1. Introdução
Gostaria de começar justificando a
própria palavra ilinguagem. Ela é um neologismo que propus pela
primeira vez em Couto (a sair: cap. VI) para designar toda uma série de situações
e fatos comuns na sociedade brasileira, como veremos logo abaixo. Ela não está
registrada em nenhum dos dicionários da língua portuguesa. Tampouco nos estudos
de linguagem creio que ela já tenha sido usada. No entanto, não se trata de um
barbarismo nem de uma formação ilegítima. Pelo contrário, a palavra foi formada
perfeitamente de acordo com as regras da gramática morfológica da língua
portuguesa, contrariamente a muitos termos já consagrados na linguística e em
outras ciências que são pura e simplesmente transposições de palavras inglesas.
É escusado dar exemplos, pois eles existem às carradas em todos os domínios
dessas ciências. No caso presente, basta dizer que a palavra
"ilinguagem" foi formada pelo modelo de "ilegalidade",
"irregularidade", "imaturo", "inato",
"inseguro" e outros. Ou seja, trata-se de um derivado formado pelo
acréscimo do prefixo de negação "in-" a um adjetivo e,
consequentemente, ao substantivo abstrato dele derivado.
Alguém poderia alegar que
"ilinguagem" seria diferente morfologicamente de todos os exemplos
dados devido ao fato de se tratar da combinação do prefixo "in-" com
um substantivo que não é derivado de um adjetivo. Por isso, gostaria de
mencionar um outro neologismo que, esse sim, foi formado pela combinação desse
prefixo com um substantivo não derivado de adjetivo. Trata-se da palavra
"inverdade". A maior parte dos dicionários brasileiros não a
consignam. Assim, no Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa
(Rio de Janeiro / São Paulo: Ed. Civilização Brasileira / Cia. Editora
Nacional, 11ª ed. 1969) ela está ausente.
O seu sucessor, Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa
(Rio: Ed. Nova Fronteira, 1ª ed, 1975), tampouco a consigna nessa primeira
edição. Porém, na segunda edição de 1986, revista e ampliada, já se pode ler o
seguinte: "Inverdade. [De in2 + verdade]. s. f. Falta de
verdade; mentira". Como é de praxe
na lexicografia, a seguir vem uma abonação do termo: "Dizem, e não é
inverdade, que a sua fantasia [de Castro Alves] era opulenta, e riquíssima em
tintas violentas a sua paisagem. Constâncio Alves (1921) Figuras. Rio de
Janeiro: Edição do Anuário do Brasil".
A afinidade entre o termo ilinguagem,
que estou propondo, e inverdade não se restringe a essa vernaculidade
morfológica. O segundo entrou na língua pelo menos no início de nosso século
para preencher uma lacuna, porque havia fatos sociais que precisavam ser
designados. Como diz Sapir (1969), não basta a mera presença de determinado
acidente no ambiente, tanto físico quanto social, para que surja uma palavra
para designá-lo. É necessário que a comunidade de falantes tenha algum
interesse nesse acidente. É preciso que os falantes sintam necessidade de
designá-lo. Portanto, o termo inverdade veio para designar fatos e
situações já existentes na sociedade brasileira. Os falantes sentiram que
apenas 'verdade" e seu oposto "mentira" não eram suficientes
para designar as filigranas de significado que precisavam expressar. No caso,
eles precisavam expressar algo que não era nem uma verdade pura nem uma mentira
pura, mas algo indefinido entre ambas, ambíguo, que pudesse ser manipulado. Com
isso já temos uma primeira definição de ilinguagem, isto é, um tipo
específico de linguagem em que não há verdades nem mentiras, mas inverdades.
Porém, há toda uma coorte de outras situações e fenômenos que entrariam na
categoria de ilinguísticos. É o que vamos ver na seção 3, abaixo.
2. Definindo ilinguagem
Não basta afirmar que ilinguagem é a
linguagem em que se expressam as inverdades. Trata-se de uma definição ampla
demais. Portanto, é necessário que especifiquemos mais o que ela significa.
Nesse sentido podemos dizer que ilinguagem é a linguagem em que o que se diz :
(a) não é o que se quer dizer
(b) não é para valer
(c) tem várias interpretações
(d) encobre o que efetivamente se quer
dizer
(e) tem uma interpretação oficial e
outra paralela.
Gostaria de adiantar que nem tudo que
comentei e critiquei em Couto (a sair) entra na categoria da ilinguística.
Assim, o uso de nomes próprios estapafúrdios como Acarirton, Acarilton,
Acarícia e Acarília, e outros piores ainda, revelaria uma
ignorância do código antroponímico luso-brasileiro por parte de pessoas
incultas. Tampouco seria ilinguístico o uso do que se poderia chamar de frase
interrompida como, por exemplo, "Hoje tá muito....". O
interlocutor a decodifica porque conhece o contexto da situação em que ela foi
proferida. Todos esses casos, e outros semelhantes, são verdadeiras aberrações
para o purista. No entanto, são inocentes, são típicos de um nível de linguagem
menos culto, mais distante do português padrão.
O que estou querendo dizer é que a
ilinguagem é mais própria da classe média e das elites urbanas, que têm
necessidade de toda uma série de subterfúgios para esconder suas patranhas e a
pilhagem que perpetram contra o bem público. O homem rural, ao contrário, não
tem muita necessidade de dizer inverdades. Como vive lutando diretamente com o
meio físico para ganhar a vida, ele é mais direto em tudo. Para ele, o que se
diz é exatamente o que se quer dizer; o que se diz é para valer, não tem mais
de uma interpretação nem encobre o que se quer dizer. Portanto, não há uma
interpretação oficial e uma paralela para o que alguém diz, como ocorre nos
meios urbanos. Em suma, para ele, o que alguém diz ou é verdade ou é mentira.
Não existe o lusco-fusco da terra de ninguém em que algo possa ser nem
verdadeiro nem falso ou, por outro lado, ser tanto verdadeiro quanto falso.
Além disso, ele não precisa de muitos eufemismos para palavras que a
suscetibilidade urbana considera "fortes" ou "grosseiras"
demais, como se ao chamarmos "bunda" de "bumbum" nos
referíssemos a outro designatum. Para
ele, "bunda" é bunda mesmo, e ponto final.
Não estou com isso querendo negar o fato
de que quanto mais palavras e, consequentemente, mais meios expressivos
tivermos mais rica será a nossa linguagem. Apenas estou tentando explicitar a
diferença entre a ideologia (ou cosmovisão) urbana e a rural. De acordo com a
primeira, tudo é relativo, dúbio e manipulável, uma vez que distanciado do
mundo real, da natureza. Para a segunda, cada coisa tem seu nome, não há
apelidos. Parafraseando o cantor Falcão, para o homem rural, 'homem é homem,
menino é menino, macaco é macaco e viado é viado"; todo o resto é conversa
fiada.
A diferença consiste em que no processo
de designação das coisas, o homem rural parte da própria coisa, ao passo que o
urbano parte da palavra ou signo que designa a coisa. Mais tecnicamente, o
primeiro parte do referente, o segundo
parte do signo. Segundo Umberto Eco, a linguagem do segundo é mais rica. No
entanto, é sempre uma espécie de distorção da realidade. Para ele, linguagem
(no caso a do homem urbano) "é tudo que pode ser usado para mentir"
(Eco 1979: 7). É, portanto, manipulável, coisa que normalmente não acontece com
a linguagem do homem rural ou, pelo menos, acontece em menor grau. Segundo o
sociólogo inglês Basil Bernstein, a linguagem urbana seria um "código
elaborado" de determinada língua, enquanto que a linguagem rural seria seu
"código restrito". O primeiro é descontextualizado, permite falar de
coisas in absentia, ao passo que o segundo seria altamente contextualizado,
dêitico, portanto, mais próprio para falar de algo in praesentia (Bernstein
1972) .
3. A ilinguagem na cultura brasileira
O conceito de ilinguagem surgiu da
observação da vida social brasileira. Seria portanto interessante apresentar
alguns fatos do quotidiano da vida do brasileiro que se caracterizam como
ilinguísticos. Começo com o que parece o mais simples de todos. Trata-se do
fato de os ciclistas trafegarem na contramão. Todos nós sabemos, inclusive os
ciclistas, que isso é irregular, vai contra as regras de trânsito. Mas, digamos
que as regras de trânsito sejam absurdas e que não seja tão importante assim
obedecê-las. Acontece que não é só isso. Trafegar na contra-mão é perigoso; o
ciclista que o faz sabe disso. Então, por que o faz? Simplesmente porque ele
sabe que os motoristas não o respeitam. Por isso ele trafega na contramão
porque assim vê os carros que vêm, portanto pode se proteger pelo menos até
certo ponto. Se fosse pela mão normal, poderia ser atropelado por trás. A
consequência disso é que algo que é irregular, ilegal, passou a ser a norma,
fato introjetado por motoristas e ciclistas e pela sociedade em geral.
Trata-se, portanto, de uma manifestação claramente ilinguística uma vez que o
que está estabelecido (dito) nas leis de trânsito não é para valer. Na prática
todos sabem que o que funciona é outra coisa.
As mudanças constantes que qualquer
administrador introduz assim que assume cargo novo, mudanças apenas de fachada,
também vêm a calhar neste contexto. Um chefete do Banco Regional de Brasília
tirou o "Regional", certamente com o brilhante argumento de que o
banco almeja ir além de uma regionalidade. Ele não sabe que um dos maiores
bancos do mundo se chama "The Frist National City Bank of New
York". Os nomes das ruas são mudados ao sabor dos prefeitozinhos que
assumem o novo cargo. Um professor universitário quis certa feita mudar o Hino
Nacional, com argumentos os mais idiossincráticos, nenhum deles convincentes. O
que se consegue com essas mudanças constantes é uma incerteza nos indivíduos
quanto ao que vale, uma vez que diante do antigo e do novo, o que se vê pode
ter mais de uma interpretação, pois é ambíguo.
Na ortografia do português brasileiro,
de vez em quando algum ilustre filólogo introduz alguma ¢inovação”. Já tivemos
reformas ortográficas em 1931, 1934, 1938, 1943 e 1971, além da que acaba de
ser aprovada pelo congresso (1995). Em apenas 40 anos tivemos 5 reformas.
Segundo o falecido filólogo Serafim da Silva Neto, de quem colhi essas
informações, a reforma de 1943 já provocava insatisfação em muita gente,
inclusive nele próprio. No caso das reformas ortográficas, tem muita gente que
ainda não assimilou a de 1970 e aqui estamos vendo outra ser implantada, tão ou
mais caótica que a outra. A alegação dos afoitos reformadores é a de que
escrevendo‑se "fato" no Brasil e "facto" em Portugal
provoca desentendimento. A consequência disso é que as pessoas mais idosas,
cuja vida passou por todas essas reformas, não sabem como é que se escreve,
diante de tanta mudança.
O mesmo vale para os planos econômicos.
De tanto ver tais planos, as pessoas perderam a noção do valor da moeda. Para
se entenderam apegaram-se ao dólar norte-americano. Com isso as pessoas não
sabem se o que está aí é para valer ou não, ou se ainda vale ou não, pois tem
muitas interpretações, cada indivíduo atribui à moeda o valor que mais lhe
convém e assim por diante. A única maneira de haver algum tipo de interação é
agarrarmo-nos nessa moeda estrangeira.
A profusão de leis é uma outra instância
em que a ilinguagem se manifesta com todo vigor. Onde ninguém obedece às leis,
criam‑se leis em demasia na vã esperança de que tudo pode ser regulado por
decreto‑lei. E isso parece ser geral entre os latinos. Tanto que, a propósito
das leis francesas, já no século passado o jurisconsulto Dalloz dizia:
Quando a ignorância está no seio de
sociedade e a desordem nos espíritos, as leis tornam‑se numerosas. Os homens
esperam tudo da legislação e, sendo cada lei nova um novo desapontamento, continuam a
pedir‑lhes sem cessar o
que não pode vir senão deles
próprios, da sua educação, do estado dos seus costumes.
(apud Kropotkin 1987: 68).
Como se vê, a existência de muitas leis
não implica necessariamente que "há leis", que há um conjunto de
normas que regulam o comportamento coletivo, ou seja, uma linguagem. Excesso
provoca perplexidade nas pessoas, pois, como afirma o dito popular, tudo que
passa sobra. Leis em demasia faz com que as pessoas nunca saibam o que é
que vale. Elas sabem que há um decreto‑lei, mas ele pode ser inconstitucional,
além de ter sido regulado por uma portaria, que revoga uma portaria anterior,
além do fato de que a referida lei já pode ter sido alterada em sua essência,
quando não pura e simplesmente revogada. A própria constituição é um exemplo
típico. No afã de regular tudo na Carta Magna, o legislador entra em detalhes
que só leis ordinárias poderiam regular. Com isso a constituição fica imensa,
difícil de ser entendida, além do fato de um ou outro segmento da sociedade
sempre querer alterá‑la. No caso da história constitucional brasileira, só a
partir da época em que passei a observar a arena política já vi desfilarem três
constituições, além das outras quatro que a partir de 1822 as precederam. Ora,
diante de tanta constituição como é que o cidadão vai saber o que é legal e o
que é ilegal? Como é que ele pode saber o que os detentores do poder consideram
lícito e o que consideram ilícito?
Vê-se, assim, que a profusão de leis
está em perfeita sintonia com a tese da ilinguagem. Diante de um estado de coisas
como o que Kropotkin transcreveu, o que há é um cipoal, um caos, em que os
indivíduos não se entendem. Como não se entendem, as leis não são para valer. O
que vale é o levar vantagem, é criar fatos consumados, como as invasões de
áreas públicas urbanas pelos pobres e pelos ricos (condomínios). Portanto, todo
esse caos ilinguístico visa encobrir o que efetivamente tem vigência, isto é,
uma sociedade desigual, em que as elites saqueiam os cofres públicos, de modo
que nada sobra para a assistência social.
A ambiguidade na linguagem, ou melhor,
na ilinguagem, já foi analisada por mim em Couto (1987) mediante as categorias oficial
e paralelo, por sugestão da taxa de câmbio. Temos uma linguagem oficial,
expressa nas leis e a que vale, não explicitada em leis. Durante a ditadura
militar (e não só nesse período), quando um ministro vinha à televisão e
afirmava que estava firme no cargo sabíamos que no dia seguinte ele cairia. Ou
seja, o que valia não era o que ele dizia; o que valia era exatamente o
contrário do que ele dizia, uma vez que o que ele dizia encobria o que
efetivamente queria dizer. A tal ponto que a população já tinha se acostumado a
não levar a sério o que o governo dizia, o que valia era o que ela própria
praticava, uma vez que ela tinha que se virar como podia independentemente dos
poderes constituídos (oficial).
Esse tópico já foi suficientemente
discutido no ensaio recém‑mencionado. No presente contexto, eu apenas gostaria
de acrescentar que a força do poder paralelo no Brasil já é tão grande que o
poder constituído (oficial) não penetra nos morros cariocas, para dar apenas um
exemplo. O que vige lá é a lei dos traficantes de droga (paralelo). Trata‑se de
um estado dentro do estado brasileiro, com seus poderes executivo, legislativo
e judiciário. O executivo é tão poderoso que quem foge da linha é sumariamente
executado. Lá as coisas são levadas a sério
Um dos casos mais flagrantes de
ilinguagem é o da impontualidade. Quando vemos uma convocação de reunião de
condomínio, de uma associação qualquer, de um departamento de universidade e,
às vezes, até de assembleias legislativas, tem‑se mais ou menos o seguinte:
"A reunião se iniciará às 10 horas com quorum
regular, ou às 10:30 com qualquer número de presentes". O fato é que todo
mundo já sabe que ela nunca começa às 10 horas. Portanto, todos comparecem (se
e quando comparecem) a partir das 10:30. Isso significa que muita gente chega
bem depois desse horário, no horário "de tolerância". O que isso
significa?
Significa que o primeiro horário não era para
valer, era de mentirinha. Como já sabemos que ninguém chega na hora marcada,
marcamos uma segunda, na qual a reunião terá lugar e as decisões serão tomadas
quer compareça o número mínimo de participantes quer não. Vê‑se, portanto, que
o primeiro horário não era para ser levado a sério, era só para inglês ver. Em
outros termos, a convocação que contém um segundo horário deixa dito nas
entrelinhas o seguinte: "O horário é às 10 horas, mas isso não é para ser
levado muito a sério. Se você quiser, pode chegar às 10:30".
A indicação de um segundo horário, que
em geral é o que vale, surgiu devido a outro comportamento condenável do
brasileiro, a impontualidade. O brasileiro nunca chega na hora marcada
para um compromisso. Às vezes isso é até tido como charmoso, como típico de sua
informalidade. Acontece justamente o contrário. Isso é índice de
irresponsabilidade. Quando se marca uma reunião para as 10 horas com uma
alternativa de 10:30, as pessoas que levam tudo que fazem a sério ficam
desorientadas. Frequentemente chegam efetivamente às 10 horas. Acontece que os
retardatários, aqueles que estão perfeitamente em sintonia com a esbórnia
brasileira, chegam só a partir das 10:30. Como consideram que o horário que
vale é a segunda alternativa, dão‑se o direito de chegarem atrasados
relativamente a essa hora. Com isso, os pontuais ficam parados, perdendo tempo.
Afinal, se a ilinguagem afirma que o correto é não levar a primeira alternativa
a sério, por que chegaram pontualmente? Azar deles!
Todos deveriam saber que a primeira
alternativa era de mentira, que só a segunda era para ser levada a sério. Só
que mesmo essa segunda alternativa tem uma tolerância para os retardatários.
Portanto, quem chega pontualmente às 10 horas está fora de contexto, não
entendeu o espírito da coisa. Mesmo o horário que é para valer, 10:30, não deve
ser levado muito a sério, pode‑se atrasar um pouquinho. A conclusão é a de que
não se deve interpretar o que foi dito ao pé da letra. Deve‑se levar em conta é
o que não foi dito, o que não está no texto do convite para a reunião. Deve-se,
portanto, levar em conta não a mensagem linguística, mas a mensagem
ilinguística.
Por fim, vejamos o caso dos "vigiadores
de carros" que, como disse uma amiga, lotearam todas as cidades
brasileiras. Quando tentamos estacionar o carro em qualquer via pública, sempre
aparece um deles, ninguém sabe de onde. Ele chega e pergunta: "Qué qui
vigia?" ou "Pode vigiá?". Isso é o que ele diz. No entanto, o
que na realidade ele quer dizer é o seguinte: "Para estacionar aqui você
terá que me dar dinheiro!" O que ele diz, portanto, não é o que quer
dizer. Pelo contrário, esconde o que efetivamente quer dizer. Afinal, se ele o
dissesse direta e cruamente, na linguagem, poderia haver atritos com o dono do
carro. Portanto, como ele está em perfeita sintonia com a inorganização
(perdoem mais esse neologismo, que significa "contrário de
organização!") brasileira e sabe que o apressado motorista também deve
estar, ele se lhe dirige na ilinguagem. Com isso contribuem ambos para
perpetuar a esbórnia. E assim poderíamos continuar a enumeração de fatos
ilinguísticos ad libitum, pois eles abundam na cultura brasileira. Mas, não só
nela.
4. Observações finais
Creio que ficou bastante claro que, no
Brasil, em vez de uma linguagem que permita a interação não-conflituosa entre
os indivíduos, o que temos é uma ilinguagem. Creio também que os exemplos
apresentados no item anterior deixaram patente o fato de que ilinguagem é a
linguagem em que o que se diz (a) não é o que se quer dizer, (b) não é para valer, (c) tem várias
interpretações, (d) enconbre o que efetivamente se quer dizer, (e) tem uma
interpretação oficial e outra paralela. Aliás, isso é tido como algo de
positivo no comportamento do brasileiro: informalidade e cordialidade. No
entanto, como tentei mostrar no primeiro capítulo de Couto (a sair), o
que isso de fato mostra é uma tremenda irresponsabilidade e falta de respeito
para com o outro. O resultado é um mundo de cada um para si e Deus para os mais
fortes. A ilinguagem está aí para lhe dar expressão.
No que diz respeito especificamente à
própria palavra “ilinguagem”, tentei mostrar que não era uma criação
arbitrária. Pelo contrário, vimos que ela está perfeitamente de acordo com a
gramática morfológica do português. No entanto, se mesmo assim alguém continuar
achando que ela é um barbarismo, não faz mal. Nesse caso ela apenas
refletiria a barbárie que é a vida social brasileira, isto é, refletiria o que
deveria ser a linguagem brasileira. Por isso mesmo, ela é uma ilinguagem.
Referências
Bernstein, Basil. 1972. Social class, language and socialization.
In: Giglioli, P. P. (org.) Language and social context. Harmondsworth: Penguin
Books: 157-178.
Couto, Hildo Honório do. 1987. O oficial
e o paralelo. Correio do livro II(2), p. 5.
_______.O público, o privado e a privada: Ecologia e linguagem. Disponível em:http://ilinguagem.blogspot.com.br/2015/08/o-publico-o-privado-e-privada.html (acesso: 10/01/2018).
_______.O público, o privado e a privada: Ecologia e linguagem. Disponível em:http://ilinguagem.blogspot.com.br/2015/08/o-publico-o-privado-e-privada.html (acesso: 10/01/2018).
Eco, Umberto. 1979. A theory of semiotics. Bloomington: Indiana
University Press.
Kropotkin. 1987.
Textos escolhidos. Porto Alegre: L&PM.
Sapir, Edward. 1969. Língua e ambiente.
In: Linguística como ciência. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica.
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