nível dos bebês ou dos gorilas,
no que se refere ao desenvolvimento da consciência social.
A interpretação psicanalítica
coincide com uma das visões do senso comum. Na matéria em que descreve a ação
dos farofeiros, Carla Leirner menciona uma interpretação parecida. Segundo ela,
"há quem as considere (as pessoas farofeiras) o retrato acabado de tudo
aquilo que o Brasil possui de pior em matéria de boas maneiras, de higiene e de
falta de charme, elas são o supra-sumo do brega, a gentinha cafona que suja as
praias, a malta que não conhece o seu lugar" (Leirner 1990: 18). Esta é,
pelo menos, a opinião que as classes privilegiadas têm dos fatos mencionados.
Mas, será que estas superaram a fase anal? Veremos abaixo que não.
Há uma outra fonte independente que
comprovaria a explicação psicanalítica. É a da aquisição da linguagem. Sabemos
que esta passa por etapas também. Na primeira fase da primeira etapa, ou seja,
no início da aquisição ontogenética (e, provavelmente também da filogenética)
da linguagem, o indivíduo sofre estímulos do mundo exterior. Com a repetição,
tais estímulos se fixam na memória da criança, sob a forma de impressões. Essas
impressões recebem o nome de perceptos, pois são como que unidades de
percepção. Com a intensificação da relação da criança com o objeto percebido,
ocorre um salto qualitativo. Ou seja, ela aprende que os outros (a mãe, os
irmãos, o pai, etc.) também se comportam como ela frente ao objeto de suas
impressões. Nesta fase ela se dá conta de que há um som associado ao objeto e
passa a reproduzi-lo. Trata-se, portanto, não mais de mero percepto, mas de um conceito.
Em suma, a linguagem surge no momento da socialização da criança (Bickerton
1981: 221-234). Como se vê, os depredadores, os poluidores estão apenas na
primeira fase de desenvolvimento da linguagem, fato eminentemente social. Eles
ainda não têm domínio da linguagem coletiva, ainda não estão socializados. Cada
um fala como quer, cada um faz o que quer, ignorando por completo o direito do
outro. Ainda não chegaram à fase do conceito que, etimologicamente é cum+captum
(captado com, percebido com). Cada um tem sua representação individual do mundo
e como tal age. Cada um tem sua linguagem individual (se é permitido falar
assim), não há uma linguagem comum, coletiva.
Há uma corrente filosófica que
considera a linguagem como primordial e primariamente meio de expressão do
pensamento, como a de Comsky (1972) e seguidores/predecessores (cf. também
Bickerton 1981). Para os adeptos dessa corrente, sobretudo para a chamada
gramática gerativa, de filiação platônica e cartesiana, a língua é um mero
sistema de regras que permitem ao indivíduo formar frases corretas,
independentemente de serem adequadas a determinada situação de comunicação ou
não. Enfim, eles deixam de lado uma dimensão importantíssima da linguagem em
geral e da língua em especial, qual seja, o uso. Assim, é claro que os
indivíduos que praticam os atos mencionados acima têm na cabeça todas as regras
para formar frases. Acontece que não sabem usá-las, e por isso não se
comunicam. Não basta ter o instrumento; é necessário saber manuseá-lo. Se os
partidários da gramática gerativa tivessem razão, os fatos narrados acima
estariam justificados. No entanto, a linguagem é basicamente um meio de
comunicação, embora seja também um meio de expressão do pensamento individual.
A única possibilidade de existência de uma linguagem é em uma comunidade. Tanto
que as duas se pressupõem mutuamente: não há comunidade sem uma linguagem que a
unifique bem como não há linguagem sem uma comunidade que a produza e a use. A
linguagem só surge com a socialização. Assim sendo, quanto mais coesa uma
comunidade, mais coesa será sua linguagem, ou seja, todos atribuirão o mesmo
significado às palavras e haverá um mínimo de mal-entendidos. Não se dará o que
foi narrado acima sobre a situação brasileira, em que cada um quer se expressar
-- como quer e bem entende -- sem levar em consideração o outro. Cada um
procurará se expressar de modo a ser entendido pelos outros, levará em conta o
outro, a sociedade. A linguagem é expressão do pensamento, mas o próprio
pensamento é formado coletivamente. Portanto, aquilo que o indivíduo expressa é
algo eminentemente social. Os próprios significantes -- as
"palavras", em termos laicos -- que ele usa foram criados pelos
membros de sua comunidade que o precederam. Não há como fugir à socialidade da
linguagem.
Cláudia Raia, uma atriz
presumivelmente bem informada, também ignora que a linguagem é socializada.
Segundo ela, quando um motorista de táxi lhe pede para não fumar dentro de seu
veículo, por não ser fumante, está tolhendo a liberdade que ela tem de fumar.
Os não fumantes seriam patrulheiros, pois não lhe permitem poluir seus pulmões.
Nas suas palavras, "os que não fumam querem me proibir de fumar, sem mais
nem menos. Não se trata de gente preocupada com minha saúde. Os patrulheiros do
antitabagismo não me conhecem, não freqüentam minha casa, não são meus credores
e não lhes devo nada" (RAIA 1990: 102). Ignorando o fato de um amigo me
ter dito que ela parece ter o cérebro nas nádegas, nota-se claramente que de
acordo com a psicanálise ela não superou a fase de desenvolvimento infantil
anal-expulsiva (ou anal-sádica). Ela acha que para ter sua liberdade individual
respeitada, deve poder jogar baforadas na cara de qualquer um que tiver o azar
de se encontrar perto dela. Do ponto de vista da aquisição da linguagem,
portanto, ela ainda não superou a fase individual, infantil do percepto. Ainda
não se socializou, pré-requisito fundamental da linguagem. "Le monde c'est
moi', segundo sua lógica glútea.
É bem verdade que tanto fumantes
quanto não-fumantes têm direitos. Acontece que, do ponto de vista da interação
do homem com a natureza, o direito dos não-fumantes deveria prevalecer, pelo
menos numa coletividade em que houvesse uma consciência social marcante. Com
efeito, o exercício do direito dos não-fumantes não polui o ambiente, logo não
prejudica a saúde de ninguém. Já o exercício do direito dos fumantes prejudica
a saúde de todos que são obrigados a conviver com eles, polui todo o ambiente.
Trocado em miúdos, o exercício do direito dos fumantes constrange os
não-fumantes a serem fumantes passivos. Qualquer pessoa tem o direito de
prejudicar a própria saúde. Tem o direito inclusive de se suicidar. Tanto assim
que freqüentemente se ouve alguém dizer que o lembrete legal, nos anúncios de
cigarros, de que o fumar prejudica a saúde lhe excita a vontade de fumar.
Trata-se de auto-poluidores conscientes. No entanto, a natureza - para não
dizer a sociedade - diz que eles não têm o direito de prejudicar a saúde do
outro.
Certa feita ouvi alguém dizendo que
se deveria liberar as drogas e proibir o cigarro. Segundo essa pessoa, quem
toma cocaína prejudica só a si mesmo, ao passo que quem fuma prejudica todos
que estejam por perto. A mesma pessoa sugeriu um nome para os fumantes
inconscientes. Segundo ela, estes deveriam ser chamados chambus (chaminés
ambulantes) ou candeas (canos de descarga ambulantes).
Acrescentou ainda que, pessoalmente, prefere o primeiro nome, por ser mais
eloqüente do ponto de vista fonético. Mas,
voltemos à questão psicanalítica.
Tudo parece muito bem explicado.
Ninguém negaria as associações feitas acima, ou seja, o associar o
comportamento individual do adulto com o da criança em determinada fase de
desenvolvimento. Acontece que a psicanálise foi criada para explicar "a
vida psíquica do homem tornado ser social", isto é, do homem enquanto indivíduo.
Portanto, ela não serve para interpretar fenômenos sociais. Ela "pode
desempenhar, relativamente à sociologia, o papel de ciência auxiliar, por
exemplo sob a forma de psicologia social". Têm razão aqueles que
"criticam os psicanalistas por quererem explicar o que, com a ajuda deste
método, não é explicável" (REICH 1983: 20). A explicação para tais
fenômenos tem que partir de uma das ciências sociais, nas quais se inclui a
ciência da linguagem.
2.2. Interpretação
histórico-determinística
Uma interpretação muito freqüente
para o caos, a desagregação social, enfim, a falta de uma linguagem comum que
permita a intercompreensão entre nós sem agressão ao meio ambiente (natural e
social) se enquadra num determinismo histórico. Interessantemente, é essa visão
que o leigo em geral tem do fenômeno em questão. Mais interessante ainda, essa
interpretação tem muito a ver com a psicanalítica.
O determinismo histórico explica o
estado de coisas que vemos hoje no Brasil associando-o ao fato de termos sido
colonizados por Portugal. Se tivesse sido a Inglaterra ou a Holanda (que bem
que o tentou lá em Pernambuco) a realidade seria bem diferente. Encontramos
este ponto de vista defendido não só por leigos e pelo senso comum. Grande
parte dos estudos clássicos de interpretação da realidade brasileira também o
perfilha. Um deles é, por exemplo, o de Holanda (1979). Segundo esse autor, o
individualismo, o personalismo, enfim, "a falta de coesão em nossa vida
social...de lá veio", ou seja, de Portugal. Como conseqüência, "o princípio
unificador foi sempre representado pelos governos", isto é, "por uma
força exterior respeitável e temida" (p. 4-9). Para ele, o que move o
brasileiro no que se refere à busca de um objetivo comum não é a cooperação,
mas talvez mesmo uma rivalidade, embora tenha sugerido os conceitos de
"cooperação" e
"competição" (p. 30). A rivalidade seria o lado antagônico da competição. No entanto, veremos abaixo que
tais conceitos não opõem portugueses e espanhóis, por um lado, e ingleses e
holandeses, por outro lado. Tanto lá quanto cá temos os dois aspectos. Enfim,
partindo daí o autor procura explicar diversas facetas da vida social
brasileira. Uma delas é o mito da cordialidade do brasileiro. Ele demonstra que
toda manifestação tipicamente brasileira que é interpretada como cordialidade
não passa de mera fachada, para repetir o que Antônio Cândido disse no prefácio
a seu livro (cf. Gomes 1980).
Outro autor que tentou analisar o
caráter do brasileiro, por oposição ao do norte-americano, é Moog (1973). Enfocando
a questão de outro ângulo, também ele justifica o estado de coisas brasileiro
atual com base na colonização portuguesa. O Leitmotiv do livro é uma
tentativa de resposta à seguinte pergunta: por que "de repente, a certa
altura do século XIX entram os Estados Unidos a progredir em alucinante
progressão geométrica, enquanto o Brasil se arrasta numa simples progressão
aritmética?" (p. 44). Moog rechaça várias explicações, tais como uma
pretensa superioridade e pureza racial dos norte-americanos, fatores geográficos,
fatores econômicos como a presença do carvão, etc. Segundo ele, o motivo da
diferença deve ser buscado na maneira como se deram os dois processos de
colonização. O fator decisivo, o ponta-pé inicial da colonização inglesa estava
embebido em um espírito empreendedor, de origem calvinista. Além do mais,
"os primeiros povoadores das colônias inglesas da América, principalmente
os puritanos do Mayflower, não vieram para o Novo Mundo só ou
predominantemente em busca de minas de ouro e de prata e de riqueza fácil.
Vieram, isto sim, acossados pela perseguição na pátria de origem, em busca de
terra onde pudessem cultuar o seu Deus, ler e interpretar a bíblia, trabalhar,
ajudarem-se uns aos outros e celebrar o ritual de seu culto, à sua maneira. Ao
embarcarem, trazendo consigo todos os haveres, mulheres e filhos, deram as
costas à Europa, para fundar deste lado do Atlântico uma nova pátria, a pátria
teocrática calvinista" (Moog 1973:88).
A colonização portuguesa ter-se-ia
dado de modo diametralmente oposto. Vieram para cá não a elite, como os
religiosos do Mayflower, mas a escória da sociedade portuguesa, fazendo da
colonização do Brasil uma solução econômica para os presídios portugueses.
Vinham para cá, portanto, aventureiros, que sempre tinham na cabeça a idéia de
voltarem ricos e prestigiados para Portugal o mais rapidamente possível. Dentro
deste espírito, agiam aqui como predadores, a fim de se locupletarem em pouco
tempo. Tudo era para ser usado e abusado, não assimilado. Depredavam a natureza
à procura de minérios e outras riquezas. As mulheres nativas (índias e negras
trazidas como escravas da África) serviam apenas para satisfazer suas
necessidades sexuais. Assim que podiam, voltavam para Portugal, deixando-as
para trás, freqüentemente com uma imensa prole de mestiços. Daí adviria a
mentalidade machista segundo a qual toda mulher é uma parceira sexual
potencial, exceto naturalmente a esposa, a própria mãe, as irmãs e as filhas.
Enfim, a ausência de uma linguagem comum no Brasil seria conseqüência da colonização portuguesa, por
oposição à mentalidade calvinista que
enformou a colonização inglesa na América do Norte; seria a diferença entre uma
colonização feita pelo escol e uma colonização feita pela escória.
A presente interpretação é reforçada,
no senso comum, por um argumento aparentemente imbatível. Com efeito,
pergunta-se: "por que todos os países colonizados por Portugal e Espanha
são ainda hoje repúblicas-bananas, com generais dando golpes de estado a toda
hora, sendo que todo país colonizado pela Inglaterra (EUA, Canadá, Austrália, a
parte branca da África do Sul) pertence ao chamado primeiro mundo?". Sem
tentar responder essa pergunta, eu gostaria de pelo menos lembrar que os países
colonizados pela Holanda, que está no mesmo nível que a Inglaterra, também são
hoje do "terceiro mundo", subdesenvolvidos. Além disso, há vários
países colonizados pela Inglaterra também que são hoje subdesenvolvidos, como é
o caso da Guiana.
2.3. Interpretação dialética
Tanto a interpretação psicanalítica
quanto a histórico-determinística são verdadeiras parcialmente. Daí o perigo
que representam. Se fossem redondamente falsas seriam recusadas in limine
e não haveria problema nenhum. Acontece que são lobos na pele de cordeiro,
apresentam uma parte do fenômeno como se fosse o todo, ou seja, apresentam sua
aparência superficial, seu efeito, como se fosse a realidade interna, como se
fosse a causa verdadeira e única. A totalidade, as relações profundas do
fenômeno, ou seja, suas causas reais são silenciadas. É bem verdade que os
farofeiros paulistas e assemelhados bem como todos os depredadores e vândalos
agem como quem não superou a fase anal-sádica de desenvolvimento psíquico. É
bem verdade também que se o Brasil tivesse sido colonizado por calvinistas ingleses
ou pela Holanda a realidade seria diferente, inclusive em termos de fronteiras,
devido ao grau de desenvolvimento sócio-econômico a que chegaram bem antes de
Portugal e Espanha. Mas, isso é apenas uma pequena parte do problema. Assim
sendo, tais conclusões não são propriamente falsas, mas falazes, parciais,
logo, enganadoras. Tanto que coincidem até certo ponto, ou seja, ambas tentam
explicar o fenômeno por uma presumível imaturidade do brasileiro: imaturidade
psíquica, no caso da explicação psicanalítica, e imaturidade histórico-social,
no caso da explicação histórico-determinística.
Eu estou consciente das críticas a
que fica exposto quem ousa falar hoje em dia em dialética, por razões
inteiramente diferentes das que a estigmatizavam na época da ditadura militar.
Devo notar, no entanto, que os verdadeiros dialéticos nunca aceitaram os
regimes totalitários que se instalaram em nome da dialética no Leste Europeu e
em outras partes do mundo (já em 1961 Erich Fromm, entre outros, os condenava;
cf. Fromm 1970: 13-18). Assim, não importa que alguns intelectuais
(freqüentemente ex-marxistas) a considerem oportunisticamente ultrapassada. O
que levo em consideração é apenas o seu poder explicativo para os fenômenos
sociais. A verdadeira dialética do materialismo histórico e do materialismo
dialético é dinâmica, portanto não dogmática e estática como o arremedo de
dialética que se via na ex-União Soviética e em outros países que se
intitulavam socialistas, comunistas, marxistas.
Desde os Manuscritos Econômicos e
Filosóficos, passando pela Ideologia Alemã (em parceria com Engels)
até O Capital, Marx sempre enfatizou a liberdade do indivíduo, às vezes
até mesmo condenando o estado como seu opressor. Só que indivíduo para ele é o
indivíduo social, uma vez que sem a coletividade o próprio conceito de
indivíduo inexistiria. Valorizar o indivíduo não é o mesmo que criar
individualismos, personalismos. Estes privilegiam alguns poucos indivíduos,
personalidades, em detrimento da grande maioria dos indivíduos, que ficam
impessoalizados e esquecidos, à margem. Enfatizar o social, a totalidade, não é
o mesmo que criar totalitarismos. O primeiro equívoco foi cometido no Brasil,
entre outros países subdesenvolvidos e/ou de capitalismo selvagem. O segundo
tipo de equívoco foi cometido pela ex-União Soviética, entre outros países
"socialistas".
Na Ideologia Alemã, inter
alia, Marx formulou de maneira brilhante a causalidade da história. Segundo
ele, o primeiro ato histórico é a produção dos meios de subsistência. Ou seja, é
na práxis social da intervenção na natureza com o fito de produzir os bens de
consumo necessários à manutenção da vida humana que o homem começa a produzir
história. Tudo o mais é decorrência deste feito original e originário.
Intimamente ligada à produção está a distribuição dos bens de consumo. Numa
situação ideal, a produção depende da distribuição e a distribuição depende da
produção. Acontece que nos países em que domina a lei da competição, nem sempre
a distribuição está assim tão bem afinada com a produção. Pode ocorrer -- e
freqüentemente ocorre -- de haver uma grande produção ou um grande potencial de
produção, mas a distribuição ficar restrita a uma pequena parcela da
comunidade. E aí começam as desigualdades. É claro que as maiorias marginalizadas
percebem essa perversão e, freqüentemente, reagem à altura. Elas notam que os
privilegiados têm um poder de barganha muito maior, têm um poder expressivo
muito mais eficaz, muito mais persuasivo.
Como muito bem mostrou Rossi-Landi
(1985), o homem produz não só mercadorias, meios de subsistência física, mas
também linguagem. Logo, quem produz a linguagem é a mesma coletividade que
produz os próprios meios de subsistência. E o que é mais, a linguagem é parte
integrante tanto da produção quanto da distribuição dos bens de subsistência.
Por isso, não têm razão aqueles que acham que a força motriz da produção de
riquezas são os grandes homens empreendedores (sozinhos?) e a da linguagem os
gramáticos, os filólogos e os escritores clássicos (sozinhos, sem o povo?), os
"mestres". Enfim, para uma visão dialética ou, mais especificamente,
histórico-dialética, a causa do descalabro e do caos social em que vivemos está
intimamente ligada ao modo de produção e apropriação (distribuição) dos bens de
subsistência, ou seja, é sócio-econômica. Está ligada ao espírito de
rapinagem e predador do bem público e da natureza por parte das pessoas
privilegiadas, como os já mencionados larápios-mores P. C. Farias e João Alves.
Por que o povão se comporta como
crianças que estão na fase anal-sádica do desenvolvimento psíquico? Por que a
mentalidade individualista, predatória, ibérica, tem a ver com o atual estado
de coisas? Simplesmente porque tanto na época da colonização como hoje e tanto
na Inglaterra quanto na Holanda e na Península Ibérica (bem como alhures) os
bens de consumo são produzidos pela maioria, mas usufruídos por uma pequena minoria de privilegiados que
pensam como Cláudia Raia. Os colonizadores da América do Norte eram efetivamente
mais evoluídos economicamente do que os ibéricos. Construíram a nação mais rica
da face da terra, mas dizimando os índios e discriminando os negros, criando
uma das sociedades mais perversas do mundo. Ao lado das maiores fortunas
individuais do globo existe uma pobreza marginalizada, cujo conflito produziu
uma das sociedades mais violentas que se conhece. Enfim, tanto na época da
colonização como hoje, havia, tanto lá como cá, distorções sociais. Essas
existiam não só a nível nacional, mas também internacionalmente. Tanto assim
que Portugal foi sempre subjugado pela Inglaterra, desde a época da
colonização.
Dado o estágio mais avançado em que
se encontrava a Inglaterra, ela pôde subjugar as
nações mais fracas e com isso desenvolver-se mais intensamente do que elas. Com
isso, criou-se uma massa de bens de consumo muito maior do que permitiam as
forças produtivas e as relações de produção dos países colonizados por Portugal
e Espanha. Assim sendo, tanto na Inglaterra quanto nos países por ela
colonizados foi possível à grande maioria ter pelo menos o mínimo necessário
para a sobrevivência. Nos países ibéricos isso não se deu. A grande maioria da
população estava marginalizada da participação nos bens de consumo. Ou melhor,
ela não lhe garantia nem o mínimo necessário para não morrer de fome. Grandes
contingentes populacionais estavam e estão morrendo de fome ou definitivamente
inanes. Aí está a diferença que Moog não conseguiu captar. Por outras palavras,
as causas são múltiplas, mas redutíveis todas ao fator sócio-econômico.
Devido ao alto nível de informação
criado pelos meios de comunicação de massa, hoje todo mundo tem uma visão do
que se passa. Antigamente, devido ao isolamento geográfico, entre outros, o
homem simples não tinha a menor idéia de como era a vida áulica. Hoje ele tem
algum acesso a informações sobre grande parte das falcatruas cometidas por
quadrilhas que assaltam o poder, como a do senhor Paulo César Farias -- vulgo
PC -- com a conivência e usufruto do próprio presidente da república de então,
Fernando Collor de Mello, e da chamada "máfia do orçamento", sob o
comando do ex-deputado João Alves. Felizmente, o poder legislativo e o
judiciário deram uma lição de democracia, pois alijaram o presidente
inteiramente dentro da legalidade constitucional. Isto foi uma virada na
história do Brasil, pois até aqui sempre que ocorriam fatos semelhantes viam-se
logo os tanques nas ruas e um general assaltando o poder para manter a ordem --
das minorias privilegiadas.
Aquele que depreda um bem público
e/ou natural tem, mesmo que no subconsciente, o sentimento de que aqueles que
detêm o poder (político-econômico) estão numa boa e fazem coisas piores. Usam o
dinheiro público em proveito próprio, têm mordomias, são corruptos e estão
acima da lei. Tanto que não se vê um rico na cadeia. O depredador pobre sente
(sabe) que a minoria privilegiada depreda em alta escala mas se sai ilesa. Sabe
que os ladrões de casaca e de colarinho branco não deixam pegadas nem
impressões digitais. Todo mundo sabe quem rouba, mas não há provas concretas.
Portanto, conclui a lei, não podem ser presos. Diante disso, para que ele, que
é pobre e miserável, sem onde cair morto, vai se preocupar com preservar isto
ou aquilo? Ele simplesmente segue o exemplo das elites privilegiadas
socio-economicamente. Só que ele o faz naquilo que é mais visível a olho nu,
isto é, diretamente. Por isso, seus atos são imdiatamente identificados. Os dos
privilegiados (mordomias, gordas verbas de representação, residências e carros
oficiais, corrupção, desgoverno, crimes do colarinho branco, aposentadorias
duplas, triplas, quádruplas e até múltiplas, além de outras maracutaias
legais-imorais = lerais) são invisíveis de imediato, o povão não tem
acesso a eles. O problema é que o efeito dos atos dos predadores da elite é
insidioso e duradouro. A conseqüência de tudo isso é que o bem público no
Brasil é aquilo que não é de ninguém, ao passo que nos países em que há forte
consciência social ele é aquilo que é de todo mundo.
O trabalhador de salário mínimo dá um
duro muito maior do que o magnata da indústria ou o especulador ou o assessor
parlamentar, com seus salários estratosféricos pagos pelo contribuinte. No
entanto, não consegue garantir nem o mínimo para o próprio sustento e o de sua
família. O desempregado sabe que penduradas no estado estão muitas pessoas
ociosas, algumas delas com supersalários, embora sejam apenas ASPONEs. Diante
do exposto, por que os farofeiros vão se preocupar com manter a praia limpa?
Por que os depredadores de orelhões e outros bens públicos vão ter pudor? Se a
linguagem vigente é o levar vantagem sobre os outros, é o salve-se quem puder,
é o dizer o que se quer ignorando o interlocutor, então os marginalizados
violam túmulos à procura de dentes de ouro para vender (e se alimentar),
assaltam residências para conseguir algum dinheiro para se vestir, morar e
comer. Se os ricos jogam seu lixo na via pública para manter o seu luxo, para
que se preocuparem os pobres em dar descarga na privada após usá-la? Aliás, os
ricos também não dão. Os banheiros dos aeroportos são mais limpos do que os de
uma estação rodoviária do interior do país não porque aqueles que viajam por
via aérea tenham mais consciência cívica do que os que mal conseguem viajar de
ônibus, mas porque nos aeroportos há sempre um empregado para limpá-los sempre
que algum "cavalheiro" engravatado os suja. Se as indústrias, os
ricos e a classe média tripudiam o bem público e a natureza, os pobres e
descamisados -- para usar uma palavra que esteve em moda durante o curto
período do corrupto governo Collor -- repudiam tudo fazendo o mesmo.
Um outra alternativa de explicação
para os fatos descritos e analisados acima seria uma imaturidade social (já
referida acima) do brasileiro em especial e dos latinos em geral. Segundo essa
intepretação, o brasileiro seria individualmente maduro. Tanto que quando
emigra para países do Primeiro Mundo se sobressai, podendo ser um competidor
dos nascidos lá em pé de igualdade. No entanto, ele não teria maturidade social
semelhante à dos povos desses países. Essa tese tem algum sentido. Aliás, ela
não está em dissintonia com nenhum dos fatos supra-mencionados. O problema é
que, dialeticamente, é impossível uma sociedade madura composta de indivíduos
imaturos bem como é impossível uma sociedade imatura constituída de indivíduos
maduros. Isso porque "o indivíduo é o ser social". Por outras
palavras, "embora o homem seja um indivíduo único - e é justamente esta
particularidade que o torna um indivíduo, um ser comunal realmente individual
- ele é igualmente o todo, o todo ideal, a existência subjetiva da
sociedade como é pensada e vivenciada" (Marx 1970: 119).
O grande problema com todas as
tentativas de explicação mencionadas acima é sua unilateralidade. Por outras
palavras, é o tomar a aparência superficial e, portanto, apenas uma parte do
fenômeno, como se fosse o todo. Cada uma só vê um lado da questão e, com isso,
só uma causa para tudo. Caem na esparrela da unicausalidade. Ora, não é
necessário praticar um ecletismo à la Victor Cousin para perceber que a
dialética procura encarar o fenômeno como um todo, em suas múltiplas
interralações. Assim sendo, só a pluricausalidade pode dar conta dos
fatos em tela. Com isso, grande parte das causas mencionadas acima tem alguma
dose de verdade. No entanto, do ponto de vista da dialética é preciso
distinguir entre causalidade principal e causalidades secundárias.
Assim, a causa principal, o motor que empurra todas as outras, sejam elas quais
forem, é sócio-econômica, como vimos acima. As outras são caudatárias dela, são
secundárias. Tomar qualquer uma delas como se fosse a causa é o mesmo
que tomar um afluente como se fosse o rio principal.
Sumariando a interpretação dialética
da ausência de uma linguagem que permita a interação (=comunicação) sem ruídos
ou interferências (mal-entendidos e até não-entendidos), pode-se dizer que em
princípio não há sociedade madura (=com uma linguagem plenamente funcional)
composta de indivíduos imaturos (=que não conhecem essa linguagem). Do mesmo
modo, não é possível uma sociedade imatura composta de indivíduos maduros.
Porém, a totalidade que é a sociedade não é homogênea. Pelo contrário, há
diversos segmentos com interesses antagônicos em seu seio. Dois desses
segmentos são o da elite privilegiada e o do
povão sem instrução, apesar do eco fonético.
Se substituirmos
"maturidade" por "consciência" e "imaturidade"
por "incosciência", respectivamente, entenderemos melhor a aparente
contradição recém-mencionada. No caso, poder-se-ia dizer que a sociedade
brasileira como um todo é imatura, ou melhor, inconsciente. Porém, em seu
interior há bolsões de "maturidade", de consciência. Explicando
melhor, as elites têm consciência não só dos efeitos do descalabro que tem sido
a vida político-econômino-social brasileira. Elas têm, outrossim, consciência
das causas desse descalabro, dessa desorganização. Por quê? Simplesmente porque
são elas que têm acesso às informações quase ao nível das elites do Primeiro
Mundo. Portanto, cabe a elas o ônus de
não levar essas informações ao povão.
"Levar informações ao
povão" significa levar educação, ensinar às crianças nas escolas e, na
medida do possível, aos adultos também. Em vez de fazê-lo, as elites pilham o
erário público como podem. Como é essa informação-educação que levam ao povão,
esse age por imitação, outra vez com perdão do eco. Portanto, a culpada
imediata pela ausência de uma linguagem comum que harmonize a sociedade
brasileira e permita a interação entre seus membros de maneira civilizada é
dessas elites predadoras do ambiente natural e do social.
3. Observações finais
O resultado concreto de tudo que
vimos é que todos agem como se "après moi le déluge". Cada um pensa:
se já resolvi meu problema, para que vou pensar nos que virão depois de mim? O
pior é que sua inconsciência não lhes permite perceber que eles próprios podem
voltar ali, e encontrar tudo como deixaram, ou seja, imundo. E mais, não lhes
passa pela cabeça que se agem assim fazem com que outros façam o mesmo. Cada um
deles com certeza só pensa assim: posso fazer tudo que imediatamente facilite
minha vida, pois sou livre (cf. RAIA 1990). Dado o individualismo em cujo
contexto se insere esse modo de pensar, o indivíduo em questão não se dá conta
de que onde todo mundo faz tudo que quer, sem atentar para o limite dos
direitos do outro, reina a anarquia em seu pior sentido. Não a anarquia de Bakunin e Kropotkin, entre outros, mas
a anarquia da natureza, ou melhor, a ordem da natureza, em que prevalece o mais
forte. Em determinadas circunstâncias isso até poderia lhe ser favorável, mas
em outras ele pode ser mais fraco e, conseqüentemente, perder.
A instância que escolhi para mostrar
como se relacionam os intivíduos entre si e com o ambiente (natural e social),
ou seja, como se relacionam o público e o
privado, é a privada, o banheiro público. Mostrei que a linguagem é o índice maior
de socialidade de determinado agrupamento humano, isto é, ela é o domínio
público por excelência. A linguagem está para o público assim como seu uso está
para o individual (Saussure 1969). Logo, onde quer que os indivíduos se
expressam mal (seja lá qual fôr o sentido que se dê à locução
"expressar-se mal"), é porque a linguagem (coletivo) vai mal. É
impossível a linguagem estar bem e os indivíduos se expressarem mal, como crêem
alienadamente os gramáticos e os filólogos, bem como os que perfilham sua ideologia.
Assim, se o nível de consciência social é elevado, cada ato individual
refletirá essa consciência. Se fôr baixo, os atos individuais também o serão.
Em suma, os atos individuais, as manifestações individuais, são o verdadeiro
diapasão para se avaliar o nível de consciência social.
Observando os fatos narrados no item
1 acima, verificamos que o povo realmente não tem educação. "É uma questão
de berço!", diriam os elitistas. Acontece que a própria elite perpetra
atos piores ainda que os do povão, como vimos. Assim, ela própria não teria
"berço". O fato é que a maior culpa pela falta de educação do povão,
isto é, de uma linguagem comum que harmonize as relações entre todos os
brasileiros está com a própria elite. Com efeito, é ela que tem acesso a um
grande número de informações. Portanto, ela é que deveria educar o povão. Como
não o faz mas, pelo contrário, o deseduca com seus exemplos, assume todo o ônus
da culpa.
Dizem que o indivíduo é produto do
meio. Acontece que o próprio meio é produzido pela totalidade dos indivíduos em
sua práxis social de produção dos meios de subsistência. Deduz-se daí que é o
modo de produção-distribuição que enforma o modo de ser, de se comunicar, de se
expressar, dos indivíduos e da coletividade. Ora, o lugar onde todo indivíduo
se exprime sem nenhum tipo de coerção é na privada. É onde ele se mostra por
inteiro, como de fato é, como o modo de produção em que se criou levou-o a ser
e a se expressar, inclusive com sua participação. Ele se
comporta de determinada maneira no banheiro de sua casa, mas de outra
totalmente diferente no banheiro público. No primeiro ele ele defeca e urina, e faz
questão de mantê-lo limpo. No segundo ele
caga e mija e vai embora sem dar descarga, além de jogar papel no chão e escrever
palavrões nas paredes, coisa que tampouco faria no banheiro de sua casa.
Segundo Umberto Eco,
numa situação inicial de formação de uma comunidade, cada indivíduo precisa
interiorizar o seguinte: "... não me devem impedir de cagar, mas se eu
venho cagar em sua casa, não está certo. Então, fazemos, um acordo, eu não cago
em sua casa e você não caga em minha casa e nenhum de nós caga no meio da rua.
Também sobre o uso da língua" (Eco 1995:5). Infelizmente, parece que nem
esse acordo vital inicial foi feito no Brasil. Como vimos, há pessoas que
efetivamente cagam na casa do outro e às vezes ambos cagam na rua. Daí a
metáfora que usei para criticar, de maneira um tanto acerba, a mentalidade
individualista que impede que o Brasil vire um país de Primeiro Mundo, apesar
de suas imensas riquezas naturais. Por tudo isso, eu termino, não sem uma ponta
de vergonha e de tristeza, dizendo que quem quiser descobrir no público como é
o privado, e vice-versa, é só ir à privada, isto é, ao banheiro público.
[OBS.: Este texto foi escrito há cerca de 30
anos atrás. Hoje em dia, ser-lhe-ia dada uma interpreação ecológica, que seria
a mais atual.]