domingo, 27 de setembro de 2015

Descomunhão


O conceito de comunhão é um dos mais importantes na versão da Ecolinguísica praticada no Brasil, a Linguística Ecossistêmica. Ele foi originalmente proposto pelo antropólogo inglês Bronislaw Malinowski em 1923 (cf. Malinowski 1972) e, depois, retomado por Roman Jakobson no contexto de suas seis funções da linguagem (Jakobson 1969). Na década de setenta do século passado, o linguista francês Henri Gobard o retomou e usou em um sentido muito próximo ao que ele tem na Linguística Ecossistêmica (Gobard 1976). Em Couto (2003) eu o reelaborei, analisando a interação que houve entre os membros da esquadra de Cabral em Porto Seguro, em 1500.
No contexto da Linguística Ecossistêmica, comunhão é um pré-requisito para que os atos de interação comunicativa sejam eficazes. Todo e qualquer um desses atos tem que ser precedido de um relativo estado de comunhão. Nesse sentido, o termo designa uma predisposição para a interação, como já sugere sua origem religiosa. Vale dizer, não basta falar a mesma língua para que a comunicação se estabeleça, para que seja eficaz. Um bom exemplo são os casais. Quantas vezes um não diz ao outro: “Você não me entende!”, “Você não me ouve!”. É claro que o significado lógico das palavras e da frase como um todo foi entendido. No entanto, a intenção com que foram compreendidos não é a mesma pretendida por quem falou. O que acontece é que um não concorda com o que o outro quis dizer. Por isso de alguma maneira está fechado para o que ouve. Se houvesse comunhão, estaria aberto para seja lá o que for que o outro eventualmente viesse a dizer. Haveria satisfação em estar juntos. Nesse sentido, o que quer que um dissesse seria logo bem-vindo, “entendido”. Enfim, a comunhão é um pré-requisito para a comunicação.
Como se vê, comunhão implica uma certa satisfação em estar juntos, há uma solidariedade mútua entre os presentes. Afinal, somos uma espécie gregária, como muitas outras espécies de seres vivos existentes na face da terra. No entanto, o que se nota nos dias de hoje é uma ausência de comunhão muito comum entre pessoas que se veem juntas. Eu tenho presenciado membros de uma família inteira (pai, mãe, filhos, filhas) fisicamente juntos em torno de uma mesa de restaurante, mas todos ligados no WhatsApp, trocando mensagens com alguém que não está ali. Pode até acontecer o incrível: um dos membros dessa família se dirigir ao outro que está ali ao seu lado pelo celular, sem tirar os olhos dele. Vale dizer, o que estamos começando a testemunhar é o contrário da comunhão. As pessoas estão fisicamente juntas (nível natural), mas mentalmente separadas, pois cada uma está ligada a alguém distante. Trata-se, portanto, de uma incomunhão, ou melhor, de uma descomunhão, termo que caracteriza melhor o fato de se tratar do contrário da comunhão mediante o prefixo des-. É uma grande novidade social, que provavelmente reflita algo mais geral que está acontecendo com nossa civilização, assunto para o qual não tenho competência.
O termo “descomunhão”, ao lado de “incomunhão”, foi mencionado pela primeira vez em Matos, Couto, Marques & Couto (2014: 222), embora não no mesmo sentido que tem no presente ensaio. Em seguida, ele foi retomado no decurso das aulas da disciplina Ecologia Linguística que ministrei no contexto do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade de Brasília no primeiro semestre de 2015. Foi uma das experiências mais prazerosas que já tive em minha carreira docente. Houve discussões acaloradas em praticamente todas as aulas. A ideia de “descomunhão” foi uma delas, inclusive usando esse termo. Tanto que um dos alunos, Jonas Pereira dos Santos, aceitou minha sugestão e redigiu sua monografia para aproveitamento do curso justamente sobre o assunto (Santos 2015).
Antigamente, as pessoas viviam efetivamente em comunhão em diversas situações. Uma delas era em torno da mesa de refeição. Em algumas situações, ao lado da lareira para se aquecer. Em outros casos, mais antigos, para os jovens ouvir histórias contadas pelos mais velhos, fato que é parte da cultura africana, como se pode ver em Couto (2009). Com o advento dos meios de comunicação de massa, essa vida comunial começou a se deteriorar. Tudo começou com o rádio. Na hora de determinados programas, ninguém podia dar um pio, pois todos queriam ouvir o que estava se passando no rádio. Todos os membros da família estavam fisicamente juntos no mesmo espaço, mas a atenção de todos estava fixada no aparelho de rádio. Felizmente, isso só acontecia em algumas poucas horas do dia, especialmente à noite. Essa tendência aumentou enormemente com a chegada da televisão. Na hora dos programas de grande audiência, como as telenovelas, todo mundo na família ficava ligado exclusivamente na telinha. A partir de determinada época, a divisão entre os membros da família aumentou ainda mais, pois o pai passou a ter um aparelho para ouvir noticiários e programas esportivos, a mãe ter outro para ver as novelas e as crianças outro para ver os programas infantis. Novo passo no sentido do esvaecimento da comunhão e na direção da descomunhão.
Na década de noventa do século passado eu li em algum lugar o criador da SONY, Akio Morita, anunciar como grande inovação a invenção do “walkman” (não me lembro bem a data precisa em que o aparelho surgiu). Segundo Morita, a partir de então as pessoas teriam autonomia, liberdade para ouvir o que preferissem. No entanto, a inovação foi mais um passo para na direção do isolamento das pessoas. Pouco depois, veio o aparelho de telefone celular, que isolou os indivíduos ainda mais. A partir desse momento, não precisavam mais usar um único aparelho de telefone fixo, com todo mundo em volta ouvindo o que diziam. Em qualquer lugar das cidades e, atualmente, até na zona rural, vemos pessoas grudadas no celular, de mamando a caducando. Para coroar de vez esse processo, surgiu o WhatsApp na segunda década do século XXI. Agora, sim. Grande parte das pessoas não tira os olhos do aparelho celular. Quando alguém as interpela, sempre estão atendendo algo “importante”, como se antes do celular e do WhatsApp não houvesse vida. O que há é que após esses dois artefatos as pessoas estão deixando de conviver efetivamente com quem está seu lado, interagindo sempre com quem está ausente. Em vez da comunhão, estão todas em descomunhão, ou seja, fisicamente juntas, mas mental e espiritualmente separadas pelo aparelho de celular e o WhatsApp. Em vez da aldeia global prevista por Marshall McLuhan na década de sessenta do século passado, o que temos é um bando de individualidades, de pessoas que se consideram livres, mas que estão escravas de uma engenhoca criada pela tecnologia. Esta desfaz o que a natureza faz. O espaço físico mantém as pessoas juntas, com o que deveriam interagir entre si como antigamente. No entanto, a tecnologia as separa.
A “comunicação” que se dá nessas circunstâncias é superficial, às vezes até leviana. Assim que os “interlocutores” encerram uma “interação”, ou seja, assim que deixam de estar online, nem se lembram mais sobre o que conversaram. Que a “interação” é superficial provam-no alguns exemplos meus. Em umas duas ocasiões, eu me envolvi em “comunicação” via WhatsApp com um amigo. Eu queria uma simples resposta, que poderia ser dada com “sim” ou “não”. No entanto, tivemos que trocar umas cinco mensagens até que meu “interlocutor” entendesse o que eu queria. Enfim, esse tipo de interação é reflexo da superficialidade da vida moderna, na qual há muitos mal-entendidos, meios entendimentos, muitas incomunicações etc. Mas, isso não importa. Não há preocupação com o conteúdo do que se comunica. O importante é estar ligado via WhatsApp, mesmo ao custo de estar desligado de quem está ao lado.
Se os praticantes de Linguística Ecossistêmica apregoam que sem comunhão não há comunicação, hoje em dia se pode dizer que com a presença do WhatsApp tampouco há atos de interação comunicativa entre pessoas que estão juntas em determinado lugar. Essa movimento se insere no contexto mais geral de nosso distanciamento da natureza. Como também já previra Marshall McLuhan, nosso contato com o mundo exterior aos nossos corpos está cada vez mais mediado por “extensões” deles. Os óculos são extensões dos olhos, embora aqui se trate de uma necessidade (criada por nossos maus hábitos). A pele é protegida do sol e do frio por roupas, casacos etc. O ar é substituído por ar condicionado, inalação de oxigênio etc. A água não pode mais ser colhida diretamente nos rios, córregos e lagos, porque jogamos todo o nosso esgoto neles. Enfim, pode-se dizer que até o momento estamos sendo abduzidos mentalmente, mas daqui a uns anos, décadas ou séculos, estaremos sendo abduzidos fisicamente. Nesse instante, a descomunhão será total. 
O que é estranho nesse tipo de conversa é que se trata de algo muito superficial, tudo se passa muito rapidamente. Um indivíduo frequentemente "conversa" com várias pessoas ao mesmo tempo. Para dar conta disso, faz uso de grande quantidade de abreviaturas, siglas e outros recursos que permitam a "mensagem" ser formulada o mais rapidamente possível. A interação é tão superficial que assim que se termina uma "conversa" a pessoa sequer se lembra de que e com quem falou. Mesmo assim, sempre que se pergunta a essas pessoas por que não largam o celular, sempre têm uma resposta na ponta da língua: "Eu tinha uma coisa importante para falar com fulano".  
Outro lado estranho desse tipo de interação (afinal, é uma interação) é que ela muitas vezes se transforma em um vício. Vemos depoimentos de diversas pessoas na televisão dizendo que quando ficam sem acesso ao celular entram em pânico. A tal ponto que a coisa já está sendo encarada como uma doença. Alessandro Borges Tatagiba informa que no Japão existem os hikikomori, termo que literalmente significa "isolado em casa". Segundo esse autor, "os hikikomoris são pessoas geralmente jovens entre 15 e 39 anos que se retiram completamente da sociedade, evitanto contato com outras pessoas. Uma psicopatologia grave neste grupo se refere à dependência patológica da internet" (Tatagiba 2014: 201, rodapé n. 48). Por enquanto os usuários do WhatsApp no Brasil ainda saem de casa, sozinhos ou acompanhados. Mas, é como se não saíssem, pois estão sempre no mesmo lugar, que podemos chamar pelo termo arcaico alhures. O corpo dessas pessoas pode até estar presente (nada a ver com "missa de corpo presente"), mas suas mentes estão alhures. Seria interessante reativar esse termo e, inclusive, criar um derivado dele, a alhuridade. Afinal, é uma categoria claramente visível nesses tempos de crescente descomunhão.      

Referências
Couto, Hildo Honório do. 2001. A interação entre portugueses e ameríndios em Porto Seguro em 1500. Pesquisa linguística (UnB) v. 6, n. 2, p. 7-28.
_______. 2003. Portugueses e tupinambás em Porto Seguro, 1500: interação, comunhão e comunicação. In: Roncarati, Cláudia & Abraçado, Jussara (orgs.). Português brasileiro: Contato linguístico, hterogeneidade e história. Rio de Janeiro: 7Letras, p. 253-271.
_______. 2009. As narrativas orais crioulo-guineenses. Papia 19, p. 51-68.
Gobard, Henri.1976. L'Aliénation linguistique: Analyse tétraglossique. Paris: Flammarion.
Jakobson, Roman. 1969. Linguística e poética. In: Linguagem e comunicação. São Paulo: Cultrix, p. 118-162 (original, 1960).
Malinowski, Bronislaw. 1972. O problema do significado em línguas primitivas. In: Ogden, C. K. & Richards, I. A. O significado de significado. Rio de Janeiro: Zahar Editores, p. 295-230 (original, 1923).
Matos, Francisco; Elza do Couto; Adilson Marques & Hildo do Couto. 2014. Ecolinguagem. In: Couto, Elza N. N. do, Dunck-Cintra, Ema M. & Borges, Lorena A. O. (orgs.). Antropologia do imaginário, ecolinguística e metáfora. Brasília: Thesaurus, p. 215-224.
Santos, Jonas Pereira dos. 2015. Descomunhão: Um incômodo hiato no seio da ecologia da comunidade. UnB, monografia para disciplina Ecologia Linguística, 1/1015.
Tatagiba, Alessandro Borges. 2014. Ecossistema virtual: Mediação, representação e imaginágio em jogo. In: Couto, Elza; Ema Duck-Cintra & Lorena Borges (orgs.). Antropologia do imaginário, ecolinguística e metáfora. Brasília: Thesaurus, p. 193-294.

Apêndice
Assim que postei este texto, o professor Francisco Gomes de Matos me enviou o seguinte, que ele chama de "reflexão rimada":


ALERTA ECOLINGUÍSTICO
Francisco Gomes de Matos*

Atenção à digital descomunhão
Cuidado com a desagregadora WhatsApptidão:

Desestimula a dialog(AÇÃO)
Desarticula a cooperação
Desarmoniza a conversação
Desumaniza a interação

Dignifiquemos nossa comunicação
Ao diálogo e ao multílogo asseguremos ECOsustentação !
 
* Linguista da Paz, professor emérito de linguística, UFPE, Recife. Ele foi o primeiro a relacionar língua e ecologia no Brasil.

terça-feira, 18 de agosto de 2015

O público, o privado e a privada


 0. Observações preliminares
À primeira vista parece que não há nada de comum entre ecologia e linguagem. No entanto, quando relacionamos o domínio do público com o do privado, verificamos que têm mais a ver um com o outro do que suspeitávamos. Assim sendo, o que pretendo fazer neste capítulo inicial é tentar mostrar que é na privada (=banheiro público) que podemos verificar o nível de desenvolvimento, de harmonia entre o público e o privado. Tentarei mostrar que o tratamento que se dá à privada revela o grau de consciência, de coesão e de harmonia social de uma coletividade. Coesão e harmonia são, ao fim e ao cabo, uma espécie de contrato social tácito, um conjunto de regras mínimas de convivência que permitem a interação não antagônica entre os indivíduos que a compõem. Em resumo, elas são a linguagem que permite a comunicação entre esses indivíduos. Toda a argumentação terá por base a sociedade brasileira, embora o que disser se aplique também a outros povos, como os latinos em geral, os africanos e outros. Obedecerei a seguinte ordem na exposição: primeiro apresento alguns fatos que têm a ver com o assunto em questão, com algumas de suas conseqüências; em seguida sugiro três tipos de explicação para tais fatos para, finalmente, tirar algumas conclusões.
 
1. Os fatos
Começo com o caso dos chamados farofeiros de São Paulo na Praia Grande, muito bem descrito por Leirner (1990). Trata-se da população pobre de São Paulo e adjacências que desce em massa a serra em seus carrinhos velhos levando frango com farofa (daí o nome), latas de refrigerantes e às vezes frutas. Como só ficam na praia um único fim de semana ou até mesmo um único dia, praticam um turismo predatório, deixando atrás de si apenas a sujeira. Não contribuem em nada para a economia local. É claro que isso ocorre em todo o litoral brasileiro, mas os farofeiros paulistas sobrepujam numericamente qualquer similar no país e talvez até mesmo no mundo inteiro.
Um outro exemplo, que vivenciei pessoalmente, foi o dos campistas de Rio Quente, próximo a Caldas Novas, Goiás. Eles partem de Brasília, Goiânia e outras cidades das redondezas e enchem toda a margem do Rio Quente. Até aí não há nada de extraordinário. Acontece que não só jogam todo o lixo ao lado da barraca como também praticam atos inacreditáveis para um europeu ou um japonês. Na mesma água em que tomam banho, lavam pratos e panelas com restos de comida, jogam cascas de frutas, lavam o cocô do neném e toda a roupa suja. E por banho não se deve entender apenas mergulhar na água, mas banho mesmo, ou seja, eles se ensaboam, passam "shampoo" nos cabelos e tomam seu banho completo. Saem "limpinhos", "cheirosos", com odor de sabonete e "shampoo". Quanto se interpela um deles sobre o fato, explicam que a água é corrente, leva tudo embora. Esquecem-se (esquecem-se?) apenas de que lá mais embaixo há outros acampamentos, outras pessoas querendo banhar-se na água. Só pensam (pensam?) no que querem fazer, isto é, divertir-se. Por outras palavras, jogam os dejetos não só no acampamento e adjacências mas também na própria água, que é o motivo de estarem ali.
Nos ônibus interurbanos em geral lia-se o seguinte aviso: "É proibido aos passageiros fumar charuto, cachimbo ou cigarro de palha bem como utilizar aparelho sonoro". A ironia dessa restrição está no fato de os passageiros de ônibus via de regra não fumarem nem cachimbo nem charuto e de o cigarro de palha já estar praticamente extinto. No entanto,  cigarro é permitido fumar. Assim, quando o veículo estaciona num posto de serviço à beira da estrada, vemos "damas" e "cavalheiros" irem ao bar, tomar seu cafezinho e voltarem para dentro do carro, com todas as janelas fechadas, a fim de dar umas belas tragadas. Que prazer! Quando o veículo está em movimento nem se diz. Sempre haverá alguém fumando, com todas as janelas fechadas por causa do vento frio. São os fumantes ativos, alguns poucos passageiros, que obrigam a maioria a ser fumantes passivos. Caso contrário, os incomodados que se retirem. O mundo é dos que não têm educação. Eles pensam (pensam?) que podem fazer tudo que quiserem, em qualquer lugar e hora. Quem ousar reclamar é que será tido como chato, inconveniente, fora da ordem. 
Outra ironia é que nos ônibus urbanos, circulares, já era terminantemente interditado fumar. E aqui tanto o motorista quanto o cobrador zelavam pela obediência à interdição. Acontece que nesses ônibus o passageiro permanece, no máximo, uns 40 a 60 minutos, enquanto que nos ônibus interurbanos se fica às vezes até mais de 72 horas. Além do mais, os urbanos são muito mais arejados. Enfim, tudo isso demonstra uma inconsciência tanto dos passageiros quanto das autoridades que deveriam zelar pelo bem comum, aí incluído o direito à saúde dos pulmões dos não fumantes (os fumantes não se preocupam nem com os próprios pulmões nem com os dos outros).
Se alguém pensa que isso ocorre só em ônibus, onde via de regra só viaja o povão, está redondamente enganado. São incontáveis as vezes em que eu estava viajando de avião na área reservada aos não fumantes. De repente sentia fedor de fumaça no ar. Olhava para os lados e via um "cavalheiro" muito bem vestido, com pasta de executivo, de terno e gravata, todo escovadinho, fumando tranqüilamente o seu cigarrinho. Às vezes eu pedia à aeromoça para tomar providências. Em pelo menos numa dessas ocasiões que ela lembrou ao poluidor, com a maior educação, que ali era a área reservada aos não fumantes, o indigitado "cavalheiro" fez de conta que não ouviu nada. Quem sabe ele era um homem "importante"! Para que deixar de ter o seu prazer só porque uma mera aeromoça lho pedia!? "Você sabe com quem está falando?". E lá continuou o "chaminé ambulante" -- vulgo chambu -- como veremos abaixo, poluindo os pulmões dos outros passageiros.
Poderia enumerar outros casos indefinidamente. Por exemplo, temos o caso do parlamentar que não queria afivelar o cinto, atrasando o avião, causando um constrangimento geral e atrasando a decolagem da aeronave. Ou então o do ministro da sinistra ditadura militar que obrigou um avião de carreira dos EUA para o Rio de Janeiro a desviar sua rota a fim de deixá-lo em Brasília. Em outros contextos isso não seria considerado seqüestro? Não podemos esquecer também o caso dos fumantes que não só poluem os recintos fechados (bares, restaurantes, etc.) mas até mesmo elevadores, como verifiquei diversas vezes em um conjunto residencial de classe média alta em Brasília. Um amigo me disse que essas pessoas têm consciência de ameba.
Um outro caso que não poderia deixar de lado é a questão do som. Muita gente hoje em dia gosta de sons com vários decibéis, para arrebentar os tímpanos. E o que é pior, obrigando os vizinhos ou seja lá quem for que tenha o azar de  estar por perto ouvir os mesmos ruídos. Freqüentemente esse tipo de gente estaciona seu carro próximo a um aglomerado de pessoas, levanta a tampa do porta-malas para liberar os alto-falantes (alguém disse que têm um trio elétrico no carro) e começam a poluir os ouvidos de todo mundo, de quem gosta e de quem não gosta. Não se dão ao trabalho de verificar se o lugar é adequado para tal tipo de poluição ou não. Simplesmente querem curtir o seu sonzinho (som?). 
O homem rural, por ignorância, faz queimadas, desmata todo o ambiente, destruindo fauna e flora a fim de atingir seus objetivos o mais rápido possível (diga-se, entre parênteses, que ele não conhece outra alternativa). O homem urbano picha todas as paredes e indicações de logradouros, depreda orelhões, caixas de correio e tudo que estiver nas vias públicas. As indústrias, a fim de obter lucros mais rápida e facilmente, despejam seus dejetos nos rios, nos lagos, na terra e no ar sem nenhuma medida de prevenção. Em geral são multinacionais que em seus países de origem adotam medidas rígidas de controle da poluição devido às severas sanções legais. Desse modo, a Alemanha dispõe de córregos, que passam dentro de cidades, com águas inteiramente cristalinas. No rio Reno hoje já vivem alguns peixes. Isso apesar de a Alemanha inteira ser mais ou menos do tamanho de Minas Gerais e ter uma população quase igual à brasileira e um número de indústrias muito superior ao nosso. O rio Tietê e o Pinheiros, em São Paulo, ou o Arrudas, em Belo Horizonte, são verdadeiras cloacas.
Por fim, temos fatos sociais e sócio-econômicos que se alinham na mesma ordem dos até aqui apresentados. Entre outros, poderia citar a corrupção administrativa, os crimes de colarinho branco, estreitamente associados à impunidade. Aliás, corrupção e impunidade estão tão associados entre si que até poderíamos sugerir a expressão abreviadora corruptunidade. Freqüentemente isso ocorre sob o manto protetor do autoritarismo, de modo que poderíamos sugerir a abreviação autorrupto, ou seja, o híbrido de autoritário + corrupto. É o que prevaleceu durante a ditadura militar, como todos nós sabemos. No entanto, recentemente tivemos o caso do larápio-mor, Paulo César Farias -- o PC --, e seus receptadores, dentre eles o próprio presidente da república de então, Fernando Collor de Mello e família/quadrilha. Felizmente o poder legislativo e o judicário deram um "basta" nisso, pela primeira vez na história do Brasil.
Poderíamos citar também o caso do ASPONE, com seu supersalário, ao lado do salário de fome do trabalhador humilde. As gordas verbas de representação que enchem de dólares as burras de burocratas desnecessários. Para não me alongar em demasia, cito, por último, as super-aposentadorias duplas, triplas, quádruplas, todas com dinheido do contribuinte, é claro, e a "máfia do orçamento" que sob o comando do ex-deputado espertalhão João Alves desviou milhões de dólares para as contas particulares do próprio e dos amigos. Felizmente o Congresso Nacional alijou alguns deles, deixando outros impunes por razões inteiramente políticas. Nenhum deles está na cadeia. Tudo isso é depredação do bem público. Ou seja, os maiores depredadores são os membros da elite.
Por fim, para mostrar o grau paroxístico a que chegou o espírito predatório no Brasil gostaria de falar de uma delinqüência relativamente recente. Trata-se do ato de riscar a pintura de carros estacionados em vias públicas. Quanto mais novo o carro, mais atrativo fica para ser riscado. Pois bem, qual é o sentido disso? Quando alguém rouba algo que lhe é útil de alguma forma dá para entender, embora não para justificar. Riscar gratuitamente a pintura de um veículo não traz nenhuma vantagem ao delinqüente. Só demonstra que a sociedade brasileira está doente. Que os indivíduos que perpetram tais atos estão doentes. Pessoas sãs física e mentalmente (mens sana in corpore sano) não prejudicariam outrem pelo simples prazer de prejudicar. Isso apenas mostra que esses vândalos precisam de um tratamento psicanalítico, para não dizer psiquiátrico (ou será que de cadeia!).
Tudo que vimos até agora tem suas causas e conseqüências. As causas serão discutidas em 2.0 a 2.3. O que vou fazer agora é mostrar algumas conseqüências imediatas de tais comportamentos e atos. Em primeiro lugar, como sabemos que ninguém respeita a sinalização de trânsito, mesmo que não esteja pichada, colocamos quebra-molas na rua em vez de placas indicadoras da velocidade conveniente. O quebra-molas é, assim, a placa indicadora de baixa velocidade para irresponsáveis e para quem quer sempre levar vantagem (ver abaixo!). A sua presença nos leva à conclusão de que o brasileiro só obedece às leis da física.
Seria interessante abrir um parêntese para dizer que "quebra-molas" é o nome popular, o que existe no paralelo. A nível oficial, ele é chamado de "lombada", "saliência" e até mesmo de "redutor de velocidade". Trata-se de nomes cultos para um fenômeno que deveria envergonhar qualquer pessoa consciente e civilizada.
Devido à vigência de fatos como os acima apresentados (e há vários outros do mesmo jaez) no Brasil os indivíduos são compelidos a procurar soluções individuais para tudo, inclusive para sobreviver. Na economia, por exemplo, são obrigados a se virarem como podem, transformando-se em camelôs, em sacoleiros, em barraqueiros de beira de estrada, etc. São obrigados a construir barracos nos terrenos baldios do centro e dos arredores das cidades. Com isso as ruas ficam intransitáveis, literalmente infestadas de barracas de vendedores. Ainda nas ruas temos os tomadores de conta de carros que, segundo uma amiga, "lotearam a cidade". Eles são seus donos, pois não podemos estacionar nossos carros na rua sem sua autorização. Isso para não falar nos mendigos que se apresentam aos montes junto a qualquer sinal de trânsito para solicitar alguns trocados aos motoristas. A nível da instituição jurídica, surgem legalidades paralelas. Assim, os traficantes já tomaram conta do Rio de Janeiro, o poder público é impotente diante de seu domínio. Nas favelas eles são o poder judiciário, legislativo e executivo (pois executam quem incomoda) e policial. 
Como sabemos que ninguém respeita as leis -- freqüentemente feitas por autoridades biônicas e corruptas --, criamos leis e, mais freqüentemente decretos, em profusão, às vezes até em excesso, nas quais se incluem leis que revogam leis e/ou que modificam parcial ou totalmente outras leis. Mudamos as regras do jogo a todo instante, criando um verdadeiro cipoal ou labirinto que impede o acesso das pessoas humildes à lei. Raramente o brasileiro médio faz valer seus direitos diante do arbítrio. Se alguém lhe diz "Não pode!", ele se conforma e vai cabisbaixo para casa. Os ricos podem dar um jeitinho, pois em geral têm em seu círculo de amizades alguém com QI (=quem indica) -- em geral com baixo QI (=quociente de inteligência) -- que pode quebrar o galho para eles. Afinal, temos o lema segundo o qual para os amigos tudo, para os indiferentes a lei e para os inimigos cadeia.
O que se constata diante do estado de coisas sumariado acima é que nos encontramos num estado de desagregação social generalizado, em que vale o lema cada um para si e Deus para todos. Em outros termos, é o individualismo elevado a um grau paroxístico que freqüentemente confundimos com liberdade individual, com solidariedade e até cordialidade (cf. HOLANDA 1979). Não passa pela nossa cabeça que onde cada indivíduo faz o que bem entende prevalece a lei do mais forte, como na natureza e entre os animais. Daí a única lei posta em prática ser a lei de Gérson (=levar vantagem) e as únicas leis respeitadas serem as leis da física.
Se não me engano foi Otto Lara Resende quem disse que o mineiro só é solidário no câncer. Pois eu diria que o brasileiro só é solidário no futebol, no carnaval, na cerveja e na família. Freqüentemente os quatro estão juntos numa mesma entidade, a intimidade. Certa feita um holandês que andava comigo pelas ruas de Florianópolis, e que acabara de ser agredido verbalmente por um motorista, notou que no Brasil as pessoas conhecidas e amigas são como membros da família. Os transeuntes na rua, no entanto, são como adversários, inimigos. Os pedestres não respeitam os lugares para atravessar a rua (as faixas para pedestres) e os motoristas aceleram seus carros para que aqueles corram ao atravessá-las. Temos a impressão de que os motoristas querem assassinar os pedestres e de que estes se jogam na frente dos carros como que querendo se suicidar, embora isto esteja começando a mudar, como se vê nas faixas de pedestre começaram em Brasília.
O caos em que se transformou a sociedade brasileira parece aquela casa que não tem pão, em que todos gritam ninguém tem razão. Parece que estamos no período pós-queda da Torre de Babel. Cada um fala sua linguagem própria, procede como bem entende, sem levar em conta que seu direito termina onde começa o direito do outro. As pessoas não são o próximo, como manda o cristianismo, mas o adversário, o antagonista, o concorrente que precisa ser deixado para trás e, às vezes, até mesmo eliminado. Cada um diz o que quer e como quer -- desrespeitando os princípios sine qua non da teoria da comunicação. O principal deses princípios afirma que para que uma mensagem enviada por um emissor a um receptor seja decodificada é necessário que estaja formulada em um código comportilhado por ambos. Trocado em miúdos, isso simplesmente quer dizer que para que alguém entenda o que eu digo é necessário que eu o diga numa linguagem que ele conheça. Se falar em chinês a um roceiro brasileiro que só conhece a variedade rural do português, ele não me entenderá. Mas isso está ocorrendo porque todos querem falar e ninguém quer ouvir.
Chegamos ao um ponto em que parece que quem não incomoda ninguém e não quer ser incomodado é que está fora de contexto. Sempre que alguém reclama do barulho vindo do apartamento vizinho (som excessivamente alto, arrastar móveis de madrugada, gritaria nos corredores, etc.) é considerado um chato. Como cada um pode fazer o que bem entende, parece que a norma é a ausência de normas.
Sumariando, pode-se dizer que chegamos a um grau de desagregação social em que cada indivíduo só quer falar mas não ouvir. Mesmo quando ele finge que está ouvindo, não entende o outro, mesmo porque não têm uma linguagem comum. A forma externa da linguagem pode até ser a mesma, porém a forma interna, a significação das palavras, não é a mesma para todos. Cada um atribui um valor (aquele que lhe é favorável) às palavras. Com isso eles não se comunicam. Quando muito falante e ouvinte fingem que estão se entendendo, sobretudo quando não se tratar de interesses pessoais muito grandes. Em tais circunstâncias teríamos diálogo, mas de surdos.
 
2. Explicações
Todos os distúrbios, perturbações e ruídos (no sentido da teoria da comunicação) acima vistos são exemplos de poluição. Portanto, faz-se necessário defini-la e tipificá-la antes de entrarmos nas explicações propriamente ditas. Como salienta Médici (1983), remetendo a Marx, a poluição surge da relação do homem com a natureza, da sua intervenção nela. Ela é, portanto, um fenômeno social, não natural. Não tem sentido afirmar-se que um corpo celeste inabitado e intocado pela mão do homem ou de qualquer outro ser vivo esteja poluído. Este caráter de social já justifica sua associação com a linguagem.
O homem primitivo, bem como os animais irracionais, retirava seu sustento diretamente da natureza. Como havia ainda pouca gente em muito espaço, os estragos eram logo assimilados por ela. Com o aumento da população e o refinamento nos meios de produção dos bens de consumo, os estragos na natureza passaram a atingir níveis intoleráveis em termos de habitabilidade, de qualidade de vida. Em suma, a poluição está sempre associada à idéia de produção e progresso (cf. Buarque  1983). Para que haja luxo haverá também lixo, para usar a antinomia de Denner, o falecido especialista em alta costura. Enfim, temos aí alguns argumentos preliminares para associar ecologia e linguagem: ambas são produzidas pelo homem em sua luta pela subsistência, logo ambas são de natureza social.
Partindo da idéia de que quem faz a história é o homem na sua práxis social de produção dos meios de subsistência, verificamos que ele produz não só artefatos, mas também linguagem (Rossi-Landi 1985). Assim, temos o lixo como subproduto no caso dos primeiros e as ambigüidades, os deslizes, os "erros" no caso da segunda (Couto 1987b). Diante disso, defino poluição como o lado ruim e quase inevitável de qualquer coisa ou atividade. É uma definição que não se encontra no Aurélio, em que pese o respeito que tenho por ele, como seria de  esperar por parte daqueles que pensam que quem faz a língua são alguns "mestres" iluminados e não a coletividade em sua luta para produzir os meios de subsistência (cf. A Ideologia Alemã, de Marx/Engels!). Segundo essa opinião, toda expressão nova só pode ser usada se tiver a chancela de um desses "mestres" (Houaiss, Aurélio, Napoleão Mendes, etc.) que chamei de "coronéis da língua" alhures, numa fase de lutas acirradas contra o arbítrio no Brasil e na UnB (Couto 1987a).
Segundo a concepção de poluição proposta acima, temos diversos tipos de poluição. O primeiro deles é a poluição ambiental, pelo que se entende o ambiente natural (terra, ar, água). É a poluição propriamente dita. Apesar de se tratar de maus tratos à natureza ela é, como concepção, social, como já vimos acima. Os outros tipos de poluição (poluição não-ambiental) são de cunho exclusivamente social. Daí sua ligação mais íntima com a linguagem, índice por excelência de socialidade. Podemos falar em poluição econômica (inflação, etc.), poluição corporal (doenças, etc.), poluição mental (neuroses, psicopatias, etc.), poluição sexual (doenças venéreas, AIDS, etc.), poluição administrativa (corrupção, mordomias, etc.), poluição militar (golpes, etc.), poluição de poder (autoritarismo, arbítrio, desmandos, etc.; cf. o "entulho autoritário" da política brasileira da passagem da ditadura militar para o regime democrático!), poluição sócio-econômica (miséria, fome, etc.), poluição de trânsito (congestionamentos, etc.), poluição de convivência (lei de Gérson, etc.), poluição na linguagem (ambigüidades, mal-entendidos, etc.) e inúmeras outras.
Dos diversos tipos elencados no parágrafo anterior, a poluição lingüística parece ser a mais difícil de se entender à primeira vista. Por isso, gostaria de qualificá-la um pouco mais. Assim temos, por um lado, a comunidade de falantes, que é a coletividade brasileira como um todo. Ela produz não só objetos de consumo mas também linguagem, como vimos com Rossi-Landi (1985). Por outro lado, temos os "coronéis da língua" (gramáticos, filólogos, escritores clássicos e outros) que tentam nos impingir a idéia de que eles é que podem determinar o que é "certo" e o que é "errado". Do entrechoque das duas tendências resulta uma ambigüidade, uma bivocidade e até uma multivocidade na linguagem que interfere na (polui a) comunicação. Para dar só um exemplo, os coronéis da língua decretaram que temos que distinguir entre "ir a" (ir provisoriamente) e "ir para" (ir definitivamente). Como nenhum falante faz essa distinção, eles tacham sua linguagem de "errada", embora todo brasileiro diga "Eu vou para São Paulo" no sentido de "ir para passear e voltar logo em seguida". Segundo esses coronéis, a poluição lingüística seria o erro, que para eles é sempre cometido pelos falantes não cultos. Em COUTO (1985) demonstrei que, pelo contrário, são as pessoas presumivelmente cultas que cometem erros de linguagem. Assim procedendo, os donos da língua criam dificuldades para vender facilidades.
2.1. Explicação psicanalítica
Eu não sou especialista em psicanálise, mas a pouca leitura que fiz em seu domínio me levou à conclusão de que ela oferece uma alternativa de interpretação para os fatos apresentados acima e outros semelhantes. Segundo a teoria psicanalítica, o desenvolvimento da sexualidade apresenta três fases: a oral, a anal e a fálica. Cada uma delas apresenta subfases. O que interessa aqui é a segunda fase, a fase anal. Ela "é o momento da evolução infantil onde cobra importância o dar, o expulsar, reter. Fezes são de início muito mais do que uma sujeira a ser escrupulosamente escondida. São presentes ou são instrumentos agressivos, projéteis perigosos". Mas, como disse, ela apresenta duas subfases. "A primeira fase anal, onde o prazer expulsivo domina, leva a um caráter especialmente violento, que despreza o outro, que tende a expulsar de si todos os aborrecimentos, intolerantes a frustrações e limites. A marca da fase anal retentiva, a segunda, é ao contrário uma espécie de cautela excessiva, timidez, respeitoso temor por ordens e hierarquia, meticulosidade exagerada" (Hermann 1983: 62-64). Nas pessoas ditas normais, todas as três fases, com suas subfases, teriam sido superadas. Elas chegariam à fase fálica, a última, num processo evolutivo regular (cf. também Freud 1978 e Reich 1983).
De acordo com o ponto de vista psicanalítico, os farofeiros da Praia Grande, os campistas de fim de semana de Rio Quente, os depredadores, os vândalos, os corruptos, enfim, todos aqueles que agridem o meio ambiente (tanto o natural quanto o social) não superaram a primeira subfase da fase anal de desenvolvimento, ou seja, a fase anal sádica, segundo Freud (1978: 205). Segundo essa concepção, os poluidores, os aproveitadores, os oportunistas, os aplicadores da lei de Gérson, enfim, os poluidores em geral, literalmente defecam e urinam no meio ambiente e nos outros. Com efeito, eles jogam todo tipo de dejetos sem olhar para onde, tal qual o gorila do jardim zoológico que fica enfezado com as pessoas que mexem com ele lá em sua jaula. Os freqüentadores do Rio Quente, os farofeiros e todos aqueles que jogam sujeira pela janela para limpar a própria casa estariam, segundo esta concepção, procedendo como o bebê que ainda se encontra na fase anal sádica, ou anal-expulsiva, segundo Hermann (1983: 63-64). Dito de outro modo, os brasileiros em geral estariam apenas a nível dos bebês ou dos gorilas, no que se refere ao desenvolvimento da consciência social.
A interpretação psicanalítica coincide com uma das visões do senso comum. Na matéria em que descreve a ação dos farofeiros, Carla Leirner menciona uma interpretação parecida. Segundo ela, "há quem as considere (as pessoas farofeiras) o retrato acabado de tudo aquilo que o Brasil possui de pior em matéria de boas maneiras, de higiene e de falta de charme, elas são o supra-sumo do brega, a gentinha cafona que suja as praias, a malta que não conhece o seu lugar" (Leirner 1990: 18). Esta é, pelo menos, a opinião que as classes privilegiadas têm dos fatos mencionados. Mas, será que estas superaram a fase anal? Veremos abaixo que não.
Há uma outra fonte independente que comprovaria a explicação psicanalítica. É a da aquisição da linguagem. Sabemos que esta passa por etapas também. Na primeira fase da primeira etapa, ou seja, no início da aquisição ontogenética (e, provavelmente também da filogenética) da linguagem, o indivíduo sofre estímulos do mundo exterior. Com a repetição, tais estímulos se fixam na memória da criança, sob a forma de impressões. Essas impressões recebem o nome de perceptos, pois são como que unidades de percepção. Com a intensificação da relação da criança com o objeto percebido, ocorre um salto qualitativo. Ou seja, ela aprende que os outros (a mãe, os irmãos, o pai, etc.) também se comportam como ela frente ao objeto de suas impressões. Nesta fase ela se dá conta de que há um som associado ao objeto e passa a reproduzi-lo. Trata-se, portanto, não mais de mero percepto, mas de um conceito. Em suma, a linguagem surge no momento da socialização da criança (Bickerton 1981: 221-234). Como se vê, os depredadores, os poluidores estão apenas na primeira fase de desenvolvimento da linguagem, fato eminentemente social. Eles ainda não têm domínio da linguagem coletiva, ainda não estão socializados. Cada um fala como quer, cada um faz o que quer, ignorando por completo o direito do outro. Ainda não chegaram à fase do conceito que, etimologicamente é cum+captum (captado com, percebido com). Cada um tem sua representação individual do mundo e como tal age. Cada um tem sua linguagem individual (se é permitido falar assim), não há uma linguagem comum, coletiva.
Há uma corrente filosófica que considera a linguagem como primordial e primariamente meio de expressão do pensamento, como a de Comsky (1972) e seguidores/predecessores (cf. também Bickerton 1981). Para os adeptos dessa corrente, sobretudo para a chamada gramática gerativa, de filiação platônica e cartesiana, a língua é um mero sistema de regras que permitem ao indivíduo formar frases corretas, independentemente de serem adequadas a determinada situação de comunicação ou não. Enfim, eles deixam de lado uma dimensão importantíssima da linguagem em geral e da língua em especial, qual seja, o uso. Assim, é claro que os indivíduos que praticam os atos mencionados acima têm na cabeça todas as regras para formar frases. Acontece que não sabem usá-las, e por isso não se comunicam. Não basta ter o instrumento; é necessário saber manuseá-lo. Se os partidários da gramática gerativa tivessem razão, os fatos narrados acima estariam justificados. No entanto, a linguagem é basicamente um meio de comunicação, embora seja também um meio de expressão do pensamento individual. A única possibilidade de existência de uma linguagem é em uma comunidade. Tanto que as duas se pressupõem mutuamente: não há comunidade sem uma linguagem que a unifique bem como não há linguagem sem uma comunidade que a produza e a use. A linguagem só surge com a socialização. Assim sendo, quanto mais coesa uma comunidade, mais coesa será sua linguagem, ou seja, todos atribuirão o mesmo significado às palavras e haverá um mínimo de mal-entendidos. Não se dará o que foi narrado acima sobre a situação brasileira, em que cada um quer se expressar -- como quer e bem entende -- sem levar em consideração o outro. Cada um procurará se expressar de modo a ser entendido pelos outros, levará em conta o outro, a sociedade. A linguagem é expressão do pensamento, mas o próprio pensamento é formado coletivamente. Portanto, aquilo que o indivíduo expressa é algo eminentemente social. Os próprios significantes -- as "palavras", em termos laicos -- que ele usa foram criados pelos membros de sua comunidade que o precederam. Não há como fugir à socialidade da linguagem.
Cláudia Raia, uma atriz presumivelmente bem informada, também ignora que a linguagem é socializada. Segundo ela, quando um motorista de táxi lhe pede para não fumar dentro de seu veículo, por não ser fumante, está tolhendo a liberdade que ela tem de fumar. Os não fumantes seriam patrulheiros, pois não lhe permitem poluir seus pulmões. Nas suas palavras, "os que não fumam querem me proibir de fumar, sem mais nem menos. Não se trata de gente preocupada com minha saúde. Os patrulheiros do antitabagismo não me conhecem, não freqüentam minha casa, não são meus credores e não lhes devo nada" (RAIA 1990: 102). Ignorando o fato de um amigo me ter dito que ela parece ter o cérebro nas nádegas, nota-se claramente que de acordo com a psicanálise ela não superou a fase de desenvolvimento infantil anal-expulsiva (ou anal-sádica). Ela acha que para ter sua liberdade individual respeitada, deve poder jogar baforadas na cara de qualquer um que tiver o azar de se encontrar perto dela. Do ponto de vista da aquisição da linguagem, portanto, ela ainda não superou a fase individual, infantil do percepto. Ainda não se socializou, pré-requisito fundamental da linguagem. "Le monde c'est moi', segundo sua lógica glútea.
É bem verdade que tanto fumantes quanto não-fumantes têm direitos. Acontece que, do ponto de vista da interação do homem com a natureza, o direito dos não-fumantes deveria prevalecer, pelo menos numa coletividade em que houvesse uma consciência social marcante. Com efeito, o exercício do direito dos não-fumantes não polui o ambiente, logo não prejudica a saúde de ninguém. Já o exercício do direito dos fumantes prejudica a saúde de todos que são obrigados a conviver com eles, polui todo o ambiente. Trocado em miúdos, o exercício do direito dos fumantes constrange os não-fumantes a serem fumantes passivos. Qualquer pessoa tem o direito de prejudicar a própria saúde. Tem o direito inclusive de se suicidar. Tanto assim que freqüentemente se ouve alguém dizer que o lembrete legal, nos anúncios de cigarros, de que o fumar prejudica a saúde lhe excita a vontade de fumar. Trata-se de auto-poluidores conscientes. No entanto, a natureza - para não dizer a sociedade - diz que eles não têm o direito de prejudicar a saúde do outro.
Certa feita ouvi alguém dizendo que se deveria liberar as drogas e proibir o cigarro. Segundo essa pessoa, quem toma cocaína prejudica só a si mesmo, ao passo que quem fuma prejudica todos que estejam por perto. A mesma pessoa sugeriu um nome para os fumantes inconscientes. Segundo ela, estes deveriam ser chamados chambus (chaminés ambulantes) ou candeas (canos de descarga ambulantes). Acrescentou ainda que, pessoalmente, prefere o primeiro nome, por ser mais eloqüente do ponto de vista fonético. Mas,  voltemos à questão psicanalítica.
Tudo parece muito bem explicado. Ninguém negaria as associações feitas acima, ou seja, o associar o comportamento individual do adulto com o da criança em determinada fase de desenvolvimento. Acontece que a psicanálise foi criada para explicar "a vida psíquica do homem tornado ser social", isto é, do homem enquanto indivíduo. Portanto, ela não serve para interpretar fenômenos sociais. Ela "pode desempenhar, relativamente à sociologia, o papel de ciência auxiliar, por exemplo sob a forma de psicologia social". Têm razão aqueles que "criticam os psicanalistas por quererem explicar o que, com a ajuda deste método, não é explicável" (REICH 1983: 20). A explicação para tais fenômenos tem que partir de uma das ciências sociais, nas quais se inclui a ciência da linguagem.
2.2. Interpretação histórico-determinística
Uma interpretação muito freqüente para o caos, a desagregação social, enfim, a falta de uma linguagem comum que permita a intercompreensão entre nós sem agressão ao meio ambiente (natural e social) se enquadra num determinismo histórico. Interessantemente, é essa visão que o leigo em geral tem do fenômeno em questão. Mais interessante ainda, essa interpretação tem muito a ver com a psicanalítica.
O determinismo histórico explica o estado de coisas que vemos hoje no Brasil associando-o ao fato de termos sido colonizados por Portugal. Se tivesse sido a Inglaterra ou a Holanda (que bem que o tentou lá em Pernambuco) a realidade seria bem diferente. Encontramos este ponto de vista defendido não só por leigos e pelo senso comum. Grande parte dos estudos clássicos de interpretação da realidade brasileira também o perfilha. Um deles é, por exemplo, o de Holanda (1979). Segundo esse autor, o individualismo, o personalismo, enfim, "a falta de coesão em nossa vida social...de lá veio", ou seja, de Portugal. Como conseqüência, "o princípio unificador foi sempre representado pelos governos", isto é, "por uma força exterior respeitável e temida" (p. 4-9). Para ele, o que move o brasileiro no que se refere à busca de um objetivo comum não é a cooperação, mas talvez mesmo uma rivalidade, embora tenha sugerido os conceitos de "cooperação" e  "competição" (p. 30). A rivalidade seria o lado antagônico da  competição. No entanto, veremos abaixo que tais conceitos não opõem portugueses e espanhóis, por um lado, e ingleses e holandeses, por outro lado. Tanto lá quanto cá temos os dois aspectos. Enfim, partindo daí o autor procura explicar diversas facetas da vida social brasileira. Uma delas é o mito da cordialidade do brasileiro. Ele demonstra que toda manifestação tipicamente brasileira que é interpretada como cordialidade não passa de mera fachada, para repetir o que Antônio Cândido disse no prefácio a seu livro (cf. Gomes 1980).
Outro autor que tentou analisar o caráter do brasileiro, por oposição ao do norte-americano, é Moog (1973). Enfocando a questão de outro ângulo, também ele justifica o estado de coisas brasileiro atual com base na colonização portuguesa. O Leitmotiv do livro é uma tentativa de resposta à seguinte pergunta: por que "de repente, a certa altura do século XIX entram os Estados Unidos a progredir em alucinante progressão geométrica, enquanto o Brasil se arrasta numa simples progressão aritmética?" (p. 44). Moog rechaça várias explicações, tais como uma pretensa superioridade e pureza racial dos norte-americanos, fatores geográficos, fatores econômicos como a presença do carvão, etc. Segundo ele, o motivo da diferença deve ser buscado na maneira como se deram os dois processos de colonização. O fator decisivo, o ponta-pé inicial da colonização inglesa estava embebido em um espírito empreendedor, de origem calvinista. Além do mais, "os primeiros povoadores das colônias inglesas da América, principalmente os puritanos do Mayflower, não vieram para o Novo Mundo só ou predominantemente em busca de minas de ouro e de prata e de riqueza fácil. Vieram, isto sim, acossados pela perseguição na pátria de origem, em busca de terra onde pudessem cultuar o seu Deus, ler e interpretar a bíblia, trabalhar, ajudarem-se uns aos outros e celebrar o ritual de seu culto, à sua maneira. Ao embarcarem, trazendo consigo todos os haveres, mulheres e filhos, deram as costas à Europa, para fundar deste lado do Atlântico uma nova pátria, a pátria teocrática calvinista" (Moog 1973:88).
A colonização portuguesa ter-se-ia dado de modo diametralmente oposto. Vieram para cá não a elite, como os religiosos do Mayflower, mas a escória da sociedade portuguesa, fazendo da colonização do Brasil uma solução econômica para os presídios portugueses. Vinham para cá, portanto, aventureiros, que sempre tinham na cabeça a idéia de voltarem ricos e prestigiados para Portugal o mais rapidamente possível. Dentro deste espírito, agiam aqui como predadores, a fim de se locupletarem em pouco tempo. Tudo era para ser usado e abusado, não assimilado. Depredavam a natureza à procura de minérios e outras riquezas. As mulheres nativas (índias e negras trazidas como escravas da África) serviam apenas para satisfazer suas necessidades sexuais. Assim que podiam, voltavam para Portugal, deixando-as para trás, freqüentemente com uma imensa prole de mestiços. Daí adviria a mentalidade machista segundo a qual toda mulher é uma parceira sexual potencial, exceto naturalmente a esposa, a própria mãe, as irmãs e as filhas. Enfim, a ausência de uma linguagem comum no Brasil seria  conseqüência da colonização portuguesa, por oposição à  mentalidade calvinista que enformou a colonização inglesa na América do Norte; seria a diferença entre uma colonização feita pelo escol e uma colonização feita pela escória.
A presente interpretação é reforçada, no senso comum, por um argumento aparentemente imbatível. Com efeito, pergunta-se: "por que todos os países colonizados por Portugal e Espanha são ainda hoje repúblicas-bananas, com generais dando golpes de estado a toda hora, sendo que todo país colonizado pela Inglaterra (EUA, Canadá, Austrália, a parte branca da África do Sul) pertence ao chamado primeiro mundo?". Sem tentar responder essa pergunta, eu gostaria de pelo menos lembrar que os países colonizados pela Holanda, que está no mesmo nível que a Inglaterra, também são hoje do "terceiro mundo", subdesenvolvidos. Além disso, há vários países colonizados pela Inglaterra também que são hoje subdesenvolvidos, como é o caso da Guiana.
 
2.3. Interpretação dialética
Tanto a interpretação psicanalítica quanto a histórico-determinística são verdadeiras parcialmente. Daí o perigo que representam. Se fossem redondamente falsas seriam recusadas in limine e não haveria problema nenhum. Acontece que são lobos na pele de cordeiro, apresentam uma parte do fenômeno como se fosse o todo, ou seja, apresentam sua aparência superficial, seu efeito, como se fosse a realidade interna, como se fosse a causa verdadeira e única. A totalidade, as relações profundas do fenômeno, ou seja, suas causas reais são silenciadas. É bem verdade que os farofeiros paulistas e assemelhados bem como todos os depredadores e vândalos agem como quem não superou a fase anal-sádica de desenvolvimento psíquico. É bem verdade também que se o Brasil tivesse sido colonizado por calvinistas ingleses ou pela Holanda a realidade seria diferente, inclusive em termos de fronteiras, devido ao grau de desenvolvimento sócio-econômico a que chegaram bem antes de Portugal e Espanha. Mas, isso é apenas uma pequena parte do problema. Assim sendo, tais conclusões não são propriamente falsas, mas falazes, parciais, logo, enganadoras. Tanto que coincidem até certo ponto, ou seja, ambas tentam explicar o fenômeno por uma presumível imaturidade do brasileiro: imaturidade psíquica, no caso da explicação psicanalítica, e imaturidade histórico-social, no caso da explicação histórico-determinística.
Eu estou consciente das críticas a que fica exposto quem ousa falar hoje em dia em dialética, por razões inteiramente diferentes das que a estigmatizavam na época da ditadura militar. Devo notar, no entanto, que os verdadeiros dialéticos nunca aceitaram os regimes totalitários que se instalaram em nome da dialética no Leste Europeu e em outras partes do mundo (já em 1961 Erich Fromm, entre outros, os condenava; cf. Fromm 1970: 13-18). Assim, não importa que alguns intelectuais (freqüentemente ex-marxistas) a considerem oportunisticamente ultrapassada. O que levo em consideração é apenas o seu poder explicativo para os fenômenos sociais. A verdadeira dialética do materialismo histórico e do materialismo dialético é dinâmica, portanto não dogmática e estática como o arremedo de dialética que se via na ex-União Soviética e em outros países que se intitulavam socialistas, comunistas, marxistas.
Desde os Manuscritos Econômicos e Filosóficos, passando pela Ideologia Alemã (em parceria com Engels) até O Capital, Marx sempre enfatizou a liberdade do indivíduo, às vezes até mesmo condenando o estado como seu opressor. Só que indivíduo para ele é o indivíduo social, uma vez que sem a coletividade o próprio conceito de indivíduo inexistiria. Valorizar o indivíduo não é o mesmo que criar individualismos, personalismos. Estes privilegiam alguns poucos indivíduos, personalidades, em detrimento da grande maioria dos indivíduos, que ficam impessoalizados e esquecidos, à margem. Enfatizar o social, a totalidade, não é o mesmo que criar totalitarismos. O primeiro equívoco foi cometido no Brasil, entre outros países subdesenvolvidos e/ou de capitalismo selvagem. O segundo tipo de equívoco foi cometido pela ex-União Soviética, entre outros países "socialistas".
Na Ideologia Alemã, inter alia, Marx formulou de maneira brilhante a causalidade da história. Segundo ele, o primeiro ato histórico é a produção dos meios de subsistência. Ou seja, é na práxis social da intervenção na natureza com o fito de produzir os bens de consumo necessários à manutenção da vida humana que o homem começa a produzir história. Tudo o mais é decorrência deste feito original e originário. Intimamente ligada à produção está a distribuição dos bens de consumo. Numa situação ideal, a produção depende da distribuição e a distribuição depende da produção. Acontece que nos países em que domina a lei da competição, nem sempre a distribuição está assim tão bem afinada com a produção. Pode ocorrer -- e freqüentemente ocorre -- de haver uma grande produção ou um grande potencial de produção, mas a distribuição ficar restrita a uma pequena parcela da comunidade. E aí começam as desigualdades. É claro que as maiorias marginalizadas percebem essa perversão e, freqüentemente, reagem à altura. Elas notam que os privilegiados têm um poder de barganha muito maior, têm um poder expressivo muito mais eficaz, muito mais persuasivo.
Como muito bem mostrou Rossi-Landi (1985), o homem produz não só mercadorias, meios de subsistência física, mas também linguagem. Logo, quem produz a linguagem é a mesma coletividade que produz os próprios meios de subsistência. E o que é mais, a linguagem é parte integrante tanto da produção quanto da distribuição dos bens de subsistência. Por isso, não têm razão aqueles que acham que a força motriz da produção de riquezas são os grandes homens empreendedores (sozinhos?) e a da linguagem os gramáticos, os filólogos e os escritores clássicos (sozinhos, sem o povo?), os "mestres". Enfim, para uma visão dialética ou, mais especificamente, histórico-dialética, a causa do descalabro e do caos social em que vivemos está intimamente ligada ao modo de produção e apropriação (distribuição) dos bens de subsistência, ou seja, é sócio-econômica. Está ligada ao espírito de rapinagem e predador do bem público e da natureza por parte das pessoas privilegiadas, como os já mencionados larápios-mores P. C. Farias e João Alves.
Por que o povão se comporta como crianças que estão na fase anal-sádica do desenvolvimento psíquico? Por que a mentalidade individualista, predatória, ibérica, tem a ver com o atual estado de coisas? Simplesmente porque tanto na época da colonização como hoje e tanto na Inglaterra quanto na Holanda e na Península Ibérica (bem como alhures) os bens de consumo são produzidos pela maioria, mas usufruídos por  uma pequena minoria de privilegiados que pensam como Cláudia Raia. Os colonizadores da América do Norte eram efetivamente mais evoluídos economicamente do que os ibéricos. Construíram a nação mais rica da face da terra, mas dizimando os índios e discriminando os negros, criando uma das sociedades mais perversas do mundo. Ao lado das maiores fortunas individuais do globo existe uma pobreza marginalizada, cujo conflito produziu uma das sociedades mais violentas que se conhece. Enfim, tanto na época da colonização como hoje, havia, tanto lá como cá, distorções sociais. Essas existiam não só a nível nacional, mas também internacionalmente. Tanto assim que Portugal foi sempre subjugado pela Inglaterra, desde a época da colonização.
Dado o estágio mais avançado em que se encontrava a Inglaterra, ela pôde subjugar as nações mais fracas e com isso desenvolver-se mais intensamente do que elas. Com isso, criou-se uma massa de bens de consumo muito maior do que permitiam as forças produtivas e as relações de produção dos países colonizados por Portugal e Espanha. Assim sendo, tanto na Inglaterra quanto nos países por ela colonizados foi possível à grande maioria ter pelo menos o mínimo necessário para a sobrevivência. Nos países ibéricos isso não se deu. A grande maioria da população estava marginalizada da participação nos bens de consumo. Ou melhor, ela não lhe garantia nem o mínimo necessário para não morrer de fome. Grandes contingentes populacionais estavam e estão morrendo de fome ou definitivamente inanes. Aí está a diferença que Moog não conseguiu captar. Por outras palavras, as causas são múltiplas, mas redutíveis todas ao fator sócio-econômico.
Devido ao alto nível de informação criado pelos meios de comunicação de massa, hoje todo mundo tem uma visão do que se passa. Antigamente, devido ao isolamento geográfico, entre outros, o homem simples não tinha a menor idéia de como era a vida áulica. Hoje ele tem algum acesso a informações sobre grande parte das falcatruas cometidas por quadrilhas que assaltam o poder, como a do senhor Paulo César Farias -- vulgo PC -- com a conivência e usufruto do próprio presidente da república de então, Fernando Collor de Mello, e da chamada "máfia do orçamento", sob o comando do ex-deputado João Alves. Felizmente, o poder legislativo e o judiciário deram uma lição de democracia, pois alijaram o presidente inteiramente dentro da legalidade constitucional. Isto foi uma virada na história do Brasil, pois até aqui sempre que ocorriam fatos semelhantes viam-se logo os tanques nas ruas e um general assaltando o poder para manter a ordem -- das minorias privilegiadas.
Aquele que depreda um bem público e/ou natural tem, mesmo que no subconsciente, o sentimento de que aqueles que detêm o poder (político-econômico) estão numa boa e fazem coisas piores. Usam o dinheiro público em proveito próprio, têm mordomias, são corruptos e estão acima da lei. Tanto que não se vê um rico na cadeia. O depredador pobre sente (sabe) que a minoria privilegiada depreda em alta escala mas se sai ilesa. Sabe que os ladrões de casaca e de colarinho branco não deixam pegadas nem impressões digitais. Todo mundo sabe quem rouba, mas não há provas concretas. Portanto, conclui a lei, não podem ser presos. Diante disso, para que ele, que é pobre e miserável, sem onde cair morto, vai se preocupar com preservar isto ou aquilo? Ele simplesmente segue o exemplo das elites privilegiadas socio-economicamente. Só que ele o faz naquilo que é mais visível a olho nu, isto é, diretamente. Por isso, seus atos são imdiatamente identificados. Os dos privilegiados (mordomias, gordas verbas de representação, residências e carros oficiais, corrupção, desgoverno, crimes do colarinho branco, aposentadorias duplas, triplas, quádruplas e até múltiplas, além de outras maracutaias legais-imorais = lerais) são invisíveis de imediato, o povão não tem acesso a eles. O problema é que o efeito dos atos dos predadores da elite é insidioso e duradouro. A conseqüência de tudo isso é que o bem público no Brasil é aquilo que não é de ninguém, ao passo que nos países em que há forte consciência social ele é aquilo que é de todo mundo.
O trabalhador de salário mínimo dá um duro muito maior do que o magnata da indústria ou o especulador ou o assessor parlamentar, com seus salários estratosféricos pagos pelo contribuinte. No entanto, não consegue garantir nem o mínimo para o próprio sustento e o de sua família. O desempregado sabe que penduradas no estado estão muitas pessoas ociosas, algumas delas com supersalários, embora sejam apenas ASPONEs. Diante do exposto, por que os farofeiros vão se preocupar com manter a praia limpa? Por que os depredadores de orelhões e outros bens públicos vão ter pudor? Se a linguagem vigente é o levar vantagem sobre os outros, é o salve-se quem puder, é o dizer o que se quer ignorando o interlocutor, então os marginalizados violam túmulos à procura de dentes de ouro para vender (e se alimentar), assaltam residências para conseguir algum dinheiro para se vestir, morar e comer. Se os ricos jogam seu lixo na via pública para manter o seu luxo, para que se preocuparem os pobres em dar descarga na privada após usá-la? Aliás, os ricos também não dão. Os banheiros dos aeroportos são mais limpos do que os de uma estação rodoviária do interior do país não porque aqueles que viajam por via aérea tenham mais consciência cívica do que os que mal conseguem viajar de ônibus, mas porque nos aeroportos há sempre um empregado para limpá-los sempre que algum "cavalheiro" engravatado os suja. Se as indústrias, os ricos e a classe média tripudiam o bem público e a natureza, os pobres e descamisados -- para usar uma palavra que esteve em moda durante o curto período do corrupto governo Collor -- repudiam tudo fazendo o mesmo.
Um outra alternativa de explicação para os fatos descritos e analisados acima seria uma imaturidade social (já referida acima) do brasileiro em especial e dos latinos em geral. Segundo essa intepretação, o brasileiro seria individualmente maduro. Tanto que quando emigra para países do Primeiro Mundo se sobressai, podendo ser um competidor dos nascidos lá em pé de igualdade. No entanto, ele não teria maturidade social semelhante à dos povos desses países. Essa tese tem algum sentido. Aliás, ela não está em dissintonia com nenhum dos fatos supra-mencionados. O problema é que, dialeticamente, é impossível uma sociedade madura composta de indivíduos imaturos bem como é impossível uma sociedade imatura constituída de indivíduos maduros. Isso porque "o indivíduo é o ser social". Por outras palavras, "embora o homem seja um indivíduo único - e é justamente esta particularidade que o torna um indivíduo, um ser comunal realmente individual - ele é igualmente o todo, o todo ideal, a existência subjetiva da sociedade como é pensada e vivenciada" (Marx 1970: 119).
O grande problema com todas as tentativas de explicação mencionadas acima é sua unilateralidade. Por outras palavras, é o tomar a aparência superficial e, portanto, apenas uma parte do fenômeno, como se fosse o todo. Cada uma só vê um lado da questão e, com isso, só uma causa para tudo. Caem na esparrela da unicausalidade. Ora, não é necessário praticar um ecletismo à la Victor Cousin para perceber que a dialética procura encarar o fenômeno como um todo, em suas múltiplas interralações. Assim sendo, só a pluricausalidade pode dar conta dos fatos em tela. Com isso, grande parte das causas mencionadas acima tem alguma dose de verdade. No entanto, do ponto de vista da dialética é preciso distinguir entre causalidade principal e causalidades secundárias. Assim, a causa principal, o motor que empurra todas as outras, sejam elas quais forem, é sócio-econômica, como vimos acima. As outras são caudatárias dela, são secundárias. Tomar qualquer uma delas como se fosse a causa é o mesmo que tomar um afluente como se fosse o rio principal.
Sumariando a interpretação dialética da ausência de uma linguagem que permita a interação (=comunicação) sem ruídos ou interferências (mal-entendidos e até não-entendidos), pode-se dizer que em princípio não há sociedade madura (=com uma linguagem plenamente funcional) composta de indivíduos imaturos (=que não conhecem essa linguagem). Do mesmo modo, não é possível uma sociedade imatura composta de indivíduos maduros. Porém, a totalidade que é a sociedade não é homogênea. Pelo contrário, há diversos segmentos com interesses antagônicos em seu seio. Dois desses segmentos são o da elite privilegiada e o do povão sem instrução, apesar do eco fonético.
Se substituirmos "maturidade" por "consciência" e "imaturidade" por "incosciência", respectivamente, entenderemos melhor a aparente contradição recém-mencionada. No caso, poder-se-ia dizer que a sociedade brasileira como um todo é imatura, ou melhor, inconsciente. Porém, em seu interior há bolsões de "maturidade", de consciência. Explicando melhor, as elites têm consciência não só dos efeitos do descalabro que tem sido a vida político-econômino-social brasileira. Elas têm, outrossim, consciência das causas desse descalabro, dessa desorganização. Por quê? Simplesmente porque são elas que têm acesso às informações quase ao nível das elites do Primeiro Mundo. Portanto, cabe a elas o  ônus de não levar essas informações ao povão.
"Levar informações ao povão" significa levar educação, ensinar às crianças nas escolas e, na medida do possível, aos adultos também. Em vez de fazê-lo, as elites pilham o erário público como podem. Como é essa informação-educação que levam ao povão, esse age por imitação, outra vez com perdão do eco. Portanto, a culpada imediata pela ausência de uma linguagem comum que harmonize a sociedade brasileira e permita a interação entre seus membros de maneira civilizada é dessas elites predadoras do ambiente natural e do social.           
 
3. Observações finais
O resultado concreto de tudo que vimos é que todos agem como se "après moi le déluge". Cada um pensa: se já resolvi meu problema, para que vou pensar nos que virão depois de mim? O pior é que sua inconsciência não lhes permite perceber que eles próprios podem voltar ali, e encontrar tudo como deixaram, ou seja, imundo. E mais, não lhes passa pela cabeça que se agem assim fazem com que outros façam o mesmo. Cada um deles com certeza só pensa assim: posso fazer tudo que imediatamente facilite minha vida, pois sou livre (cf. RAIA 1990). Dado o individualismo em cujo contexto se insere esse modo de pensar, o indivíduo em questão não se dá conta de que onde todo mundo faz tudo que quer, sem atentar para o limite dos direitos do outro, reina a anarquia em seu pior sentido. Não a anarquia de Bakunin e Kropotkin, entre outros, mas a anarquia da natureza, ou melhor, a ordem da natureza, em que prevalece o mais forte. Em determinadas circunstâncias isso até poderia lhe ser favorável, mas em outras ele pode ser mais fraco e, conseqüentemente, perder.
A instância que escolhi para mostrar como se relacionam os intivíduos entre si e com o ambiente (natural e social), ou seja, como se relacionam o público e o privado, é a privada, o banheiro público. Mostrei que a linguagem é o índice maior de socialidade de determinado agrupamento humano, isto é, ela é o domínio público por excelência. A linguagem está para o público assim como seu uso está para o individual (Saussure 1969). Logo, onde quer que os indivíduos se expressam mal (seja lá qual fôr o sentido que se dê à locução "expressar-se mal"), é porque a linguagem (coletivo) vai mal. É impossível a linguagem estar bem e os indivíduos se expressarem mal, como crêem alienadamente os gramáticos e os filólogos, bem como os que perfilham sua ideologia. Assim, se o nível de consciência social é elevado, cada ato individual refletirá essa consciência. Se fôr baixo, os atos individuais também o serão. Em suma, os atos individuais, as manifestações individuais, são o verdadeiro diapasão para se avaliar o nível de consciência social.
Observando os fatos narrados no item 1 acima, verificamos que o povo realmente não tem educação. "É uma questão de berço!", diriam os elitistas. Acontece que a própria elite perpetra atos piores ainda que os do povão, como vimos. Assim, ela própria não teria "berço". O fato é que a maior culpa pela falta de educação do povão, isto é, de uma linguagem comum que harmonize as relações entre todos os brasileiros está com a própria elite. Com efeito, é ela que tem acesso a um grande número de informações. Portanto, ela é que deveria educar o povão. Como não o faz mas, pelo contrário, o deseduca com seus exemplos, assume todo o ônus da culpa. 
Dizem que o indivíduo é produto do meio. Acontece que o próprio meio é produzido pela totalidade dos indivíduos em sua práxis social de produção dos meios de subsistência. Deduz-se daí que é o modo de produção-distribuição que enforma o modo de ser, de se comunicar, de se expressar, dos indivíduos e da coletividade. Ora, o lugar onde todo indivíduo se exprime sem nenhum tipo de coerção é na privada. É onde ele se mostra por inteiro, como de fato é, como o modo de produção em que se criou levou-o a ser e a se expressar, inclusive com sua participação. Ele se comporta de determinada maneira no banheiro de sua casa, mas de outra totalmente diferente no banheiro público. No primeiro ele ele defeca e urina, e faz questão de mantê-lo limpo. No segundo ele caga e mija e vai embora sem dar descarga, além de jogar papel no chão e escrever palavrões nas paredes, coisa que tampouco faria no banheiro de sua casa.
Segundo Umberto Eco, numa situação inicial de formação de uma comunidade, cada indivíduo precisa interiorizar o seguinte: "... não me devem impedir de cagar, mas se eu venho cagar em sua casa, não está certo. Então, fazemos, um acordo, eu não cago em sua casa e você não caga em minha casa e nenhum de nós caga no meio da rua. Também sobre o uso da língua" (Eco 1995:5). Infelizmente, parece que nem esse acordo vital inicial foi feito no Brasil. Como vimos, há pessoas que efetivamente cagam na casa do outro e às vezes ambos cagam na rua. Daí a metáfora que usei para criticar, de maneira um tanto acerba, a mentalidade individualista que impede que o Brasil vire um país de Primeiro Mundo, apesar de suas imensas riquezas naturais. Por tudo isso, eu termino, não sem uma ponta de vergonha e de tristeza, dizendo que quem quiser descobrir no público como é o privado, e vice-versa, é só ir à privada, isto é, ao banheiro público.
 
[OBS.: Este texto foi escrito há cerca de 30 anos atrás. Hoje em dia, ser-lhe-ia dada uma interpreação ecológica, que seria a mais atual.]

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Todos são iguais perante a natureza

"Todos são iguais perante a lei" uma ova! E os foros privilegiados? Eles sugerem que crime e delito cometidos por quem tem poder são menos "crime" e menos "delito" do que os cometidos por quem não o tem. Se esse princípio da Constituição valesse mesmo, presidente da república, ministros do Supremo Tribunal Federal, senadores, deputados e demais "intoridades" deveriam estar sujeitos à lei a que qualquer cidadão está sujeito. Por que eles não podem ser processados em primeira instância? São superiores aos demais cidadãos, deuses? A palavra "democracia" (governo do povo) não vale? Apontar seus crimes e delitos é crime de lesa-pátria, pois eles são o estado: "l'état c'est moi"!

Esta postagem foi motivada pelo princípio, consignado na constituição brasileira, de que todos são iguais perante a lei. Partindo dele, pretendo discutir quatro coisas. Primeiro, que o que ele enuncia está longe de ser verdade na prática. Segundo, que há um princípio muito mais válido, o de que todos são iguais perante a natureza. Este sim, não admite nenhuma exceção, por mais "importante", rica e "bonita" que a pessoa seja. Terceiro, que o primeiro princípio se insere no contexto do direito formal, ao passo que o segundo está mais do lado do direito natural. Este é universalmente democrático, sem nenhuma concessão, sem nenhuma adjetivação. Quarto, que os princípios do direito natural, aí incluso o de que todos são iguais perante a natureza, estão em perfeita sintonia com a análise do discurso ecológica (ADE), parte da vertente da ecolinguística praticada no Brasil, chamada linguística ecossistêmica. Este último é por assim dizer o objetivo principal deste despretensioso ensaio.  
No Artigo 5, Capítulo I (Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos), do Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais) da Constituição1 brasileira, está escrito que "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes" [não enumerarei esses termos, uma vez que são irrelevantes para os fins aqui colimados]. Doravante, vou me referir apenas à parte substancial do Título II deste Capítulo, que expõe um princípio frequentemente evocado, tanto no meio jurídico quanto fora dele, ou seja, o já mencionado de que "todos são iguais perante a lei". Muitos advogados, juízes e outros especialistas da área jurídica o pronunciam com a boca cheia quando lhes convém. No entanto, se o princípio se mostrar contrário a determinados interesses momentâneos, aparecem "leis complementares", interpretações, "acórdãos" e quejandos que relativizam sua aplicação.
Interessantemente, o Capítulo I do Artigo em que o princípio está inserto fala em "Direitos e Deveres Individuais e Coletivos". As "grandes autoridades", todos aqueles que se consideram muito "importantes" se veem como imunes a esse princípio no que tange a "Deveres". Ele só lhes interessa quando se trata de "Direitos". Para usar uma conhecida expressão italiana, o princípio de que todos são iguais perante a lei é válido ma non troppo. Isso se deve ao fato de haver toda uma série de exceções a ele quando se trata de gente "importante".
Uma das primeiras exceções é o famigerado "Foro especial por prerrogativa de função" para parlamentares e outros, com todo o ônus que ele representa para o Supremo Tribunal Federal, abarrotando-o de processos, e para a sociedade em geral. O Artigo 102 diz, no caput, que "Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe", entre outras coisas, o que está estipulado no Inciso I, ou seja, "processar e julgar, originariamente" as autoridades mencionadas na letra b, que são "o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República".
Uma segunda exceção diz respeito a quem tem "diploma de curso superior". Na verdade, o Código de Processo Penal, de 1941, é muito mais amplo e generoso em relação a pessoas "importantes". A conhecida "lei do diploma de curso superior" é apenas uma de uma lista de mais de 12 privilégios inscritos nesse código, que diz o seguinte: Artigo 295: “Serão recolhidos a quartéis ou a prisão especial, à disposição da autoridade, quando sujeitos a prisão antes da condenação definitiva” onze categorias de pessoas. Entre elas estão "VII - os diplomados por qualquer das faculdades superiores da República"3. Na verdade, trata-se de privilégios que se sobrepõem largamente aos de "foro especial", melhor, de "foro privilegiado", consignado na Constituição.
Uma terceira exceção que eu gostaria de aduzir é o tratamento dado a pessoas sob custódia da justiça, a partir do próprio momento da detenção. Além de várias comodidades, no momento de interrogatórios, as pessoas "importantes" são tratadas por juízes, delegados, policiais etc. por "excelência, "senhor/a" etc., ao passo que as pessoas simples, principalmente quando pobres, são geralmente algemadas, chamadas de "elemento", "meliante", "delinquente", "marginal", "bandido" etc.
Há ainda muitas outras exceções, de situações de privilégios de pessoas ricas, "importantes". Algumas delas se dão no que tange ao direito à saúde, à moradia e ao respeito que todos merecem, pelo simples fato de serem pessoas ou, mais ecologicamente, por serem seres vivos que sofrem.
Diante de tanto privilégio, como se pode dizer que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza"? Como ninguém se mexe para reverter essa situação? Será porque muitos temem que podem ser o próximo? Chega a ser uma desfaçatez de quem formulou, defende e aplica essas leis. Elas chocam gritante e frontalmente contra o princípio constitucional de que todos são iguais perante a lei. Esse princípio inclusive tem o complemento de que ele se aplica "sem distinção de qualquer natureza". Há uma incoerência flagrante entre esse princípio e a prática. Por outras palavras, os próprios responsáveis pela formulação, observância e aplicação da lei a desreipeitam.
Aqui seria interessante lembrar o que disse o escritor inglês George Orwell, no conhecido livro Animal farm (Londres, 1945), traduzido como Revolução dos bichos. Ao longo de todo o livro ele diz que "todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que os outros". O mesmo vale para o famigerado princípio constitucional brasileiro, que deveria ser redigido assim: "Todos são iguais perante a lei, mas alguns são mais iguais do que os outros". Tanto que popularmente surgiu a expressão "para os amigos, tudo! para os inimigos, os rigores da lei'. Outras versões dizem: "Para os amigos tudo; para os inimigos, cadeia; para os indiferentes, a lei". 
Por esses e outros motivos, vamos comparar tudo que acaba de ser visto com a visão de mundo ecológica (VEM), defendida principalmente por Capra (1998), entre muitos outros autores. Nesse contexto se insere a análise do discurso ecológica (Couto 2013, 2014; Couto, Couto & Borges 2015). Como já adiantado acima, ela é uma extensão da linguística ecossistêmica (Couto 2015), ramo brasileiro da ecolinguística (Couto 2007). Por isso a ADE foi inicialmente chamada de linguística ecossstêmica crítica, por sugestão da análise do discurso crítica, praticada por grande parte dos ecolinguistas europeus e, é claro, da própria linguística ecossistêmica. Como não poderia deixar de ser, a análise do discurso ecológica fica do lado do direito natural, defendendo que "todos são iguais perante a natureza". Isso pode ser comprovado em toda a literatura sobre o assunto já disponível sobre ADE, que inclui ainda Fill (1987, 1993) e Alexander & Stibbe (2014), entre outros.
A ADE parte não de ideologias nem de relações de poder, como é de praxe em praticamente todas as versões de análise do discurso tradicionais. Por se inserir na visão ecológica de mundo, ela se baseia tanto na ecologia biológica quanto na sociológica e na filosófica, como é o caso da ecologia profunda, formulada pelo filósofo norueguês Arne Naess (1912-2009). Entre os muitos conceitos ecológicos que a ADE incorporou, gostaria de lembrar o da diversidade e o do holismo. A visão holística nos leva a considerar o todo da questão, não apenas a parte dela que nos interessa. Respeitar a diversidade implica admitir o diferente, respeitá-lo, mesmo quando não concordamos com ele. Implica também tolerância. Respeito e tolerância para com todos, não apenas para com alguns, como acontece na legislação brasileira comentada acima.
Talvez a faceta da ADE que apresenta mais afinidade com a igualdade de todos perante a natureza é que, em vez das ideologias (de qualquer cariz) e das relações de poder, ela tem como princípio primeiro (a) uma defesa incondicional da vida. Essa defesa está intimamente ligada a outro princípio, o da (b) luta constante contra tudo que possa trazer sofrimento a um ser vivo, e o ser humano é um ser vivo antes de ser racional. Uma vez que as ideologias são inevitáveis, a ADE as subordina à ideologia da vida, ou ecoideologia. Entre as ideologias tradicionais, existem as benevolentes e as malevolentes, ou melhor, as tolerantes e as intolerantes, respectivamente. Entre as primeiras, temos a defendida pela análise do discurso positiva (Martin 2004, 2006; Vian Jr. 2010). Ela procura abordar questões polêmicas e delicadas partindo do lado 'positivo', pois toda questão tem um lado 'positivo' e um 'negativo'. As ideologias tradicionais (as da AD são todas derivadas de alguma variante do marxismo) enfrentam a questão partindo do lado negativo: 'homem versus mulher', 'negro versus branco', 'homossexual versus heterossexual' e assim por diante. A ecoideologia a aborda partindo, como a análise do discurso positiva, também do lado positivo, vendo na questão 'homem e mulher', 'negro e branco', 'homossexual e heterossexual' etc., não um antagonismo, procurando por harmonizá-los. Ela analise essas polaridades como formando um todo, bem dentro do espírito do taoísmo. Um não existe sem o outro, assim como o pequeno não existe sem grande, e vice-versa. Eles se articulam ao longo do mesmo eixo. Para entender a ecoideologia, vejamos alguns exemplos.
Pensemos nos inúmeros casos de maridos que chegam bêbados em casa e xingam, espancam e até matam suas mulheres. A ideologia seguida pela análise do discurso tradicional e o feminismo abordam a questão partindo do conflito, uma vez que seguem sempre alguma versão da ideologia marxista, com 'classe dominante versus classe dominada', sendo que a segunda deve derrubar a primeira; patriarcalismo, com o 'homem dominando a mulher' etc. Ora, essa atitude coloca a mulher contra o homem, mesmo que implicitamente. A ADE, ao contrário, defende a causa da mulher não por ela ser uma mulher, portanto contraposta ao homem. Ela a defende por ser um ser vivo que está sofrendo, e todo sofrimento que for evitável deve ser evitado. Por isso a ADE é também prescritiva, no sentido definido pela ecologia profunda, de intervir em prol da vida e para evitar o sofrimento. O mesmo vale para a causa do movimento negro, dos homossexuais etc. Quando um especialista em ADE vai analisar um discurso sobre esses assuntos, ele defende o negro não por ser negro. Defende o homossexual não por ser homossexual. A condição de ser vivo está muito acima da cor da pele e da sexualidade. A mulher é defendida não por ser diferente do homem, mas por ser igual a ele. O negro e o homossexual são defendidos não pelo que têm de diferente do branco e do heterossexual, respectivamente, mas pelo que têm de igual a eles, a condição de ser vivo, racional, embora a última característica não seja tão relevante no presente contexto.    
Um caso mais pungente é o do infanticídio, ainda encontrável entre alguns grupos ameríndios. A ADE tenta intervir a favor da preservação da vida, mesmo que isso vá contra costumes tradicionais do grupo étnico. Poder-se-ia alegar que não por em prática o que preveem esses costumes pode trazer sofrimento à comunidade como um todo. É verdade. Tanto que a ADE reconhece que há não apenas sofrimento físico, mas também sofrimento mental e sofrimento social. Por exemplo, uma tortura psicológica é um sofrimento mental, e pode ser muito mais dolorosa do que um beliscão, que é um sofrimento natural, físico (o sofrimento físico máximo é a morte). Expor uma pessoa ao ridículo, difamá-la perante a comunidade é infligir-lhe um sofrimento social4 que, conforme o caso, pode ser uma dor mais profunda do que a do beliscão. O fato é que cada caso deve ser analisado na integralidade do contexto em que emerge. De qualquer forma, o princípio geral da defesa da vida e da luta contra o sofrimento deve prevalecer, na maioria dos casos. Afinal, costumes mudam ao longo do tempo. A morte é irreversível.
Fica subentendido no direito formal brasileiro que as pessoas, logo seres vivos, que não se enquadram no Artigo 5, Capítulo I do Título II, nem nos inúmeros incisos do Artigo 295 do Código de Processo Penal, podem ser submetidas a todos os tipos de sofrimento implícito na inobservância das legislações. O sofrimento só deve ser evitado no caso das pessoas "importantes", que são mais iguais do que as demais. É assim que está estipulado na lei. O direito natural e a ADE defendem o não sofrimento para todos, sem nenhum tipo de exceção. 
Vimos que a ADE defende o princípio de que todos são iguais perante a natureza. Com efeito, nela prevalecem todos os princípios da ecologia biológica, parte da biologia, a ciência da vida. Prevalecem também os princípios da ecologia sociológica e da filosófica. No que tange aos da ecologia biológica, todo mundo nasce, cresce e morre, se não morrer ao nascer. Todo mundo pode adoecer, quer seja rico, quer seja pobre; quer seja "importante", quer seja pessoa comum. Todo mundo envelhece, inexoravelmente, a não ser que morra jovem. Todo mundo está sujeito às exigências da vida, tais como comer, beber, defecar e urinar. O que é "pior", todos transpiram, têm chulé e outros odores tidos como "desagradáveis". Enfim, na natureza há uma verdadeira democracia, pois não há privilégios. As suas leis são aplicada a todos. Todos são iguais perante a natureza.
Alguém poderia alegar que na natureza prevalece a 'lei do mais forte'. É verdade. No entanto, o 'mais forte' dificilmente mataria outro ser de uma espécie diferente da sua, a não ser para se alimentar ou para se defender, ou seja, manter a própria vida, o que é parte da cadeia trófica. Dificilmente se encontra alguma espécie não humana que mata por prazer, como os humanos fazem na caça e na pesca lúdica. Dificilmente se encontra na natureza algum animal que ao matar outro, para se alimentar ou se defender, o faça com requinte de crueldade, como fazem muitos humanos. Nada disso é "natural", mas criado socialmente.  
Os legisladores e defensores das duas leis supramencionadas confundem "direito" com "privilégio", ou vice-versa, com isso distanciando-se do direito natural das pessoas e se aproximando do direito formal criado pela sociedade, portanto cheio de distorções. Por exemplo, na época da escravidão, era "legal" espancar e às vezes até matar um escravo. Às vezes esses legisladores e defensores da lei se esquecem de que não pode existir 'direito' sem 'deveres' ou 'obrigações'. Se os 'direitos' são criados socialmente, socialmente também deveria ser criada a contraparte dos 'deveres' e 'obrigações'. Aliás, no livro de sabedoria chinesa Tao te ching (ele existe desde vários milênios antes de Cristo) está escrito que se todos cumprissem suas obrigações o mundo seria muito melhor para todos.
A Constituição fala em "Direito à vida" e, indiretamente, ao não sofrimento, aparentemente como a ADE e a ecologia profunda, uma de suas fontes epistemológicas. O grande problema é que a Constituição relativiza essa asserção, criando uma série de exceções e privilégios. Tanto que muita gente se perguntaria se assassino o perverso, que mata a vítima com requinte de crueldade também tem direito a tudo isso, como os demais. Ele tolhe esse direito a suas vítimas. Na natureza, ao contrário, qualquer animal que for atacado ou ameaçado reagirá. O que fazemos com uma fruta podre no meio de frutas saudáveis? Vale dizer, na natureza não há impunidade, embora possa haver algum tipo de privilégio, como o do leão que toma a caça conseguida pela leoa e se alimenta primeiro. Esse assunto merece um maior aprofundamento, que não cabe aqui. 
Para a visão ecológica de mundo perfilhada pela ADE, todos nós sabemos o que certo e o que é errado: "errado" é o que pode trazer sofrimento, individual ou coletivo. O que não traz sofrimento a ninguém (que não prejudica ninguém) não é, em princípio, "errado", logo, poderá ser considerado "certo". Isso se quisermos falar em "certo" e "errado", o que a VEM não considera imprescindível. Enfim, a natureza tem muito a ensinar à sociedade. Afinal, a sociedade emerge da natureza, segundo um princípio que poderíamos chamar de cultura ex natura (cultura surgindo da natureza). Tanto que na linguística ecossistêmica de que a ADE faz parte, a base primeira de todo o edifício epistemológico é o fato de que para que exista uma língua (L) é preciso que exista um povo (P) que a fale, e para que haja um povo organizado comunitariamente é preciso que exista um lugar ou território (T) em que esse povo possa viver e conviver. Por outras palavras, L só existe em P, que só existe em T. Cultura ex natura.
A ideia de que a cultura, de que a língua faz parte, nasce da natureza é defendida por inúmeros pensadores. Um deles é o ecologista Murray Bookchin, proponente da ecologia social. De acordo com esse autor, “os seres humanos estão sempre enraizados em sua história biológica evolucionária, que podemos chamar de ‘primeira natureza’, mas eles produzem por si mesmos uma natureza caracteristicamente humano-social, que chamamos de ‘segunda natureza’. Longe de ser ‘inatural’, a segunda natureza humana é eminentemente uma criação da evolução orgânica da primeira natureza” (Bookchin 1993). Um outro é o ecolinguista e filósofo da linguagem alemão Peter Finke. Em suas palavras, “é errado tratar natureza e cultura como opostas”. Para ele, “o que chamamos de cultura nasceu paulatinamente da natureza” (Finke 1996: 36). Vale dizer, a ADE parece estar no caminho certo ao mostrar que o princípio da igualdade de todos perante a Constituição não é válido na prática, motivo pelo qual ela o inclui em um princípio muito maior, o de que todos são iguais perante a natureza.   
Notas
1. Uma versão online da Constituição está disponível em:
2. Para uma primeira abordagem sobre o assunto, pode-se consultar a Wikipedia:
3. Para a lista completa dos privilégios, ver o Artigo 295, disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689.htm#art810.
4. Os níveis 'natural', 'mental' e 'social' são integrantes da linguística ecossistêmica, sob o nome de meio ambiente natural, meio ambiente mental e meio ambiente social, cada um deles formando parte de um ecossistema: ecossistema natural, ecossistema mental, ecossistema social (Couto 2007).
Referências
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Capra, Fritjof. 1998. Pertencendo ao universo. São Paulo: Cultrix/Amana, 10ed.
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